Há uma música do Titãs cujo refrão diz que "não é o que não pode ser...que não é o que não pode ser... e não é". Infeliz ou felizmente no mundo do Direito, por ser uma ciência da linguagem e da cultura, as coisas não funcionam assim. O Direito não tem fome, não sente sede, não é dois mais dois igual a quatro, não sofre dilatação e nem tem ponto de ebulição. Direito é texto produzido pelo homem.
Entre o mundo do ser e do dever ser há uma distância absurda, sem precisar citar Vilanova ou Kelsen. E, registre-se, quanto mais incivilizada é uma nação, quanto maiores são as desigualdades, quanto maior a negação dos direitos fundamentais, então, inexoravelmente maior será o abismo entre aquilo que deve ser e aquilo que é. Nossa colocação do IDH, recentemente foi o vergonhoso 79º lugar. Entre o que a Constituição Federal diz que deve ser e o que é...não há como se medir.
Nesse passo, por exemplo, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei federal 8.069) precisa dizer que uma criança tem direito a brincar e se divertir (art.16, IV), também temos uma lei eleitoral que precisa dizer que são inelegíveis as pessoas condenadas por crime de corrupção, contra o meio ambiente, contra a fé pública, contra economia popular, por improbidade na administração, etc. A Lei das Inelegibilidades, conhecida como lei da ficha limpa, é, nesta parte, um certificado, registrado em cartório, da nossa ingênua agnosia.
Num país civilizado, nem seria proibido se candidatar, e, por consequência votar, em candidatos que tivessem uma vida pregressa imunda.
Sempre é preciso lembrar que o voto é uma procuração que outorgamos a um candidato para comandar, em nosso nome, a casa legislativa e a executiva. Fazer leis e administrar o país, o Estado e a Cidade, tudo em nosso nome, como se ali estivéssemos de carne e osso. Assim como damos uma procuração para votar em nosso nome numa reunião de condomínio, damos, de forma mais complexa, e sem possibilidade de revogação, por 4 anos, uma procuração para o eleito nos representar na Cidade, no Estado e no país. Aonde o eleito vai, carrega consigo nosso nome na sua testa.
O fato é que numa democracia que, paradoxalmente, impõe o voto obrigatório (?), é muito difícil não fazer um olhar crítico sobre o paternalismo do legislador que proíbe candidaturas de pessoas que tenham um passado ímprobo. No fundo no fundo, essas candidaturas precisam ser vetadas por uma lei complementar porque, do contrário tais pessoas serão eleitas, já que números estatísticos não muito distantes indicam que 25% da população troca seu voto por benefícios como arroz, feijão, cimento, dentadura, gasolina, boné, camisa, ultrassom, etc. Enfim, vota em quem os corrompe. A fila nos hospitais, a falta de médico, a falta de escola, a falta de policiais nas ruas, nasce dessa corrupção do voto.
Infelizmente não temos disciplina de educação eleitoral no ensino fundamental, o que seria muito salutar para uma genuína liberdade democrática. Só o conhecimento traz liberdade, como dizia Goffredo Telles Jr., e só com liberdade é que se tem democracia. Enquanto formos reféns da ignorância seremos presos a um universo onde uma Lei precisa dizer que criança tem o direito de brincar e que não devemos votar em candidato condenado por corrupção, com passado emporcalhado. E, não raramente, pasmem, contra legem, privam-se as crianças de brincarem e votam-se em candidatos corruptos.
Mas, como entre "o que é e o que deve ser" há um abismo infinito, a pergunta que não quer calar é: se a lei da ficha limpa diz que o sujeito condenado provisoriamente em segunda instância pelo crime "tal" não pode se candidatar, como ele poderia então ser candidato?
Eis aí a diferença entre o ser o e dever ser.
No momento em que o sujeito é condenado provisoriamente pelo crime tal, e, inclusive, por ele possa estar encarcerado, o cidadão comum imagina que a inelegibilidade prevista na lei da ficha limpa incide imediatamente e que terá ele, o sujeito que é político de carteirinha, o "bom senso" em não pretender ser candidato, pois, de antemão saberá qual será a resposta ao seu "pedido de registro de candidatura". Aliás, não por acaso, se preso estiver, terá que ser feito, inclusive, por procuração.
Isso é o que chamamos de pedido de registro de candidatura natimorto, pois, faz-se o pedido sabendo que será rejeitado. Num país civilizado tal pedido não seria feito, não por causa de uma lei complementar, mas pela própria consciência, pela ética de não deduzir pretensão inútil que poderia baralhar ou confundir os eleitores. Em terra brasilis estamos longe disso.
Contudo, para causar estupor ao cidadão comum, digo que não só é possível fazer o pedido de registro de candidatura natimorto, como ainda por cima é possível prosseguir em todas as instancias com este pedido de registro, recorrendo das decisões judiciais que atestem, uma após a outra, a tal inelegibilidade. E, pior que isso é que, enquanto não tiver a última decisão ratificando a negativa da candidatura, de recurso em recurso, o tal sujeito (chamado de candidato sub judice) pode ter seu nome nas urnas para ser eleito pelo povo.
São vários os casos existentes no país de candidatos que estavam presos, inclusive, por exemplo, condenados provisoriamente e que foram reeleitos com maior votação para Câmara Municipal (clique aqui).
Diz o artigo 16-A da nossa Lei das Eleições (lei 9.504) que "o candidato cujo registro esteja sub judice poderá efetuar todos os atos relativos à campanha eleitoral, inclusive utilizar o horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão e ter seu nome mantido na urna eletrônica enquanto estiver sob essa condição, ficando a validade dos votos a ele atribuídos condicionada ao deferimento de seu registro por instância superior".
Obviamente que ninguém poderá pedir para sair da prisão para fazer campanha eleitoral, pois, se assim fosse, da prisão brotariam pedidos de registros de candidatura, o que nos parece algo disparatado, quase excêntrico. Todavia, a grande verdade é que tal dispositivo (art. 16-A) permite, expressamente, que enquanto os tribunais superiores não decidirem definitivamente os recursos interpostos, tal sujeito tem uma candidatura "sob condição", ou seja, trocando em miúdos, seu nome poderá estar nas urnas eletrônicas, mas, se eleito, seu registro definitivo dependerá do julgamento dos recursos pelos tribunais superiores.
Tal situação é gravíssima, pois traz o risco de permitir que alguém possa fazer um pedido de registro de candidatura natimorto apenas para confundir os eleitores e bagunçar o processo eleitoral, causando um desperdício de dinheiro público, de tempo da população, e consumindo a credibilidade da própria democracia.
Bem, num quadro deste, alguém que pode dizer que, para evitar este imbróglio, bastariam aos tribunais superiores julgarem rapidamente os recursos, evitando que a situação sub judice se prolongue até o momento das eleições, e assim também evitando que o povo vote em quem está com "candidatura sob condição". Mas, bem sabemos que o processo eleitoral se dá num curto espaço de tempo, e, mesmo que os tribunais superiores consigam julgar todos os recursos em tempo anterior às eleições, pode acontecer de a população ser confundida com tal situação no curso do processo eleitoral.
Por outro lado, o que acontece se não julgar tais recursos do candidato sub judice e como já ocorreu o Brasil, tal candidato vier a ser eleito. Aí teremos um enorme problema, pois uma vez que seja cassado o registro depois de eleito "sub judice", toda a eleição será anulada, pois não mais existe a regra de que o segundo colocado assume. Novas eleições deverão ser feitas. Irão dizer, se ganhar ou perder os recursos, que o resultado foi no "tapetão".
Para evitar isso, além da celeridade no julgamento dos pedidos de registros de candidaturas natimortos, e das respectivas impugnações que a elas sejam feitas, e seus respectivos recursos, lembramos que não pode ser esquecida a figura da tutela provisória (de urgência e da evidência) prevista no Código de Processo Civil que pode ser utilizada no direito processual eleitoral, inclusive no âmbito recursal, para evitar o desvario de pedidos de registro de candidatura natimortos destinados unicamente a ferir a liberdade do eleitor.
Infelizmente, não é o que não pode ser e não é, porque candidaturas natimortas, não só nascem como crescem, produzem efeitos e morrem, não sem antes putrefazer a própria democracia.
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