Nada obstante a notória insuficiência em outras áreas, quando se trata de tributação, o gigantismo estatal aflora. Realmente não se discute a perspicácia do Poder Público brasileiro em criar tributos e buscar outros meios, ainda que manifestamente ilegítimos – mas “legais” –, de extorquir o contribuinte. E aqui deixo claro que não me refiro a fraudadores contumazes – para estes, a discussão se trava na seara criminal. De igual modo, destaco que o objetivo não é defender o não pagamento de tributos. O debate é outro!
A inépcia manifesta da máquina pública requer mesmo uma quantidade significativa de recursos; com isso, cria-se um círculo vicioso, porque, ao tempo em que o Estado se afunda em sua incúria, a solução parece ser tão somente a busca das receitas derivadas, digo, a mastodôntica carga tributária para cobrir o déficit público.
E por que, nesse tão “perfeito sistema de freios e contrapesos”, não se barra o protesto, quando já se dispõe de ação executiva já tão severa? Indago: por que se galopa tão aceleradamente na tributação e na sua cobrança? Asseguro: ainda que inconscientemente, por receio de a máquina parar.
Por que não submeter a cobrança dos tributos aos meios normais que o sistema estabelece para execução fiscal, sem os males do protesto, quando se tem como garantia ao Estado a penhora online, o acesso às contas bancárias do executado, um regime especial de controle por operação, o arrolamento de bens e até mesmo a medida cautelar fiscal?
Chamo a atenção para um dos mais selvagens meios de coagir (a expressão é esta mesma, insubstituível) o contribuinte quanto ao pagamento de tributos: a inserção do nome do devedor nos cadastros de restrição ao crédito, sob o argumento de tornar a execução fiscal mais célere e eficaz.
Vejam que a execução fiscal sempre gozou de um tratamento mais ameno, consciente o legislador ou pelo menos o Judiciário de que quem não paga no momento certo deve estar passando por dificuldades – princípio da menor onerabilidade. Agravar a sua situação nada irá resolver. Então, que se faça a inserção em cadastros de restrição ao crédito depois de se apurar a conduta do devedor, assim se permitindo quando demonstrada a conduta deliberada por parte do sonegador contumaz, do falsário, do simulador, do enganador.
A justificativa encontrada pela Fazenda Pública sempre foi a de que não se trata de privilégio, mas sim de prerrogativa, na busca incessante de proteção ao interesse público. A litania é a mesma: em nome do interesse público, tudo se faz possível.
Perceba-se que os cadastros de proteção ao crédito são mecanismos relacionados a acordos e tratativas firmados entre privados, que nada tem que ver com o Poder Público. Como dito, este já goza de uma série de benefícios que não se alargam aos privados. O argumento da eficiência não é justificativa plausível, eis que nem tudo que é eficiente pode se convolar em constitucional.
Desafortunadamente, a jurisprudência caminha no sentido de que, em havendo legislação específica permitindo a inscrição, faz-se possível a utilização, pela Fazenda Pública, dos cadastros de restrição ao crédito. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou em algumas oportunidades1, bem como outros tribunais pelo país2.
Os julgados quase sempre se valem apenas da existência de lei como requisito autorizador para a inscrição nos cadastros de restrição ao crédito. Ocorre que tais cadastros, a exemplo do Serasa, são empresas privadas que foram inicialmente utilizadas por instituições bancárias única e exclusivamente para análise de concessão de crédito. Por maiores razões quanto à inadmissão de tal prática pela Fazenda Pública, deve-se destacar que o Estado possui cadastro para contribuintes inadimplentes (Cadin), que serve para divulgar os devedores de tributos, criando a tal “Lista dos Inscritos como Dívida Ativa”.
É evidente que a utilização desses cadastros privados, conquanto possibilitem maior agilidade ao executivo fiscal, consubstanciam evidente desvio de finalidade e abuso de poder, porque instrumentos de natureza privada. Inegável, portanto, a necessidade de exsurgir um posicionamento jurisprudencial em sentido diverso, tornando efetivas as limitações ao poder estatal de cobrar tributos, sob pena de derruir a existência mesma da atividade econômica. Não por acaso, em lapidar julgado ainda no ano de 2007, anterior à “novidade do convênio Serasa/Fazenda Pública”, o Supremo Tribunal Federal decidiu no sentido defendido neste texto, cuja ementa, pela relevância, transcreve-se na íntegra:
SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO. INADMISSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DE MEIOS GRAVOSOS E INDIRETOS DE COERÇÃO ESTATAL DESTINADOS A COMPELIR O CONTRIBUINTE INADIMPLENTE A PAGAR O TRIBUTO (SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF). RESTRIÇÕES ESTATAIS, QUE, FUNDADAS EM EXIGÊNCIAS QUE TRANSGRIDEM OS POSTULADOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO, CULMINAM POR INVIABILIZAR, SEM JUSTO FUNDAMENTO, O EXERCÍCIO, PELO SUJEITO PASSIVO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA, DE ATIVIDADE ECONÔMICA OU PROFISSIONAL LÍCITA. LIMITAÇÕES ARBITRÁRIAS QUE NÃO PODEM SER IMPOSTAS PELO ESTADO AO CONTRIBUINTE EM DÉBITO, SOB PENA DE OFENSA AO "SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW". IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE O ESTADO LEGISLAR DE MODO ABUSIVO OU IMODERADO (RTJ 160/140-141 - RTJ 173/807-808 - RTJ 178/22-24). O PODER DE TRIBUTAR - QUE ENCONTRA LIMITAÇÕES ESSENCIAIS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL, INSTITUÍDAS EM FAVOR DO CONTRIBUINTE - "NÃO PODE CHEGAR À DESMEDIDA DO PODER DE DESTRUIR" (MIN. OROSIMBO NONATO, RDA 34/132). A PRERROGATIVA ESTATAL DE TRIBUTAR TRADUZ PODER CUJO EXERCÍCIO NÃO PODE COMPROMETER A LIBERDADE DE TRABALHO, DE COMÉRCIO E DE INDÚSTRIA DO CONTRIBUINTE. A SIGNIFICAÇÃO TUTELAR, EM NOSSO SISTEMA JURÍDICO, DO "ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO CONTRIBUINTE". DOUTRINA. PRECEDENTES. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO3. (grifo nosso)
Em recentíssimo julgado, o Superior Tribunal de Justiça, tratando de caso relacionado a execução de título privado, limitou a possibilidade de o Judiciário utilizar-se de medidas coercitivas que firam outras liberdades constitucionais, a exemplo da apreensão de passaporte ou habilitação do devedor, por infirmarem o direito de locomoção.4
O Superior Tribunal de Justiça demonstrou, nessa ocasião, a total impossibilidade de se fazer uso de métodos coercitivos desproporcionais para a cobrança de dívidas de natureza privada. Com mais razão, a medida deve ser estendida ao Poder Público, na medida em que este já possui, como mencionado, mecanismos privilegiados para a cobrança dos créditos fiscais.
Considerando que a inscrição nos cadastros de restrição ao crédito é meio coercitivo desnecessário – e, por conseguinte, desproporcional – de cobrança, impende repensar, urgentemente, a utilização de tal expediente pela Fazenda Pública. Entendimento contrário fere, às escâncaras, a isonomia, bem assim os direitos de propriedade e liberdade.
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1 STJ - AgRg no RMS: 31551 GO 2010/0030120-4, Relator: Ministro BENEDITO GONÇALVES, Data de Julgamento: 17/08/2010, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/08/2010.
2 TJ-MG - AI: 10481110076256001 MG, Relator: Desembargador Eduardo Andrade, Data de Julgamento: 20/05/2014, Câmaras Cíveis / 1ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 28/05/2014.
3 STF - Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 29/06/2007, Data de Publicação: DJ 16/08/2007 PP-00127.
4 Recurso em Habeas Corpus 97876 / SP, julgado em 5/6/18 e ainda pendente de acórdão.
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*Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo e mestre em Direito e Políticas Públicas. Ex-procurador de Estado e advogado militante. Vice-presidente da Associação Paulista de Direito Administrativo – APDA.