Como se sabe, o ordenamento jurídico brasileiro admite a pessoa jurídica como titular da posse. Tal assertiva não gera qualquer dúvida ou controvérsia.
A posse é um direito que é garantido à pessoa jurídica e que é visível no seu dia a dia pelo exercício de alguns dos direitos inerentes à propriedade. Qualquer entendimento diverso desse seria desarrazoado e inviável ao exercício da própria atividade social.
Nesse sentido, o Código Civil respalda essa assertiva no seu I do artigo 1.2051, que permite a aquisição pela pessoa individual e pela pessoa jurídica,2 bem como por "(...) entes despersonalizados: espólio, massa falida e coletividade de possuidores (...)", conforme assinala Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.3
Contudo, apesar da redação simplista e ampla do Código Civil, nota-se que essa é resultado de estudos complexos sobre a posse.
Assim, para compreender o direito de a pessoa jurídica ser titular da posse é necessário recorrer às teorias que justificam a sua existência. Dentre as diversas teorias existentes, a teoria da realidade técnica ou realidade que defende a concepção da pessoa jurídica como idêntica ao ser humano, excetuando-se o que é incompatível pela sua natureza é adotada pela doutrina majoritária.4
Logo, a pessoa jurídica tem direito de atuar como possuidora, tal como uma pessoa natural, uma vez que nas palavras de Wilson Melo da Silva: "Para tal doutrina, a pessoa jurídica existe de fato, no Direito não como ficção (como pretendia Savigny), não como realidade corporal, mas como realidade ideal, como necessidade."5
Mas se a pessoa jurídica não detém de corporalidade, como essa pode exercer tal direito, considerando o fato de que a posse é visível e é a exteriorização dos direitos de propriedade?
Isso ocorre, pois a posse é exercida pelos representantes da pessoa jurídica, que por sua vez, executam a decisões tomadas pelos seus órgãos deliberativos, formados pela coletividade de pessoas.6 Tais decisões expressam a vontade da pessoa jurídica, conforme é elucidado por Paulo Lôbo:
O titular de órgão da pessoa jurídica (gerente, administrador, dirigente e gestor) não é detentor. No exercício de suas atribuições, seus atos não seus, mas da própria pessoa jurídica, que é a possuidora. Os órgãos não representam, mas sim apresentam a pessoa jurídica.7
É interessante observar que essa reflexão também é feita Direito Português, conforme esclarece Manuel Rodrigues e Fernando Luso Soares: "(...) nunca se pos em dúvida que as pessoas jurídicas pudessem adquirir a posse por intermédio dos seus órgãos e prepostos."8
Contudo, o Código Civil Português surpreende por não dispor expressamente a capacidade de pessoa jurídica adquirir a posse, apesar da matéria não gerar discussão.
Nota-se que, por opção legislativa, o artigo 1226 do seu Código optou por reproduzir o texto do Código Civil Português de 1867 e que esse, na verdade, não disciplinou exaustivamente os sujeitos capazes de adquirir a posse, conforme transcrito abaixo:
Art. 1266. (Capacidade para adquirir a posse). Podem adquirir posse todos os que têm o uso da razão, e ainda os que não têm, relativamente às coisas susceptíveis de ocupação.
De todo modo, o ordenamento jurídico português segue a mesma linha do brasileiro no que se refere à possibilidade da pessoa jurídica ser titular da posse e ao tratamento da posse como matéria complexa que não encerra o seu estudo pela leitura dos dispositivos legais.
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1 BRASIL. Congresso Nacional. Código Civil. Brasília. 10.01.2002. "Art. 1.205. A posse pode ser adquirida: I - pela própria pessoa que a pretende ou por seu representante; II - por terceiro sem mandato, dependendo de ratificação."
2 Nesse mesmo sentido dispõe Francisco Eduardo Loureiro: "Podem adquirir a posse, segundo o inciso do I do artigo em exame, a própria pessoa que a pretende, ou o seu representante. No caso da própria pessoa, podem adquirir tanto a pessoa natural como a pessoa jurídica, esta mediante atuação de seus órgãos". LOUREIRO, Francisco Eduardo. PELUSO, Antônio Cezar (org). Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 11ª Ed. São Paulo: Manole, 2017, p. 1.095.
3 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume 5: direitos reais. 10ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2014 p.140.
4 SILVA, Wilson Melo da. Pessoas jurídicas. Belo Horizonte: Revista da Faculdade de Direito da UFMG, 1966, p.98.
5 SILVA, Wilson Melo da. Pessoas jurídicas. Belo Horizonte: Revista da Faculdade de Direito da UFMG, 1966,
p.96.
6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do Direto Civil. Introdução ao direito civil; teoria geral de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.310, 312, 313 e 314.
7 LÔBO, Paulo. Direito Civil das coisas. São Paulo: Saraiva, 2015, p.56.
8 RODRIGUES, Manuel; SOARES, Fernando Luso. A posse: estudo de direito civil português. Coimbra: Almedina, 1996, p.191.
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AZEVEDO, Antônio Junqueira de; CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil: parte especial: do direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2005.
BESSONE, Darcy. Direitos reais. São Paulo: Saraiva, 1988.
CORDEIRO, António Menezes. A posse: perspectivas dogmáticas actuais, 3ª Ed. Coimbra: Almedina, 2005.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: volume 5: direitos reais. 10ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2014.
LIMA, Fernando Andrade Pires de; VARELA, João de Matos Antunes. Código Civil Anotado Volume II (Artigos 762.º a 1250.º) 2ª Ed. Coimbra: Editora Coimbra, 1987.
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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do Direto Civil. Introdução ao direito civil; teoria geral de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
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*Nathália Mendes é advogada do escritório Chenut Oliveira Santiago Advogados.