Segundo a melhor doutrina1, são direitos fundamentais aqueles representativos das liberdades públicas, que constituem valores eternos e universais, impondo ao Estado sua fiel observância e amparo irrestrito. É dizer, em outras palavras, que os direitos fundamentais constituem legítimas prerrogativas de liberdade, igualdade e dignidade humana, que, formando um núcleo inviolável de nossa sociedade política, asseguram ao homem uma existência digna, livre e isonômica2.
Neste diapasão, temos, no corpo do Texto Constitucional (vide art. 9º, caput, supracitado), que é assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender – o que nos permite concluir, por sua própria essência, que, muito embora tratado formalmente como um direito social, o instituto da greve sempre esteve garantido aos trabalhadores como direito fundamental propriamente dito, ao menos desde o advento da Constituição Federal de 88.
Há inclusive, nesse sentido, diversas decisões dos mais variados graus de jurisdição, que reforçam a ideia de ser o direito à greve um direito fundamental do trabalhador, e, portanto, irrenunciável por parte deste e inegociável por parte do Poder Público, se adotado em seu sentido mais estrito. Veja-se, pois, para que lado pende a jurisprudência:
"… 4. DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS. REGULAMENTAÇÃO DA LEI DE GREVE DOS TRABALHADORES EM GERAL (LEI 7.783/89). FIXAÇÃO DE PARÂMETROS DE CONTROLE JUDICIAL DO EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE PELO LEGISLADOR INFRACONSTITUCIONAL. 4.1. A disciplina do direito de greve para os trabalhadores em geral, quanto às "atividades essenciais", é especificamente delineada nos arts. 9o a 11 da lei 7.783/89. Na hipótese de aplicação dessa legislação geral ao caso específico do direito de greve dos servidores públicos, antes de tudo, afigura-se inegável o conflito existente entre as necessidades mínimas de legislação para o exercício do direito de greve dos servidores públicos civis (CF, art. 9o, caput, c/c art. 37, VII), de um lado, e o direito a serviços públicos adequados e prestados de forma contínua a todos os cidadãos (CF, art. 9o, §1o), de outro. Evidentemente, não se outorgaria ao legislador qualquer poder discricionário quanto à edição, ou não, da lei disciplinadora do direito de greve. O legislador poderia adotar um modelo mais ou menos rígido, mais ou menos restritivo do direito de greve no âmbito do serviço público, mas não poderia deixar de reconhecer direito previamente definido pelo texto da Constituição. Considerada a evolução jurisprudencial do tema perante o STF, em sede do mandado de injunção, não se pode atribuir amplamente ao legislador a última palavra acerca da concessão, ou não, do direito de greve dos servidores públicos civis, sob pena de se esvaziar direito fundamental positivado. Tal premissa, contudo, não impede que, futuramente, o legislador infraconstitucional confira novos contornos acerca da adequada configuração da disciplina desse direito constitucional. 4.2 Considerada a omissão legislativa alegada na espécie, seria o caso de se acolher a pretensão, tão-somente no sentido de que se aplique a lei 7.783/89 enquanto a omissão não for devidamente regulamentada por lei específica para os servidores públicos civis (CF, art. 37, VII). 4.3 Em razão dos imperativos da continuidade dos serviços públicos, contudo, não se pode afastar que, de acordo com as peculiaridades de cada caso concreto e mediante solicitação de entidade ou órgão legítimo, seja facultado ao tribunal competente impor a observância a regime de greve mais severo em razão de tratar-se de "serviços ou atividades essenciais", nos termos do regime fixado pelos arts. 9o a 11 da Lei no 7.783/1989. Isso ocorre porque não se pode deixar de cogitar dos riscos decorrentes das possibilidades de que a regulação dos serviços públicos que tenham características afins a esses "serviços ou atividades essenciais" seja menos severa que a disciplina dispensada aos serviços privados ditos "essenciais". 4.4. O sistema de judicialização do direito de greve dos servidores públicos civis está aberto para que outras atividades sejam submetidas a idêntico regime. Pela complexidade e variedade dos serviços públicos e atividades estratégicas típicas do Estado, há outros serviços públicos, cuja essencialidade não está contemplada pelo rol dos arts. 9o a 11 da lei 7.783/89. Para os fins desta decisão, a enunciação do regime fixado pelos arts. 9o a 11 da lei 7.783/89 é apenas exemplificativa (numerus apertus)."
(MI 708, relator(a): min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/07, DJe-206 DIVULG 30-10-08 PUBLIC 31-10-08 EMENT VOL-02339-02 PP-00207 RTJ VOL-00207-02 PP-00471)
Inolvidável, também, a discussão que recai sobre a possibilidade de se garantir o direito de greve ao trabalhador, cujo serviço público encarregado seja de ordem essencial – questão essa que, sendo de análise mais delicada, pôde ser melhor abordada em nosso trabalho O princípio da continuidade do serviço público, apresentado à Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito do Estado, no ano de 20113.
De todo modo, a fim de brevemente abordar o tema, explica-se que se considera serviço público aquele integrante do direito administrativo, representativo da atividade [prestacional] realizada no âmbito das atribuições da Administração, inserida no Executivo, e por meio da qual o poder público propicia algo necessário à vida coletiva – como, por exemplo, água, energia elétrica, transporte urbano, dentre outros itens indispensáveis à coletividade4.
Assim tem-se, também, que da categoria de serviços públicos advém diversas outras classificações referentes à esta classe, como, por exemplo, a distinção feita entre os serviços públicos de competência exclusiva, os concorrentes e os passíveis de delegação, ou então daquela que diferencia os serviços em uti universi (que não têm destinatários determinados) e uti singuli (prestados a usuários individualizados).
Entretanto, para o fim de seguir-se diretamente ao ponto central da presente discussão, nos ateremos apenas e tão somente à classificação de serviços públicos em não essenciais (aqueles cuja prestação pode ser adiada) e essenciais (que, por sua vez, caracterizam-se por seu atendimento não comportar interrupção, salvo em situações excepcionais previstas em lei).
Sobre esta mestra distinção, colacionamos lição de inocultável clareza do ilustre jurista Diógenes Gasparini:
Quanto à essencialidade, podem ser: essenciais e não essenciais. São essenciais os assim considerados por lei ou os que pela própria natureza são tidos como de necessidade pública, e, em princípio, de execução privativa da administração pública. São exemplos os serviços de segurança nacional, de segurança pública e os judiciários. (…) São não essenciais os assim considerados por lei ou os que, pela própria natureza, são havidos de utilidade pública, cuja execução é facultada aos particulares. (…) Os essenciais, em princípio, não podem ser executados por terceiros. O mesmo não ocorre com os não essenciais, cuja execução não só pode como, em alguns casos, é até permitida e desejada5.
Destarte, para garantir a coexistência pacífica da relação norma versus direito, editou-se, em 1989, a lei 7.783, cuja previsão do art. 11, caput e parágrafo único prevê que, nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade; e que, são necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.
Ora, pois, mais especificamente no que diz respeito à última parte do dispositivo legal supracitado, explica-se que as carreiras militares e as equivalentes à estas por analogia, enquadram-se na seara dos serviços públicos essenciais, cuja necessidade de prestação, como já frisado, é deveras inadiável, justamente em razão de sua ausência perigar em danos massivos à população.
Não foi por outro motivo, senão precisamente em decorrência de sua característica de serviço público essencialíssimo, que a própria Constituição Federal vedou, expressamente, a sindicalização e a greve dessa categoria, dispondo que ao militar são proibidas a sindicalização e a greve (art. 42, § 1º, cc art. 142, § 3º, IV).
Entretanto, vale mencionar que, muito embora sejam os direitos fundamentais necessários à existência digna dos seres humanos, estes não podem e nem devem ser encarados como cláusulas absolutas, devendo, portanto, serem sopesadas as peculiaridades do caso concreto para decidir-se quanto à relativização destes direitos, ou não.
Perceba-se, assim, que segue-se aqui o mesmo raciocínio do renomado filósfo alemão Robert Alexy6, exarado em sua obra A Theory of Constitucional Rights. segundo o qual há que se considerar como absoluta somente a necessidade de ponderação de princípios e interesses da sociedade como um todo, e não apenas um ou outro direito garantido em determinada ordem legal de um país.
Neste sentido vem decidindo a jurisprudência brasileira, como se vê:
EMENTA Agravo regimental na reclamação. Ausência de ataque específico aos fundamentos da decisão agravada. Reclamação como sucedâneo recursal. Direito de greve. Policial civil. Atividade análoga a de policial militar. Agravo regimental a que se nega provimento. 1. Não subsiste o agravo regimental quando não há ataque específico aos fundamentos da decisão impugnada (art. 317, RISTF). 2. Necessidade de aderência estrita do objeto do ato reclamado ao conteúdo das decisões paradigmáticas do STF para que seja admitido o manejo da reclamatória constitucional. 3. As atividades desenvolvidas pelas polícias civis são análogas, para efeito do exercício do direito de greve, às dos militares, em relação aos quais a Constituição expressamente proíbe a greve (art. 142, § 3º, IV). Precedente: Rcl 6.568/SP, relator o ministro Eros Grau, Tribunal Pleno, DJe de 25/9/09. 4. Agravo regimental não provido.
(STF – Rcl: 11246 BA, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 27/2/14, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-065 DIVULG 1-4-14 PUBLIC 2-4-14)
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. PRELIMINARES. PERDA SUPERVENIENTE DO OBJETO. INCOMPETÊNCIA. REJEIÇÃO. GREVE DE POLICIAIS CIVIS. IMPOSSIBILIDADE. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. DEFERIMENTO. ART. 273 DO CPC. REQUISITOS. PRESENÇA. 1.Em ação em que se discute a ilegalidade de greve de servidores públicos, o encerramento do movimento paredista não implica a perda superveniente do objeto, pois subsiste o interesse do Estado na declaração de ilegalidade da paralisação. 2.Compete a uma das Câmaras Cíveis deste Tribunal processar e julgar ação em que se discute greve de policiais civis do DF. 2.1. Precedente: Não havendo na Lei de Organização Judiciária do DF ou no Regimento Interno deste egrégio Tribunal qualquer previsão acerca da competência para processar e julgar demandas envolvendo movimento grevista de servidores públicos, cabe à qualquer das Câmaras Cíveis o exame do dissídio coletivo, até que seja definitivamente fixada regra de competência (20090020046138DIV, Relatora Nídia Corrêa Lima, 3ª Câmara Cível, DJE 23/11/09, p. 67). 3.Segundo o art. 273 do CPC, a antecipação da tutela depende de prova inequívoca de verossimilhança da alegação, além do fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou do abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu. 3.1. Prova inequívoca da verossimilhança equivale à eminentemente documental, que possibilita uma análise de cognição sumária, isto é, não definitiva, quanto à probabilidade de êxito da tese autoral. 3.2. Demonstrado o fumus boni iuris (fumaça do bom direito), também deve haver receio de dano irreparável ou de difícil reparação, quer dizer, o periculum in mora (perigo da demora), cabendo à parte provar que a demora na tutela jurisdicional é suscetível de causar-lhe dano irreparável ou de difícil reparação. 3.3. Finalmente, de forma alternativa à iminência de dano, a tutela pode ser antecipada quando houver abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu, ou seja, são aqueles casos que normalmente configuram litigância de má-fé por parte do réu. 4.São verossímeis os argumentos expostos pelo DF, seja porque a atividade policial é um serviço essencial, seja porque o Supremo Tribunal Federal e esta Corte já se manifestaram pela inconstitucionalidade e ilegalidade dos movimentos paredistas desenvolvidos por policiais (Rcl 6568, rel. min. Eros Grau, Tribunal Pleno, DJe 24/9/09). 5.O fundado receio de dano irreparável à população do Distrito Federal se evidencia pelo potencial risco de aumento da criminalidade, como consequência da greve dos policiais civis. 6.Presentes os requisitos elencados no art. 273 do CPC, mostra-se correta a decisão que antecipou os efeitos da tutela, para suspender o movimento paredista da PCDF. 7.Agravo regimental improvido.
(TJ-DF – AGR1: 201400202710951 Petição, Relator: JOÃO EGMONT, Data de Julgamento: 27/4/15, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 30/4/15 . Pág.: 128)
Assim foi que, para reforçar ainda mais a posição da Corte, o Supremo Tribunal Federal, em decisão recente que considerou o cenário das últimas manifestações envolvendo profissionais da área militar nos Estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro, entendeu por bem decidir como inconstitucional o direito de greve para policiais e servidores públicos que atuem diretamente na área de segurança pública.
Na ocasião de julgamento do ARE 654.432, o Plenário computou 7 votos a favor da inconstitucionalidade de greve desses profissionais, e 03 contrários, estes os quais votaram pelo direito de greve dos policiais, sob as condições de prévia comunicação ao Judiciário e obediência à determinadas limitações impostas pelo Supremo, como a proibição do porte de armas e distintivos em manifestações. Veja-se, abaixo, a síntese da decisão:
"O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 541 da repercussão geral, deu provimento ao recurso e fixou a seguinte tese: "1 – O exercício do direito de greve, sob qualquer forma ou modalidade, é vedado aos policiais civis e a todos os servidores públicos que atuem diretamente na área de segurança pública. 2 – É obrigatória a participação do poder público em mediação instaurada pelos órgãos classistas das carreiras de segurança pública, nos termos do art. 165 do CPC, para vocalização dos interesses da categoria".7
Ainda nos mesmos autos, juntou-se parecer favorável à inconstitucionalidade da greve, de lavra da Advocacia Geral da União, cujo excerto destaca-se a seguir: “A atividade policial, inerente ao dever do Estado de garantir a segurança pública, é um serviço indispensável para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e dos bens, não podendo ser sobreposto o interesse individual de uma determinada categoria de servidores públicos ao bem comum”.8
Por fim, e para sintetizar a teoria, evoca-se novamente a Theorie der Grundrechte: Die Institutionalisierung der Menschenrechte im demokratischen Verfassungsstaat9, de Alexy, para concluir que, não obstante todo o cuidado legislativo consagrado pelo constituinte no que diz respeito aos direitos fundamentais, até mesmo a dignidade humana, quando refletida no direito de greve, poderá ser relativizada caso sua apreciação absoluta resulte em um perigo maior para a manutenção da ordem pública.
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1 Sobre isso consultar: LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13ª ed. São Paulo: Saraiva. 2009. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. ARAUJO, Luiz Alberto David. JUNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
2 GAVIÃO PINTO, Alexandre Guimarães. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 8.5.17 às 15h24min.
3 GENOSO, Gianfrancesco. O princípio da continuidade do serviço público. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2011.
4 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 11.ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 313.
5 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 11.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 294.
6 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio A. Da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008
7 Disponível em: Clique aqui. Acesso em 8.5.17 às 16h33min.
8 Ibidem.
9 Idem item 06.
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