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O combate à misoginia e a lei n.º 13.642, de 3 de abril de 2018

Foi adicionada a Polícia Federal uma nova atribuição: investigar os crimes praticados na internet que tenham conteúdo misógino. De acordo com o dispositivo legal, define-se o conteúdo misógino como sendo aqueles que “propagam o ódio ou a aversão às mulheres”.

10/4/2018

Foi publicada lei1 que adicionou mais uma atribuição à Polícia Federal: investigar os crimes praticados na internet que tenham conteúdo misógino. De acordo com o dispositivo legal, define se o conteúdo misógino como sendo aqueles que “propagam o ódio ou a aversão às mulheres”.

No mesmo dia, houve outra importante alteração legislativa para o direito das mulheres – a tipificação como crime o descumprimento de medidas protetivas de urgência. Esta última tem como escopo efetivar o cumprimento da lei Maria da Penha, sendo celebrada e recebida com entusiasmo pelos movimentos feministas.

Entretanto, a introdução de mais uma infração penal passível de investigação pela Polícia Federal, na forma do inciso I do § 1.º do artigo 144 da CF, pese embora seja uma iniciativa louvável, dá ensejo a uma reflexão sobre sua força para produzir os efeitos a que se pretende.

Consoante exposto na justificação da norma, o legislador reconhece as inúmeras formas de violência práticas contra a mulher: a violação de seus corpos, por intermédio da violência sexual, as agressões físicas, seja no âmbito doméstico ou fora dele, bem como as inúmeras ofensas sofridas diariamente na rede mundial de computadores, ou, vulgarmente designada internet. Nesta perspectiva, atribui à Polícia Federal a incumbência de proceder à investigação de crimes cometidos por intermédio da internet que propaguem o conteúdo misógino2.

Por conseguinte, se fizéssemos uma leitura superficial do dispositivo legal, poderíamos cair em erro, ao compreender que uma mensagem, imagem, música ou som com conteúdo misógino é crime passível de ser investigado pela Polícia Federal. Entretanto, a lei só fixa esta atribuição à Polícia Federal nos casos em que forem praticados um ou mais crimes por intermédio da internet que propaguem conteúdo misógino.

Em rigor, deverá ser observado um conjunto de requisitos cumulativos para que a investigação possa ser efetuada pela Polícia Federal: 1 - a prática de um ou mais crimes; 2 - com repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme; 3 - por meio da rede mundial de computadores; e, 4 - com propagação de conteúdo misógino.

Pois bem.

Em linhas gerais, antes da edição da lei nº 13.642, de 3 de abril de 2018 já era possível a Polícia Federal investigar os crimes praticados na rede mundial, seja com difusão de conteúdo misógino ou não, se estivessem presentes os requisitos do caput da lei n.º 10.446, isto é, repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme. Acrescente-se que o parágrafo único do artigo 1.º da Lei n.º 10.446, de 8 de maio de 2002, exige a autorização/determinação do Ministro de Estado da Justiça.

Dito de outra maneira, caso fosse praticado um crime na internet que exigisse repressão uniforme e fosse autorizada/determinada a sua investigação pelo Ministro da Justiça, a Polícia Federal detinha atribuição para proceder a apuração do caso. Assim, num exame prévio, esta adição não estabeleceu um novo direito, tampouco inovou na ordem jurídica.

Por outro lado, pode-se argumentar que a edição da lei reforçou uma proteção dada às mulheres, uma vez que qualquer conteúdo online que possa ser enquadrado como crime, cujo teor propaga a misoginia, poderá ser investigado pela PF. De fato, sua importância reside em determinar esta atribuição à PF, por esta possuir melhores condições materiais de coibir e combater os crimes praticados na internet.

Não obstante, surgem outras questões que não poderão ser negligenciadas desta análise. Inicialmente, trata-se de uma medida voltada para a proteção exclusiva das mulheres, pois não inclui conteúdo de ódio aos homens ou pessoas LGBTI, ou seja, a lei quer coibir os crimes praticados na internet com conteúdos ofensivos contra as mulheres pela simples razão de serem mulheres.

Com efeito, pode-se questionar a constitucionalidade da norma por violar o princípio da igualdade, uma vez que cria uma diferenciação infundada voltada para determinado sexo3, pois exclui os homens da sua esfera de incidência. Todavia, afastamos essa linha argumentativa ao considerá-la como uma medida de igualdade material ligada ao ideário de justiça e com uma justificação legítima (Novais, 2014), qual seja, garantir maior proteção aos direitos humanos das mulheres.

Por outro lado, podem surgir questões que não são esclarecidas pela norma. Por exemplo, na eventualidade da prática de um crime por meio da rede mundial de computadores que difunda conteúdo de ódio contra as lésbicas ou evangélicas, por exemplo, esta hipótese está enquadrada na previsão legal? Isso porque a lei estabelece que o conteúdo difundido deve ser misógino, é dizer, um conteúdo de ódio ou aversão às mulheres como uma categoria global.

Outro ponto de fundamental importância: o que podemos considerar um conteúdo misógino? Um meme4 contendo texto depreciativo sobre as mulheres, ou uma ofensa direta a uma mulher contendo xingamentos voltados a depreciá-la5? A divulgação de fotos íntimas de mulheres na internet, o denominado revenge porn?

Nesta medida, o aspecto subjetivo poderá causar grande dificuldade para enquadrar o fato ao tipo legal. Destarte, serão suscitadas questões relativas à competência da Justiça Federal, uma vez que a norma não estabelece o que é um conteúdo de ódio ou aversão às mulheres. Pode parecer simples emoldurar um item online como misógino, mas o mundo virtual é complexo e se adapta com muita velocidade aos obstáculos criados pela lei.

Dessa maneira, não estamos a discursar contra as ferramentas legislativas criadas em prol da defesa dos direitos das mulheres, mas sim a ponderar se tais instrumentos são efetivos ao fim que se propõem no mundo real.

Ora, é de suma relevância coibir a difusão de conteúdos que contenham em sua essência discurso de ódio, sejam sexistas ou misóginos, tão propagados na rede mundial de computadores, pois é uma forma de violência contra as mulheres e afronta a igualdade de gênero. Vemos com frequência memes a incentivar a prática de estupro, violência física, a objetificar e humilhar as mulheres, além de comentários e músicas ofensivas.

Na atualidade, esta matéria está prevista no Código Penal de alguns países, nomeadamente, a França, Holanda e Lituânia, em leis anti-discriminatórias, leis sobre igualdade de gênero, leis de violência contra a mulher, entre outros. Contudo, são poucos os casos julgados pelos tribunais envolvendo o discurso de ódio sexista, resultante da falta de clareza da legislação, ausência de conhecimento sobre a matéria, obstáculos para a identificação da autoria ou mesmo um tratamento sério para apuração do fato. Entretanto, há exemplos de condenações por discurso de ódio sexista, como o caso do autor de um tweet contendo ameaças de estupro condenado em setembro de 2014 a pena de 18 semanas de prisão ou autores de mensagens abusivas no Twitter sentenciados a pena de 12 e 8 semanas, todos no Reino Unido (Conselho da Europa, 2016).

No entanto, quando é feita a opção pela via legislativa, ainda mais no âmbito penal, deve-se ter em consideração a repercussão das medidas, para que elas não se tornem mais uma folha num oceano de papéis à deriva.

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1 Lei n.º 13.642, de 3 de abril de 2018, que altera a Lei n.º 10.446, de 8 de maio de 2002.

2 V. PL n.º 4614/2016. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2018/lei-13642-3-abril-2018-786403-
norma-pl.html.

3 Utilizamos no texto a definição de sexo como o conjunto de diferenças biológicas existentes entre mulheres e
homens.

4 Meme é um termo utilizado no mundo virtual que faz alusão ao fenômeno da “viralização” de conteúdos diversos,
como vídeo, imagem, foto, som e etc., que se espalha com velocidade para um grande número de pessoas. Disponível
em: https://www.significados.com.br/meme/.

5 O Conselho da Europa define o discurso de ódio sexista como expressões que divulguem, incitem, promovam ou
justificam o ódio, com base no sexo. Assim, ele apresenta-se de diversas maneiras, como: culpabilização da vítima
propagação de ofensas, divulgação de fotos íntimas sem consentimento (revenge porn), ameaças de morte,
comentários ofensivos à aparência, sexualidade, orientação sexual, utilização do humor para humilhar ou ridicularizar
as mulheres, entre outros (Conselho da Europa, s.d.). Disponível em: https://rm.coe.int/1680651592

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Council of Europe (s.d.). Combating Sexist Hate Speech. [PDF]. Geneva: Council of Europe.
Disponível em: https://rm.coe.int/1680651592.
Council of Europe (2016). Prepared by the Gender Equality Unit. [PDF]. Geneva: Council of
Europe. Disponível em: https://rm.coe.int/168059ad42.
Novais, Jorge Reis (2014). Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa.
Coimbra: Coimbra Editora.
PL n.º 4614/2016. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2018/lei-13642-3-abril2018-786403-norma-pl.html.

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*Paloma Paes Rodrigues é advogada e mestranda em Direito Constitucional da Universidade de Lisboa.

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