Migalhas de Peso

O HC coletivo para presas grávidas e mães: críticas à recente decisão do STF

Superado o furor causado pelo conteúdo humanístico da decisão, a decisão deve ser analisada sob o viés jurídico.

13/3/2018

Em meio a um cenário político-econômico conturbado, em que os olhos se voltavam para a intervenção federal no Rio de Janeiro e a possibilidade de aprovação de emenda constitucional referente à reforma da Previdência, eis que em 20 de fevereiro de 2018 a 2ª turma do STF concedeu, por maioria, habeas corpus coletivo a todas as presas grávidas e mães de crianças de até 12 anos de idade ou que sejam responsáveis por pessoas com deficiência, assim como às adolescentes do sistema socioeducativo em situação semelhante. A leitura do voto do relator, ministro Ricardo Lewandowski, é imprescindível para a reflexão sobre as críticas ora tecidas (HC 143.641-SP).

O writ foi impetrado por membros do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos. Contudo, o ministro relator, após firmar entendimento acerca da viabilidade de concessão do habeas corpus coletivo, da mesma forma como já julgado por Tribunais de Justiça, como o TJRS, e pelo STJ, entendeu que a legitimidade ativa para impetrar referido remédio constitucional deve ser reservada aos entes listados no artigo 12, da lei 13.300/16. Assim, por analogia ao que dispõe a legislação referente ao mandado de injunção coletivo, reconheceu a legitimidade ativa da Defensoria Pública da União, por se tratar de ação de abrangência nacional, admitindo os demais impetrantes como amici curiae.

A ordem foi parcialmente concedida para o fim determinar que a prisão preventiva de todas as mulheres nas condições antes citadas seja substituída pela prisão domiciliar, excepcionando as acusadas/condenadas da prática de crimes cometidos mediante violência ou grave ameaça, contra os próprios filhos, ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, neste último caso mediante justificativa do juiz.

Os ministros da 2ª Turma firmaram o prazo máximo 60 (sessenta) dias da publicação do acórdão para que os Presidentes dos Tribunais Estaduais e Federais, inclusive da Justiça Militar Estadual e Federal, implementem de modo integral as determinações estabelecidas no julgado, à luz dos parâmetros enunciados. Ainda, determinou-se que o DEPEN informasse os Juízos sobre mulheres detentas e que seja aplicada a ordem já nas audiências de custódia.

Pois bem. É inarredável que a decisão proferida no aludido habeas corpus tem o mérito de olhar para a realidade social, atentar para os problemas sociais, para o caos carcerário, enfim, de reconhecer o fracasso estatal no sistema penitenciário e a necessidade de se proteger direitos fundamentais do filho da encarcerada, desde sua fase fetal.

No entanto, superado o furor causado pelo conteúdo humanístico da decisão, a decisão deve ser analisada sob o viés jurídico.

A primeira questão refere-se ao cabimento do writ coletivo. Ora, inexiste previsão legal e constitucional para tanto. Trata-se de mais uma criação da Suprema Corte para atender "razões de política judiciária", conforme constou do próprio voto do Relator. Como se fosse possível considerar idênticos todos os casos de prisão preventiva que se quisesse abranger pela ordem coletiva. Como se não fosse necessária uma análise casuística, à luz da situação concreta, na forma demandada pelos requisitos da prisão preventiva (CPP, art. 312) para se conceder (ou não) a liberdade. Ainda que o Poder Judiciário esteja abarrotado dessas ações constitucionais para julgamento, não está autorizado a decidir coletivamente quando assim entender, na medida em que generaliza posições muitas vezes incompatíveis para todos os casos.

Não fosse isso, há outros instrumentos jurídicos, expressamente previstos na legislação e na Constituição para se tutelar direitos de pessoas submetidas pelo Estado ao encarceramento. Notadamente tem-se a ADPF, como reconhece o nobre Relator, e a ação civil pública, ao alcance do Parquet e de entidades de classe.

Ainda na parte do conhecimento do habeas corpus coletivo, não vemos qual é a analogia que se pode fazer com as regras e rol de legitimados do mandado de injunção, nos termos da lei 13.300/16. Ora, sendo meio de integração do Direito, a analogia somente se aplica na hipótese de inexistir regra específica disciplinando o instituto jurídico, razão pela qual o ordenamento jurídico autorizaria o "empréstimo" de regras tidas como semelhantes de outros institutos. E se o HC está totalmente desenhado juridicamente capítulo X do livro III do Código de Processo Penal (artigos 647 a 667) e na Constituição (Art. 5o, inciso LXVIII), por que precisaria ser complementado por normas incidentes para o mandado de injunção? Lamentavelmente, isso mostra que a criação indevida do Direito pelo STF não tem encontrado limites e que as "razões de política judiciária" ao final justificam tudo.

Não poderia ser sequer conhecido o HC coletivo.

O mérito, com a devida vênia, parece ser o conjunto de argumentos filosóficos, sociológicos e políticos, recheados de dados estatísticos, comumente usados em discussões parlamentares para a aprovação de uma alteração legislativa. Sentimo-nos lendo a exposição de motivos de uma lei recém-saída do "forno" do Poder Legiferante. Para nosso estarrecimento até matéria da "Revista Época" virou argumento de reforço "jurídico".

A situação de precariedade das cadeias e penitenciárias brasileiras não afeta apenas mulheres grávidas. Ela é notória, sendo degradante para todos aqueles que se encontram custodiados. E de quem é a responsabilidade primeira por esse estado de coisas inconstitucional? Do Poder Judiciário? Parece-nos que não. Ainda cabe ao Poder Executivo gerir o sistema prisional. Isso deve ser colocado com clareza. Nem o Judiciário nem o Ministério Público possuem condições jurídico-econômicas, também por não terem a chave do cofre, de promover resolução definitiva para essa problemática. Não são decisões coletivas, completamente desprovidas de fundamento jurídico e, portanto, ativistas-consequencialistas, que a Suprema Corte vai aliviar o seu acervo processual e concomitantemente livrar as pessoas presas das agruras do cárcere brasileiro.

Ninguém em sã consciência defenderia que o sistema carcerário traz benefícios para mulheres grávidas ou com filhos pequenos. Isso se revela evidente. A violação aos direitos humanos mostra-se diuturna1. Contudo, existe uma linha clara dos limites do Judiciário, a lei (desde que entendida como constitucional) e a Constituição, que num Estado Democrático de Direito deveria ser intransponível, principalmente pela instância judicial máxima. Vale dizer, se a lei não é reconhecida como inconstitucional, não pode a Corte Excelsa criar hipótese não prevista pelo legislador.

Qual a ilegalidade ou o abuso de poder tutelado por este HC?

Outrossim, excetuou-se na peculiar decisão crimes praticados com violência ou grave ameaça, ou contra seus descendentes ou situações excepcionalíssimas. Salta aos olhos uma contradição interna do julgado. Isso porque todo aquele estado inconstitucional de coisas referente à penúria do cárcere vivenciada pelas mulheres presas não se aplicaria às que praticarem crimes com violência ou grave ameaça. Ora, ou a situação é idêntica para todas, em atenção ao princípio da isonomia, como quis referir a Suprema Corte, ou essa invenção jurídica – data venia – não se sustenta na gênese. Ademais, o que seriam essas "situações excepcionalíssimas"? Novamente o STF terá que dizer no que isso se encaixa? Por exemplo, uma mãe traficante, reincidente específica, que "esforçadamente" sustenta sozinha dois filhos pequenos com essa prática criminosa, enquadra-se na "situação excepcionalíssima" e pode continuar presa preventivamente? Ou o caso dela cai na vala comum e ela deve continuar solta traficando drogas?

Em outras palavras, por meio do habeas corpus coletivo houve verdadeira alteração do artigo 318, do Código de Processo Penal, para especificar casos em que o magistrado resta obrigado a conceder a liberdade provisória.

Repisando-se: os termos do decisum não deixam dúvidas de que se está diante de uma demonstração de ativismo judicial por parte do STF, que assim o faz sem nenhuma pretensão de deixar apenas subentendida tal ilação. Do contrário, evidenciou-a.

Espera-se que tal julgado não estimule inconsequentes gestações indesejadas, no que diz respeito ao planejamento familiar, mas planejadas para um contexto de habitualidade criminal.

Para selar a nossa impressão de que o STF legislou indevidamente, invadindo competência constitucional do Poder Legislativo e violando a separação de Poderes (CF, art. 2o), a decisão chegou ao ponto de instituir uma espécie de "vacatio", determinando-se que os Presidentes dos Tribunais apliquem as determinações (ou "os princípios e regras", como destacado no voto do eminente Relator) no prazo de sessenta dias. E cada vez que nos deparamos com decisões claramente criadoras do Direito pela Suprema Corte ficamos preocupados com a já combalida força normativa da Constituição Federal, tão aviltada e esquecida quanto uma criança perdida na selva cheia de predadores.

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1 Reconhecemos, portanto, que estabelecimentos penais não são locais adequados para o desenvolvimento – ainda que fetal – de um ser humano. No entanto, também é uma forma de preservar a dignidade humana evitar sua “coisificação, tal como a ideia bem colocada por Francesco D'Agostino (Bioética: segundo o enfoque da filosofia do direito. Tradução de Luísa Raboline. São Leopoldo: UNISINOS, 2006). Implica dizer: a ideia da gestação como um impedimento absoluto à garantia da ordem pública, à aplicação da lei penal, à ordem econômica ou à efetividade da instrução criminal, requisitos da prisão preventiva, irremediavelmente coisifica o feto, tornando-o um meio para impedir que a lei seja aplicada e, assim, alimentando a sensação de impunidade e ameaçando a paz social. Em outras palavras, o feto não pode ser visto como um habeas corpus da mãe ré/presa, mas um ser dotado de dignidade.

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*João Conrado Blum Júnior é promotor de Justiça titular da 8ª Promotoria de Justiça da Comarca de Ponta Grossa e mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa.

*Bruna Mayara De Oliveira é assessora de promotor no Ministério Público do Estado do Paraná e pós-graduanda em Direito Processual Civil (UNINTER) e em Direito Aplicado (Escola Da Magistratura Do Estado Do Paraná).

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