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A inconstitucionalidade e a ilegalidade da averbação pré-executória

É de se notar que as leis 10.522/02 e 13.606/18 (leis ordinárias) acabam por colidir com o Código Tributário Nacional, que é uma lei ordinária (lei 5.172/66) que foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 com status de lei complementar.

21/2/2018

Em 9 de janeiro de 2018, foi editada a lei 13.606/18 (publicada em 10 de janeiro de 2018), que, em seu artigo 25, incluiu os artigos 20 B, 20 C e 20 E na lei 10.522/02.

Em síntese, os artigos acima mencionados disciplinaram que a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – PGFN passou a ter a prerrogativa, por meio do mecanismo denominado "averbação pré-executória", de bloquear bens do contribuinte sem o crivo do Judiciário. Em outras palavras, se o sujeito passivo, após intimado, deixar de efetuar o pagamento do débito em sua integralidade, a PGFN poderá averbar a certidão de dívida ativa junto a órgãos de registro de bens e direitos para os tornar indisponíveis por meio de arresto e penhora, sem a necessidade de o Poder Judiciário autorizar tal medida.

O mecanismo da "averbação pré-executória" foi criado em nítida inspiração ao que já é exercido em alguns países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), tal como a Alemanha e a Espanha (vide: SZKLAROWSKY, Leon Frejda. A Justiça Fiscal e a Reforma da Constituição. In Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas. Revista dos Tribunais. Volume 10. Ano 03. janeiro - março de 1995. pp. 207 a 210).

Contudo, ainda que outros países sejam adeptos de se valer de mecanismos similares para bloquear bens do sujeito passivo, faz se necessário verificar se o referido comando está em conformidade com o ordenamento jurídico pátrio, sob pena de se importar um modelo que acaba por ser inconstitucional e/ou ilegal, tal como ocorre com a "averbação pré-executória". Explica-se.

Inicialmente, de acordo com o disposto na alínea "b" do inciso III do artigo 146 da Constituição Federal, compete à lei complementar o estabelecimento de normas gerais em matéria tributária, especialmente sobre o crédito tributário.

Dr. Ricardo Varejão (Averbação pré-executória da lei 13.606/2018 é inconstitucional - acessado em 19/1/18) manifestou-se no sentido de que o artigo acima transcrito, por tratar do crédito tributário, acaba por disciplinar que a garantia do crédito tributário também é matéria reservada à lei complementar, tendo em vista a necessidade de se tratar uniformemente os créditos de todos os Entes da Federação, de modo que não é autorizada que uma lei (Federal, Estadual ou Municipal) conceda maiores prerrogativas a seus créditos tributários, em detrimento aos demais entes.

Por conta disso, já é possível justificar que o artigo 25 da lei 13.606/18, e, consequentemente, os artigos 20 B a 20 E da lei 10.522/02), são inconstitucionais.

Não bastasse isso, os artigos 20 B a 20 E da lei 10.522/02, instituídos pelo artigo 25 da lei 13.606/18, também são ilegais, eis que o Código Tributário Nacional, em seu artigo 185-A, disciplina que a indisponibilidade dos bens do devedor somente será determinada pelo Juízo e quando o sujeito passivo, devidamente citado, não pagar e nem apresentar garantia no prazo legal.

Ou seja, enquanto o Código Tributário Nacional determina que a indisponibilidade dos bens só ocorrerá se autorizada pelo Poder Judiciário e após ter o sujeito passivo sido cientificado e se mantido inerte sobre a existência do débito, os artigos 20-B a 20-E da lei 10.522/02, instituídos pelo artigo 25 da lei 13.606/18, por outro lado, antecipam a possibilidade de tornar indisponíveis os bens para uma fase pré-executória.

É de se notar, portanto, que as leis 10.522/02 e 13.606/18 (leis ordinárias) acabam por colidir com o Código Tributário Nacional, que é uma lei ordinária (lei 5.172/66) que foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 com status de lei complementar.

Percebe-se, em razão disso, que os artigos 20-B a 20-E da lei 10.522/02, instituídos pelo artigo 25 da lei 13.606/18, não são apenas inconstitucionais, tratando-se de normas ilegais também, eis que desrespeitam comando contido em norma hierarquicamente superior, tendo em vista que Código Tributário Nacional foi recepcionado com status de lei complementar pela Constituição Federal de 1988 (vide MACHADO, Hugo de Brito. Posição Hierárquica da Lei Complementar. Themis - Revista da ESMEC 1/103).

Inclusive, manifestou-se o dr. Cleucio Santos Nunes no sentido de que "sendo o CTN norma de natureza completar não poderia ser alterado por lei ordinária, ainda que veladamente. Assim, o artigo 20-B da lei 10.522, de 2002, não poderá' se sobrepor ao artigo 185-A, que disciplina para todas as Fazendas Públicas uma das garantias e privilégios que possui o crédito tributário." (Bloqueio administrativo de bens pela PGFN implicitamente revoga artigo 185 do CTN. - acessado em 19/1/18).

Entretanto, para escapar da inconstitucionalidade e da ilegalidade acima expostas, seria possível que alguém pensasse como solução a criação da "averbação pré-executória" por meio de lei complementar, de modo que ela permitisse que todos os Entes Tributantes (União Federal, Estados, Distrito Federal e Municípios) se valessem de tal mecanismo.

A ideia surgiria no sentido de que a nova norma complementar não estaria viciada, pois supostamente respeitaria a alínea "b" do inciso III do artigo 146 da Constituição Federal, de modo que o diploma normativo não seria inconstitucional e, além disso, tratar-se-ia de lei complementar que revogaria o artigo 185-A do Código Tributário Nacional, razão pela qual pretensamente não haveria ilegalidade e, assim, seria autorizado o bloqueio de bens de devedores à revelia do Poder Judiciário.

Todavia, diferentemente do que poderiam pensar os defensores dessa sistemática, a mera edição de Lei Complementar criando a "averbação pré-executória" não afastaria a inconstitucionalidade da norma, pois, embora respeitada a alínea "b" do inciso III do artigo 146 da Constituição Federal, a revogação do artigo 185-A do Código Tributário Nacional violaria os princípios da ampla de defesa e do contraditório, bem como o direito à propriedade. Explica-se.

O inciso XXII do artigo 5º da Constituição Federal assegura a todos o direito à propriedade e, em razão disso, a Constituição Federal, no inciso LIV de seu artigo 5º, disciplina que alguém só será privado de seus bens se respeitado o princípio do devido processo legal.

Desta feita, para que seja possível tornar indisponível o patrimônio do sujeito passivo que deixou de cumprir com a obrigação tributária, faz-se necessário ter autorização judicial para tanto e que o devedor seja intimado a se manifestar, respeitando-se, assim, o devido processo legal.

Por conta disso, o artigo 185-A do Código Tributário Nacional, tal como redigido atualmente, respeita o inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal, eis que a indisponibilidade dos bens do devedor somente será determinada pelo Juízo e quando o sujeito passivo, devidamente citado, não pagar e nem apresentar garantia no prazo legal.

Por outro lado, a "averbação pré-executória", seja instituída por lei ordinária (como atualmente se encontra), seja por meio de lei complementar, violará o inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal, pois esse expediente autoriza que a Autoridade Fiscal (in casu, a PGFN) determine a indisponibilidade de bens sem que seja necessário se atentar para o devido processo legal.

É bem verdade que há medidas constritivas patrimoniais que são autorizadas antes de o devedor ser cientificado da ação de execução – por exemplo, a medida cautelar fiscal. Porém, mesmo nessas situações, faz-se necessário requisitar a indisponibilidade do patrimônio ao Poder Judiciário, que verificará o cumprimento dos pressupostos legais e a demonstração do fumus boni iuris e do periculum in mora.

Além disso, o sujeito passivo é posteriormente citado para se manifestar acerca da indisponibilidade patrimonial, sendo-lhe assegurado o direito de defesa e, ao final do processo, estando ele (devedor) com a razão, cancela-se a medida constritiva, em respeito ao devido processo legal.

Em razão disso, a "averbação pré-executória" violará a Constituição Federal, mesmo que seja instituída por lei complementar, tendo em vista o latente desrespeito ao princípio do devido processo legal.

Por fim, necessário destacar que há quem acredite que o instituto da "averbação pré-executória" seria constitucional e legal.

 

Nesse sentido, tem-se o entendimento do procurador da Fazenda Nacional, dr. Allan Titonelli (Averbação pré-executória traz segurança jurídica. - acessado em 19/1/18), que se manifestou no sentido de que as críticas ao aludido instituto são similares às alegações de inconstitucionalidade e ilegalidade das leis que criaram o Cadastro Informativo dos Créditos Não Quitados de Órgãos e Entidades Federais (CADIN – lei 10.522/02) e que instituíram o protesto extrajudicial de certidões de dívida ativa (lei 12.767/12).

Continua o ilustre Procurador argumentando pela constitucionalidade e legalidade da "averbação pré-executória", pois o Egrégio STF declarou a constitucionalidade do CADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIn 1.454/DF) e do protesto extrajudicial das certidões de dívida ativa (ADIn 5.135/DF), assim como o Egrégio STJ declarou a legalidade do mencionado protesto (STJ; 2ª Turma; Recurso Especial 1.126.515/PR; relator: ministro Herman Benjamin; julgado em 3/12/13).

Ele alega que a "averbação pré-executória" seria um mero instrumento "destinado a minimizar o impacto da judicialização", de modo que se trata de um "ato administrativo extraprocessual que, independe de decisão judicial, e se destina a produzir efeitos contra terceiros, evitando tanto a fraude à execução quanto a fraude contra credores".

O ilustre Procurador conclui, dessa forma, que a medida acima mencionada se presta exclusivamente a assegurar a duração razoável do processo e para efetivar os "direitos fundamentais do credor", que "consistem na consolidação de todas as garantias de que o credor passou a dispor para ver concretizado seu direito à satisfação do seu crédito". Ou seja, em resumo, a "averbação pré-executória" se prestaria para que o princípio da máxima efetividade da execução fosse respeitado.

Em que pese o respeito que se nutre pelo Ilustre dr. Allan Titonelli, ousamos discordar de seu entendimento, como passamos a expor.

Inicialmente, em primeiro lugar, quanto à pretensa similitude entre os argumentos de inconstitucionalidade do CADIN e do protesto de certidão de dívida ativa com a argumentação de ilegalidade e inconstitucionalidade da "averbação pré-executória", essa não merece prosperar.

Isso porque, como é cediço, o cadastro do nome do devedor no CADIN e o protesto extrajudicial da certidão de dívida ativa não tornam os bens do sujeito passivo indisponíveis, apenas alertam terceiros de que aquele contribuinte possui débitos tributários que estão sendo exigidos.

É claro que determinado contribuinte que se encontre com o nome inscrito no CADIN e em instituições informativas para análise de crédito (tal como a SERASA) encontrará dificuldades para obter empréstimos e possivelmente ficará impedida de participar de licitações. Contudo, tais medidas não tornam bens do contribuinte indisponíveis.

Além disso, os cadastros não assegurarão que uma instituição financeira deixe de conceder um crédito ao sujeito passivo. Isto é, se determinado banco verificar que, apesar dos cadastros, o sujeito passivo irá quitar a dívida oriunda da disponibilização do crédito (com juros), os valores serão entregues.

Por outro lado, a "averbação pré-executória" realiza a constrição dos bens do devedor para tentar forçar a extinção do crédito tributário por meio do pagamento, evitando-se, assim, o litígio. Trata-se, portanto, de medida muito mais "invasiva" e que, por bloquear os bens do sujeito passivo, viola o inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal e o artigo 185-A do Código Tributário Nacional.

Em segundo lugar, a alegação de que os E. STF e STJ declararam a constitucionalidade e a legalidade do CADIN e do protesto da certidão de dívida ativa também não é suficiente para demonstrar eventual validade do procedimento ora criticado.

Isso porque, como mencionado, o CADIN e o protesto, por mais que criem dificuldades ao modus operandi de empresas, nenhum deles torna indisponível o bem ou os bens do devedor, enquanto que a "averbação pré-executória" é medida infindavelmente mais gravosa e, para que ela fosse válida, seria necessária a autorização do Poder Judiciário e o respeito ao devido processo legal, o que não ocorre.

Faz-se necessário salientar que o próprio dr. Allan Titonelli menciona que o protesto extrajudicial de certidão de dívida ativa foi declarado constitucional pelo E. STF "por não restringir de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos aos contribuintes e, assim, não constituir sanção política" (STF; ADIn 5.135/DF; ministro Roberto Barroso; julgado em 9/11/16).

Ou seja, aplicando-se o entendimento do ministro ROBERTO BARROSO à "averbação pré-executória", verifica-se que o instituto ora criticado, diferentemente do que ocorre com o protesto extrajudicial de certidão de dívida ativa, viola o direito à propriedade (artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal) para fazer com que o contribuinte quite o débito, constituindo, assim, verdadeira sanção política, o que torna tal mecanismo inconstitucional.

Finalmente, em terceiro e último lugar, quanto ao argumento de que a "averbação pré-executória" se prestaria a assegurar a duração razoável do processo e a evitar a fraude à execução e a fraude contra credores, tal mecanismo perde seu objeto quando lembramos de outros institutos que o Fisco tem a sua disposição para garantir a satisfação da execução.

Isso porque, como é cediço, é autorizada à Receita Federal do Brasil proceder ao arrolamento de bens do contribuinte – instituto esse de constitucionalidade questionável, mas que não é o objeto do presente estudo – que tiver dívida que ultrapasse 30% de seu patrimônio e que seja superior a R$ 2.000.000,00 (conforme artigo 64 da lei 9.532/97 e IN 1.565/15). Tal procedimento tem como objetivo permitir que o Fisco monitore o patrimônio do devedor e verifique se ele está realizando a dilapidação de seus bens.

Supostamente não se trata de medida constritiva de bens e direitos e, por conta disso, esse instituto (do arrolamento de bens) pode ser utilizado sem a necessidade de autorização judicial, ao contrário da "averbação pré-executória" que é inconstitucional e ilegal justamente por bloquear os bens do devedor à revelia do Poder Judiciário.

Além disso, caso o Fisco constate que a cobrança será frustrada (mediante dilapidação patrimonial, contração de dívidas outras que comprometam a liquidez do crédito tributário ou outras atitudes que dificultem ou impeçam a satisfação do crédito), poderá o Fisco propor medida cautelar fiscal (conforme lei 8.397/92 e artigo 15 e seguintes da IN 1.565/15).

Por ser uma medida que visa a constrição patrimonial, a cautelar fiscal necessita da autorização do Poder Judiciário. Já a "averbação pré-executória", que tem a mesma finalidade da cautelar fiscal (realizar a constrição patrimonial do devedor), procede ao bloqueio sem consultar o Juízo acerca de sua possibilidade, o que torna este procedimento inconstitucional.

Embora a medida cautelar fiscal faça com que o Juízo autorize a constrição patrimonial antes mesmo da citação do devedor, trata-se de situação excepcional de "contraditório diferido", isto é, o contribuinte, quando citado, já terá seus bens bloqueados e, apenas então, poderá se manifestar questionando a validade da medida.

É de se notar, portanto, que a "averbação pré-executória" não se presta a assegurar a efetividade da execução, pois o Fisco já possui o arrolamento de bens e a cautelar fiscal para tanto, de modo que esse novo instituto acaba por constituir, assim, verdadeira sanção política, o que torna tal mecanismo inconstitucional.

Por conta disso, respeita-se o entendimento do Ilustre Procurador, mas discordamos respeitosamente do seu pensar, eis que suas razões, data venia, não são suficientes para demonstrar a constitucionalidade e a legalidade da "averbação pré-executória".

Por outro lado, tem-se evidenciado que os artigos 20-B a 20-E da lei 10.522/02, instituídos pelo artigo 25 da lei 13.606/18, são inconstitucionais, eis que violam a alínea "b" do inciso III do artigo 146 e os incisos XXII e LIV do artigo 5º, todos da Constituição Federal, assim como são ilegais por violarem o artigo 185-A do Código Tributário Nacional.

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*Bruno Romano é sócio de serviço da área de Contencioso Administrativo Tributário do Escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados.

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