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Justiça Desportiva - Violação ao princípio da imparcialidade

O procedimento disciplinar desportivo é pautado em consolidados princípios e garantias, possibilitando que as partes envolvidas tenham absoluta certeza de que o resultado será correto e justo.

23/9/2003

Justiça Desportiva - Violação ao princípio da imparcialidade

 

Alessandro Kioshi Kishino

 

Paulo Marcos Schmitt*

 

O presente estudo tem a finalidade de fazer uma rápida abordagem sobre o princípio da imparcialidade em sede de processo disciplinar desportivo e a sua correlação com o encaminhamento de provas (notadamente as cinematográficas mediante solicitação ou apreensão de fitas de vídeo, etc) e a prévia manifestação e sua divulgação na mídia para instauração de tais procedimentos no ambiente disciplinar desportivo, especialmente diante da praxe adotada por algumas instâncias desportivas.

 

Da mesma maneira que ocorre em processos judiciais, o procedimento disciplinar desportivo é pautado em consolidados princípios e garantias, possibilitando que as partes envolvidas tenham absoluta certeza de que o resultado será correto e justo.

 

O Direito Desportivo diferencia-se dos demais ramos do direito, justamente porque está sob a égide de um determinado regime jurídico. Tal regime é composto de um conjunto sistematizado de princípios e normas, reunidos de forma coordenada e lógica, formadores de um todo unitário – o “regime jurídico desportivo”. Portanto, o conjunto de princípios peculiares desse regime, constitui o seu elemento essencial sendo considerados proposições diretoras de uma ciência. Nesse contexto, a atuação dos tribunais desportivos requer, da mesma forma, a observância de princípios que orientam o regime jurídico desportivo e que informam o processo disciplinar.

 

Destarte, princípios constitucionais como contraditório e a ampla defesa são antídotos a qualquer juízo ou tribunal de exceção. Desta feita, o processo disciplinar desportivo também necessita, para que sua decisão possua eficácia e seja respeitada, que os componentes dos órgãos judicantes tenham considerável conhecimento técnico-jurídico e que estejam totalmente desvinculados do litígio em referência.

 

Certamente não há situação mais nefasta do que um determinado procedimento disciplinar venha a ser apreciado por pessoa com interesse no resultado ou que tenha anteriormente se manifestado sobre o caso.

 

Nestas hipóteses, há flagrante violação ao Princípio da Imparcialidade, preceito intimamente ligado ao resultado justo do feito, e que se baseia principalmente em premissas éticas e morais.

 

O Código Brasileiro Disciplinar do Futebol - CBDF, em seu artigo 17, dispõe sobre as causas de impedimento dos auditores:

"Art. 17. O auditor fica impedido de intervir no processo:

 

I - Quando for credor, devedor, avalista, fiador, sócio, patrão ou empregado, direta ou indiretamente, de qualquer das partes;

 

II - Quando se houver manifestado, por qualquer forma, sobre causa em julgamento."

E, pela leitura do art. 97 do mencionado código, podemos verificar que a existência de tal situação enseja a nulidade do processo, cabendo à parte alegá-la antes do trânsito em julgado da decisão:

“Art. 97. São causas determinantes de nulidade:

 

I - a incompetência, a suspeição ou suborno do julgador;

(...)

 

§ 1° Somente a parte pode argüir a nulidade, e o fará antes de transitar em julgado a decisão, sob pena de considerar-se suprida para todos os efeitos”.

Muito embora misture os conceitos de impedimento e suspeição, notadamente de conteúdos diferenciados, fica claro que o CBDF estabelece que a parte não pode ser julgada por auditor que tenha se manifestado, previamente, sobre a questão posta em julgamento.

 

E parece óbvio que tal dispositivo também deve ser aplicado em reiterados casos veiculados na imprensa, nos quais membros de tribunais desportivos solicitam gravações de partidas e/ou lances isolados e encaminham aos órgãos competentes, para apuração da existência de infração disciplinar desportiva.

 

É inegável que tais fatos, amplamente divulgados nos meios de comunicação, caracterizam violação ao Princípio da Imparcialidade, visto que com tal comportamento, o auditor presidente de uma instância desportiva, por exemplo, deixa de lado seu papel complementar na apuração das provas, e passa a realizar atos investigativos e inquisitórios, o que o torna parcial.

 

Pelo fato da prova permitir a discussão e a formação do convencimento a respeito dos fatos necessários ao julgamento da causa, legitimando socialmente o exercício do poder jurisdicional, não é possível que os julgadores se manifestem sobre elas em momentos inadequados, principalmente antes da decisão do processo, ou quando sequer há procedimento disciplinar instaurado.

 

Muito embora seja louvável a preocupação dos presidentes de STJDs em apurar a existência de infração desportiva não relatada pela equipe de arbitragem, não poderiam adotar tal providência da maneira como fazem, deixando de lado os dispositivos legais que tratam sobre a instauração do processo disciplinar, transcritos na seqüência:

"Art. 42. O processo ordinário reger-se-á pelas disposições que se seguem:

 

I - a súmula da partida e, quando houver, os relatórios dos representantes serão entregues ao Departamento competente da entidade;

 

II - a entrega dos documentos referidos no inciso anterior será feita no primeiro dia útil após a realização da partida;

 

III - o departamento da entidade, quando verificar que a súmula relata infração disciplinar, remeterá toda a documentação ao Tribunal ou Junta competente;

 

IV - autuados os documentos, deles se dará vista à procuradoria, por dois (2) dias, para oferecer denúncia, emitir parecer ou requerer diligências ou instauração de inquérito;

 

V - nada existindo nos documentos que justifique a intervenção da Procuradoria, serão eles devolvidos ao órgão competente, após despacho de arquivamento do Presidente do Tribunal ou Junta”.

 

“Art. 43. Recebida a denúncia ou a queixa pela Presidência do Tribunal ou Junta, sorteado ou designado o Relator, será expedida a citação, com a marcação de dia e hora para o julgamento que deverá ocorrer dentro do prazo de 10 dias”.

 

“Art. 44. Se a Procuradoria, ao invés de oferecer denúncia, requerer o arquivamento do processo, o Presidente do Tribunal ou Junta, caso considere improcedentes as razões invocadas, designará outro Procurador para oferecê-la".

E mesmo que fosse aberto inquérito para apurar os fatos mostrados nas imagens captadas, há flagrante desvio de finalidade e vício de competência ao exercício de atribuições de tais presidentes de STJD, restando vedada a atuação em procedimento disciplinar correspondente, pois, ao pleitearem a abertura da peça investigativa, acabam por tornar-se parte interessada, conforme se verifica abaixo:

“Art. 45. O inquérito tem por fim apurar a existência de infrações disciplinares e as respectivas responsabilidades”.

 

“Art. 46. O pedido de abertura de inquérito, dirigido ao Presidente do Tribunal ou Junta, poderá ser feito pela Procuradoria ou pela parte interessada”.

Ao tratar dos procedimentos administrativos, Romeu Felipe Bacellar Filho ensina:

"A disciplina legal deixa a descoberto outras autoridades que desempenham funções de relevância no processo, como também outras hipóteses que rendem ensejo à dúvida sobre a parcialidade. Todavia, é possível pinçar impedimentos ou suspeições 'constitucionalmente necessários'1 para a garantia da imparcialidade".2 Assim, mesmo sem impedimento legal expressamente previsto dos membros que elaboraram o relatório, o autor supra opina no sentido de que uma das hipóteses de impedimentos ou suspeições é "a circunstância da autoridade julgadora do 'processo disciplinar' ter presidido a sindicância, que decidiu pela instauração do mesmo, não foge, à primeira vista, da incidência do regime de impedimentos. Mesmo se tratando de uma sindicância-procedimento, com cunho investigatório, a decisão de instaurar o processo administrativo, como dito, corresponde a uma acusação. E por este ângulo, a mesma pessoa a quem caiba formular ou orientar o juízo de acusação (instaurar ou não o processo disciplinar) estaria decidindo ao final sobre a culpabilidade ou inocência do servidor".3

Egon Bockmann Moreira4, ao comentar o art. 47 da Lei nº 9784/99 (legislação federal do processo administrativo), assevera que:

"A única peculiaridade do processo administrativo reside na possibilidade de o órgão que participa da instrução não ser aquele que proferirá a decisão (art. 47). Medida de todo saudável, vez que muitas vezes a Administração é parte no processo. Ao transferir a competência decisória para outro órgão a Lei 9.784, de 1999, prestigia a imparcialidade e moralidade do processo administrativo."

Interessante, ainda, transcrever as palavras de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari5 sobre o princípio da imparcialidade no processo administrativo:

"Seria total e absurdamente inútil o processo administrativo se inexistisse para os litigantes a garantia de imparcialidade na tomada de decisão. Do administrador-julgador há, pois, de se exigir, como condição de capacidade subjetiva, a inexistência de condições que, direta ou indiretamente, sejam suscetíveis de prejudicar a total isenção que há de marcar sua atuação em face dos direitos e interesses contrapostos (ainda quando entre tais direitos e interesses figurem aqueles que titular da própria Administração).

Incumbe sublinhar: a) sequer é necessário que tais condições afetem, efetivamente, o conteúdo da decisão; basta que sejam em tese suscetíveis de faze-lo; b) tão indeclinável é o dever de imparcialidade que a simples suposição, em tese, de que, mesmo indiretamente, possa ser ela comprometida há de conduzir o administrador-juiz a afastar-se dessa atuação."

Portanto, ao que se vê, o vício de parcialidade nasce do justo receio decorrente de circunstância determinante da condição de influenciar o auditor a tomar atitude diversa do seu dever motivado subjetivamente por aspectos alheios aos dados constantes do processo.

 

Na esteira desse raciocínio, não se vislumbra qualquer possibilidade de, nas situações em que algum auditor (presidente ou efetivo), de qualquer instância desportiva, haja realizado encaminhamento de provas televisivas (fitas de vídeo, cinematográficas, etc) para apuração de desvalor de conduta disciplinar, inclusive eventualmente manifestando sobre o feito nos órgãos de imprensa, vir a atuar no julgamento de tais litígios desportivos. Com efeito, haverá flagrante inobservância do princípio da imparcialidade, que culminará na nulidade do processo disciplinar desportivo.

 

Assim, podemos afirmar, com certo grau de certeza, que o comportamento de inúmeros membros da Justiça Desportiva nos termos acima expostos, impediriam, de maneira permanente, suas atuações em eventuais processos disciplinares, dada a notoriedade de suas declarações nos meios de comunicação e a forma de encaminhamento dessas provas que, diga-se, possui rito próprio nos termos dos arts. 42 e ss do CBDF.

 

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1 Citando Dinamarco.

2 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 323.

3 Obra citada, p. 325 e 326. O autor cita outros exemplos, como o impedimento da "autoridade que tenha sido testemunha no processo administrativo disciplinar não pode desempenhar o ofício de acusação, instrução ou decisão" ou "o órgão ou agente acusador não pode encarregar-se da decisão final do processo" e, assim, "a função instrutória deve competir à autoridade incumbida da decisão final e não da acusação" (obra citada, p. 323 e 324).

4 MOREIRA, Egon Bockmann. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p.236.

5 FERRAZ, Sérgio e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, pp.106/107.

 

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* Colaborador do escritório Bottallo e Gennari Advogados

 

 

 

 

 

 

 

 

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