Bergson, ponto de partida
Prof. Miguel Reale*
O maior filósofo francês do século passado (1859-1940) anda esquecido, apesar de lhe devermos a restituição da liberdade ao mundo da experiência e o papel da intuição no plano do conhecimento. É um pensador de formação inicial evolucionista, por ele superada definitivamente no sentido de uma metafísica concebida sobre novas bases, que procurou estabelecer em fecundo contato com as pesquisas científicas. Vejamos em que sentido surge a metafísica bergsoniana, pondo em equação, preliminarmente, o problema do método.
O pensamento de Bergson, que, sob vários aspectos, assinala o superamento do naturalismo do século 19, baseia-se numa distinção fundamental entre inteligência e intuição, distinção que sob denominações diversas encontramos em outros sistemas, tão penetrante foi a influência do mestre gaulês. A seu ver, o homem seria senhor de dois modos ou instrumentos fundamentais de conhecer, que seriam de natureza intelectiva um, e de ordem intuitiva o outro. São dois processos que se completam, cada qual dotado de certa qualidade ou de valor próprio. A inteligência é o grande instrumento da ciência, a poderosa alavanca mediante a qual o homem se torna senhor da realidade, subordinando-a a seus fins vitais.
O homem, colocado em face da realidade, procura dominá-la. Domina-a partindo-a, dividindo-a, seccionando-a. O meio de que o homem se serve para o domínio da natureza é a inteligência, que opera por meio de quantificação ou de espacialização. O conhecimento da ciência é quase que conhecimento quantificado, numérico. Bergson, no fundo, aceita a tese de Augusto Comte de que o ideal das ciências é a matemática. Uma ciência é tanto mais exata quanto mais se avizinha do ideal das matemáticas, abrangendo o real em fórmulas e equações. O conhecimento do físico, do químico ou do astrônomo atinge perfeição extraordinária porque é suscetível de expressar-se numericamente, em súmulas quantitativas, que partem o movimento e o representam como algo abstrato, cindindo o real numa sucessão de visões fragmentárias, cuja redução infinitesimal se harmoniza com as exigências do "cálculo", essencial ao saber positivo. O homem quantifica, em suma, a natureza, para dominá-la, constituindo um sistema convencional de índices quantitativos.
O tempo, por exemplo, que dividimos em minutos e horas, anos e séculos, em si mesmo não possui essas divisões. Somos nós que as inventamos, para adaptá-lo à nossa existência. O homem modela o mundo segundo sua imagem, fragmentando o real graças à inteligência. Esta, que é uma faculdade de fabricar instrumentos destinados a fazer outros instrumentos (des outils à faire des outils) não pode representar a realidade tal como essencialmente é. Observa Bergson que esse conhecimento fica, de certa maneira, na superfície das coisas. É um conhecimento instrumental, que tem significado e sentido tão-somente porque satisfaz a fins de ordem prática.
Sentimos, no entanto, a necessidade de nos achegarmos ao ser, sem o intermédio dessas fórmulas numéricas fragmentárias e quantitativas; de entrar em contato direto e imediato com o "real", o não suscetível de ser partido e quantificado. O real, diz Bergson, é fluido, contínuo e inteiriço.
Somos nós que o partimos e fragmentamos. A realidade é "duração pura" sem hiatos e intermitências. Como será possível ao homem atingir aquilo que é em si uno e concreto, todo e contínuo, autêntico, não deturpado? O instrumento de penetração do homem no mundo da durée pure seria a intuição.
Pense-se na atitude espiritual diante dos problemas estéticos, do senso artístico. Compreensão estética não é quantificação numérica, mas é, ao contrário, uma identificação com o próprio objeto contemplado, de maneira que a poesia seria uma forma fundamental, inicial, de compreensão do ser.
Há algo de imaginoso nos conceitos bergsonianos de intuição, de "impulso vital" (élan vital), duração pura (durée pure), etc. Aliás, Bergson deve, em grande parte, o sucesso e a grande repercussão de sua doutrina à sua poderosa capacidade expressional. Não conheço filósofo moderno que tenha sido capaz de escrever filosofia com tanta beleza e riqueza de imagens como Bergson e Nietzsche, os dois pensadores que elevaram a filosofia a uma expressão estética fundamental, reconduzindo-a à beleza reveladora do modelo platônico.
Bergson dá-nos um exemplo ou uma imagem interessante para distinguir-se inteligência de intuição. Analisemos o conhecimento de uma cidade. Podemos conhecer Rio de Janeiro ou Paris por meio de plantas, guias, fotografias.
Obtemos fotografias precisas dos quarteirões, das principais praças e monumentos, lemos guias, decoramos nomes de ruas, estudamos a situação das igrejas, dos museus e dos teatros. Eis um conhecimento típico da inteligência, pela contemplação de fragmentos, pela composição daquilo que previamente se dividiu e se separou. Este é um conhecimento puramente intelectual. Comparemo-lo, no entanto, com o conquistado por quem vai morar na cidade, se põe em contato com suas ruas, com suas casas, com sua gente, não fica na visão fragmentária do todo, mas se insere naquilo que é insuscetível de divisão e de fragmentação. Quem vive assim na cidade penetra no coração da realidade urbana. É um conhecimento por dentro, não por fora apenas, um intus ire, um ir dentro da coisa, para surpreendê-la no que ela possui no íntimo, ou seja, na sua
Outra contribuição decisiva de Bergson consistiu em ter restituído a liberdade à experiência existencial, ultrapassando a posição de Emmanuel Kant, para quem a liberdade seria uma conseqüência do dever, do imperativo categórico, segundo a fórmula: "tu deves, logo podes." Para Bergson, ao contrário, a liberdade, como autodeterminação, é a condição mesma da existência. Pelos motivos expostos, Bergson pode ser considerado o ponto de partida tanto do intuicionismo fenomenológico de Husserl como do existencialismo de Heidegger.
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* Jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, sócio do escritório Reale Advogados Associados.
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