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Você pode dispor de seu corpo em vida?

A doação de órgãos realizada como ato inter vivos é deferida a qualquer pessoa, desde que seja capaz e com discernimento suficiente para se definir a respeito.

5/11/2017

É comum a pessoa se julgar única e exclusiva proprietária do grande latifúndio que carrega consigo, chamado corpo humano. Além de não conseguir compreender todo o mecanismo que o envolve internamente, em um silencioso e incessante trabalho para manter todas as funções vitais, chega-se a pensar que a conjugação dos dois hemisférios, o da parte volitiva manejada pelo encéfalo, e a estrutura física, manobrada pelos membros para a realização das atividades diárias, dá-lhe o poder absoluto e lhe confere a soberania plena para tomar todas as providências relacionadas com tamanho patrimônio, vez que é acobertada pelo princípio da autonomia da vontade.

Pode ela até pensar, da mesma forma em que no tratamento terapêutico prevalece a autonomia do paciente, regida pelo princípio da autodeterminação, a disposição do corpo, suas partes e órgãos ficaria, com igual razão, ao indivíduo. Uma vez que o corpo a ela pertence, poderia direcionar a finalidade que julgar conveniente, até mesmo para doar seus órgãos em vida.

Não é bem assim. Na realidade, não exerce <_st13a_verbetes w:st="on">com <_st13a_verbetes w:st="on">exclusividade a <_st13a_verbetes w:st="on">propriedade de <_st13a_verbetes w:st="on">seu corpo. O Estado, que no pensamento hobbesiano foi comparado ao Leviatã, agora se arvorando em administrador de patrimônios vitais indisponíveis, estabelece normas e regras a respeito da utilização do corpo da pessoa humana, assim como também com relação a todas as condutas que possa praticar.

A doação de órgãos realizada como ato inter vivos é deferida a qualquer pessoa, desde que seja capaz e com discernimento suficiente para se definir a respeito. É possível somente nos casos de órgãos duplos ou partes consideradas renováveis do corpo e que não exponham a risco a vida, integridade e funções vitais do doador. De uma forma sábia e ponderada, a lei 9.434/1997, em seu artigo 9º, modificada pela lei 10.211/2001, visando evitar qualquer modalidade de mercancia com órgãos, tecidos e peças humanos, permite que a pessoa, no âmbito de sua voluntariedade, disponha de tais estruturas humanas para fins terapêuticos ou de transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o 4º grau, ou a doação a qualquer outra pessoa, desde que se obtenha a autorização judicial, dispensada se se tratar de medula óssea.

A lei, nesse passo, apesar de audaciosa, esqueceu-se de contemplar a doação advinda da relação adotiva, que não se enquadra no conceito de consanguinidade. Mas o decreto 9.175, de 18 de outubro de 2017, regulamentando a lei 9.434/1997, deu nova redação e corrigiu a omissão.

Mas é bom observar, também, que o transplante somente será permitido em pacientes com doença progressiva ou incapacitante e irreversível por outras técnicas terapêuticas, cuja retirada de órgãos não irá trazer prejuízos à integridade física do doador ou provocar qualquer outro risco que comprometa suas aptidões vitais e nem causar mutilação ou deformação inaceitável. Tanto é que o doador será previamente esclarecido a respeito dos riscos decorrentes do procedimento, assinando documento para tal fim, evidenciando a aplicação do primum non nocere bioético.

Na condição de doador, a pessoa, de certa forma, não só se expõe a riscos, mas renuncia à integridade de seu organismo para poder socorrer o próximo, em ambos os casos com a aprovação estatal. Entre a integridade física e a dignidade humana, o Direito ampara a última, pois a disposição do próprio corpo com finalidade altruísta, justifica perfeitamente a melhor interpretação hermenêutica.

Também a lei reservou o leite, o sangue, esperma e óvulos, tecidos regeneráveis, que poderão ser cedidos gratuitamente, por meio de bancos próprios, com a finalidade científica ou terapêutica. As opções humanitárias e solidárias justificam <_st13a_verbetes w:st="on">plenamente a vontade <_st13a_verbetes w:st="on">legislativa.

Aparentemente, a lei faz ver a prevalência da vontade do doador em vida. Exige sua autorização, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas. Deixou, no entanto, uma restrição com ares proibitivos, pois se a doação acarretar risco à vida, integridade e funções vitais do doador, o ato não será realizado, dependendo, é claro, do exame e da conclusão médicas neste sentido. Tal óbice demonstra a clara intervenção Estatal no princípio da autonomia da vontade, que não prevalece diante de uma situação que carrega perigo à vida, comprometimento das aptidões vitais e saúde mental, além de não causar mutilação ou deformação inaceitável ao doador. É melhor excluir a pessoa como doadora do que, posteriormente, ofertar a ela a assistência médica necessária reparatória. Elimina-se, desta forma, um mal maior.

A exigência legal vai além. Se a pessoa for juridicamente incapaz, com compatibilidade imunológica comprovada, poderá fazer a doação nos casos de transplante de medula óssea, contando que obtenha o consentimento de ambos os pais ou responsáveis legais, além da autorização judicial, que se afigura como um plus garantidor do ato. Em outras palavras, a autonomia da vontade dos pais ou dos representantes legais do incapaz, que, em outras situações seria suficiente por si só, necessita do aval judicial para ter validade. Se um dos genitores não for encontrado, o que se encontrar presente assinará uma declaração de ausência e solicitará o suprimento judicial de outorga judicial.

Já quando se tratar de autotransplante, a única exigência legal é a assinatura do Termo de Consentimento pela própria pessoa, com registro em seu prontuário médico, ou de seus responsáveis legais, se for juridicamente incapaz.

A proibição legal atinge a gestante, impedindo-a de dispor de seus órgãos ou partes de seu corpo, a não ser quando a doação for destinada para transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde e à do feto. Também será a responsável pela autorização, previamente ao parto, de doação de células progenitoras do sangue do cordão umbilical e placentário do nascituro.

Digna de menção e exemplo de doação de órgãos entre pessoas vivas foi a conduta do jogador de futebol argentino, Lulo Benitez, que doou parte do fígado para salvar a vida de seu sobrinho, o pequeno Milo, de nove meses. O transplante foi bem sucedido e o atleta teve que abandonar a carreira esportiva. A Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos - ABTO -, em homenagem ao gesto tão solidário e também para divulgação da campanha de doação de órgãos, conferiu a ele o título do gol mais bonito do ano e encabeça movimento para que a FIFA encampe tal proposta.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.





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