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Súmula 492 e as locadoras de veículos: da necessidade de revisão da aplicação do enunciado

O julgamento "mais recente" foi ainda mais conciso.

30/10/2017

Na sessão plenária de 3 de dezembro de 1969 o Supremo Tribunal Federal aprovou o Enunciado (Súmula) 4921 que afirma que a empresa locadora de veículos responde civil e solidariamente com o locatário pelos danos por este causados a terceiros no uso do carro locado.

O citado Enunciado tem como precedentes três Recursos Extraordinários, julgados em 1966 (RE 60477), 1967 (RE 62247) e 1968 (RE 63562) 2.

O julgamento mais antigo entendeu por haver solidariedade da locadora de veículos pelo fato de ela não ter tido a cautela necessária quando da locação a pessoa cuja habilitação seria "restrita" no momento da celebração do contrato.

Assim o locatário não deveria ter locado o veículo cuja direção causou prejuízos a terceiros, ficando caracterizada a solidariedade em reparar o dano já que a locadora deveria ter atuado de forma mais diligente e cautelosa, somente entregando o veículo a pessoa legalmente habilitada.

Na decisão de 1967 a questão colocada em discussão era a de um atropelamento de um menor por pessoa devidamente habilitada que dirigia carro locado.

A sentença entendeu pela ausência de solidariedade do proprietário da empresa locadora de veículos, enquanto que o Supremo Tribunal Federal, aplicando o "precedente" de 1966 entendeu que quem loca é solidariamente responsável.

O julgamento "mais recente" foi ainda mais conciso.

Não traz em seu relatório a questão fática, mas simplesmente cita a ementa proferida pelo Tribunal Estadual afirmando o Relator que o Supremo Tribunal Federal se manifestou sobre a solidariedade da locadora de veículos juntamente com o locatário "em recentes decisões", citando na sequência exatamente os julgados de 1966 e 1967.

Até os dias atuais os Juízes e Tribunais brasileiros simplesmente aplicam a citada súmula 492 de forma indiscriminada a todo o tipo de situação fática que envolva empresas de locação de veículos e danos causados a terceiros pelas atitudes de locatários.

Não há a análise pelos Magistrados quanto a aderência da súmula, pautada no primeiro julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, com o caso concreto que se encontra em julgamento, simplesmente sendo aplicado o enunciado de forma, repita-se, indiscriminada.

Somente no julgamento mais antigo (precedente citado) é que se verifica a razão de o Supremo Tribunal Federal ter aplicado uma solidariedade entre a locadora e o locatário, considerando que a empresa simplesmente entregou o bem móvel nas mãos de quem não estava habilitado a dirigi-lo.

Nos demais casos houve simples aplicação do julgamento anterior sem que, contudo, houvesse similitude fática do julgamento anterior com o caso que se analisava naquele momento.

Atualmente as empresas locadoras de veículo seguem um alto padrão de qualidade tanto nos bens que fornecem quanto a quem os entregam. O pretenso locador tem de ser devidamente habilitado, apresentando documentos, preenchendo fichas, assinando termos de responsabilidade, etc.

Maior cautela existe quando a empresa locadora atua no ramo de frotas a outras grandes empresas. Nesse caso são contratos com grandes, médias e pequenas corporações que recebem os veículos para melhoria na logística da entrega de seus bens / serviços, também preenchendo uma série de documentos, contratos, apresentando documentos, etc.

Sabe-se que a solidariedade não se presume, mas sim decorre da lei ou vontade das partes (artigo 265 do Código Civil). Não existe lei que afirme que a locadora e locatário são (automaticamente) responsáveis solidários, a não ser que a primeira tenha agido de forma a ser civilmente responsável, também nos termos do Código Civil, pelo dano causado a terceiro, exatamente o que ocorreu no primeiro dos julgamentos citados acima (julgado em 1966).

Importante, para evidenciar que não se pode presumir a solidariedade, é citar Hamid Charaf Bdine Jr. Vejamos.

"A presunção não é admitida em relação à solidariedade. Presunção é a aplicação de um fato desconhecido de uma verdade conhecida em relação a outros fatos semelhantes. No caso da solidariedade, não se pode reconhecê-la se que a estabeleça a lei ou o acordo de vontades." 3

Sendo assim, diferentemente do que ocorre atualmente, em que a solidariedade da locadora é sempre declarada em sentenças e acórdãos pela aplicação indiscriminada da Súmula 492, há a necessidade de o julgador justificar a razão da aplicação do citado enunciado ao caso concreto, realizando a análise se a situação fática dos autos é a mesma daqueles julgamentos (especialmente o primeiro) proferido pelo Supremo Tribunal Federal.

O Novo Código de Processo Civil (NCPC), em seu artigo 489 inciso V, afirma que não será considerada fundamentada a sentença quando ela se limite a invocar precedente ou enunciado ou súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes, bem como não demonstre que o caso sob julgamento se ajusta àquele fundamentos.

É exatamente isso que se busca: que o julgador não simplesmente aplique o enunciado por uma interpretação literal, mas sim que verifique se no caso concreto a empresa locadora realmente é solidariamente responsável.

"O § 1º do art. 489 indica as hipóteses em que a decisão – qualquer decisão, como ele próprio faz questão de evidenciar – não é considerada fundamentada, exigindo do julgador que peculiarize o caso julgado e a respectiva fundamentação diante das especificidades que lhe são apresentadas. Fundamentações padronizadas e sem que sejam enfrentados os argumentos e as teses trazidos pelas partes não serão mais aceitas." 4

Há, então, a necessidade de que o tema envolvendo a Súmula 492 do Supremo Tribunal Federal seja revisto, especialmente pelos Magistrados sentenciantes, aplicando-a quando, efetivamente, houver responsabilidade civil por parte da empresa locadora pelo dano ocorrido a terceiro envolvendo o bem locado, e não em toda e qualquer situação, como vem ocorrendo nas últimas décadas.

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1 Súmula 492 do Supremo Tribunal Federal: “A emprêsa locadora de veículos responde, civil e solidariamente com o locatário, pelos danos por este causados a terceiro, no uso do carro locado”.

2 Tais são as informações obtidas no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal ( Súmula 492 ) em consulta realizada em 24/10/17.

3 Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência, Coordenador Cézar Peluso, 8ª ed. rev. e atual., Barueri – SP, Manole, 2014, p. 183

4 Bueno, Cassio Scarpinella, Novo Código de Processo Civil anotado, São Paulo, Saraiva, 2015, p. 325.

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*José Tito de Aguiar Junior é pós-graduado em Direito Processual Civil.

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