O Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) aprovou o Convênio ICMS 106/17, publicado em 05/10/20171, que trata sobre os procedimentos de cobrança do ICMS às ''operações com bens e mercadorias digitais comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados'', tal qual consta do próprio preâmbulo do Convênio, que produzirá efeitos a partir de abril de 2018.
O CONFAZ, órgão que reúne o Ministério da Fazenda e as Secretarias das Fazendas dos Estados, é responsável por uniformizar a política fiscal de interesse dos Estados-membros. O Convênio ICMS 106/17 pode ser visto como marco do interesse das administrações fazendárias estaduais em tomar medidas mais concretas para tributar o comércio eletrônico que se dá mediante transferência de dados (download e streaming, notadamente).
O que o Convênio entende por ''bens e mercadorias digitais'' são justamente os ''softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, que sejam padronizados, ainda que tenham sido ou possam ser adaptados, comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados''.
Mais especificamente, o Convênio permite isentar de pagamento do ICMS as operações entre as empresas envolvidas na cadeia de produção e distribuição. Porém, prevê a tributação no comércio nacional e nas importações desses bens e mercadorias digitais quando destinados ao consumidor final.
A previsão do Convênio é de que o ICMS seja devido independentemente de a operação se dar via site ou plataforma eletrônica, podendo o pagamento, inclusive, ser periódico. O ICMS seria devido ao Estado onde é domiciliado ou estabelecido o adquirente do bem ou mercadoria digital.
Fica a ser decidido por cada Estado se haverá atribuição de responsabilidade pelo recolhimento do imposto: (i) àquele que realizar a operação de comercialização via transferência eletrônica de dados em razão de contrato firmado com o comercializador (p. ex.: representante comercial); (ii) ao intermediador do pagamento, inclusive operadoras de cartões de crédito, débito ou de câmbio (no caso da importação); (iii) ao adquirente da mercadoria digital, quando todos os outros responsáveis não possuírem inscrição estadual.
Sintetizando, pode-se dizer que o Convênio ICMS 106/17 é um capítulo dentro de uma história já existente. O tema da tributação pelo ICMS de operações envolvendo programas de computador, no Brasil, não é inédito.
Nesse sentido, vale resgatar a antiga distinção, feita pelo Supremo Tribunal Federal em 19982, no Recurso Extraordinário RE 176.626, de que o ''software de prateleira'' (ofertado em larga escala), ao circular em suporte físico (disquete, CD, DVD etc.), perfaz venda de mercadoria e por isso se sujeita ao ICMS, diferentemente do licenciamento para uso de programa de computador, em que não há transferência de propriedade e o bem em questão é incorpóreo, sendo a operação tributada pelo Imposto Sobre Serviços (ISS), já que se trata de contratação pela qual se prevê uma obrigação – a de ceder acesso ao referido uso. Posteriormente, em 19993, o STF reiterou esse posicionamento, no RE 199.464, de que a incidência do ICMS estaria atrelada à circulação do programa de computador em suporte físico.
Mais recentemente, o STF, em 20104, ao julgar medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 1.945, requerida pelo PMDB contra a lei estadual 7.098/98 do Mato Grosso, inovou em relação ao entendimento antes consolidado, chegando a proclamar a possibilidade de tributação pelo ICMS na aquisição de software via download, sob a compreensão de que a ausência de bem corpóreo não seria relevante para afastar o tributo, dentro do contexto de adaptação das normas constitucionais aos tempos atuais.
Há também duas ADI’s sobre o assunto pendentes de julgamento. A ADI 5.659, sob relatoria do Ministro Dias Toffoli, foi ajuizada pela Confederação Nacional de Serviços (CNS) contra legislação do Estado das Minas Gerais que dispõe sobre o ICMS em operações com programas de computador já tributadas pelo ISS. A CNS também é requerente na ADI 5.576, sob relatoria do Ministro Roberto Barroso, dessa vez contra legislação correlata do Estado de São Paulo.
Nesses dois casos, percebe-se o agravante da bitributação5, verificável quando vários entes tributantes cobram um ou vários tributos (no caso, ISS e ICMS) sobre um mesmo fato (aqui, a operação com bem ou mercadoria digital).
Quanto à tributação municipal, foi publicada a lei complementar 157/2016, pela qual se alterou, em parte, a lei complementar 116/03, que trata do Imposto Sobre Serviços (ISS). Com isso, é de se atentar que foi incluído na lista de serviços tributáveis, dentre outros, o seguinte item: ''Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da 'internet', respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos'', o que pode ser interpretado com interesse dos fiscos municipais na tributação pelo ISS dos serviços de fornecimento de conteúdo via ''streaming'' (do qual Spotify e Netflix são grandes exemplos, longe de serem os únicos).
Nesse ponto, há uma problemática – cujo esmiuçar não cabe no escopo do presente texto – relativa ao fato de que a disponibilização de conteúdo via internet perfaz, na verdade, uma obrigação de dar (no caso, de fornecer), sob a qual ocorre a transmissão dos pacotes de dados por meio dos quais circulam os conteúdos. Assim, não há encaixe nas hipóteses próprias de cobrança do ISS, normalmente incidente sobre obrigações de fazer. A distinção entre obrigações de dar e fazer para fins de incidência do ISS foi pacificada pelo STF quando editou a Súmula Vinculante nº 316.
Assim, em matéria de ICMS relativo às operações com softwares via download ou streaming, o posicionamento tradicional da jurisprudência, ao interpretar a estrutura normativa existente, era o de afastar a incidência do referido imposto. Por outro lado, a edição do Convênio 106/17 pelo CONFAZ, a divergência de entendimento dentro do próprio STF (apesar de minoritária), e os julgamentos sobre a matéria que ali ainda pendem de definição podem ser interpretados como fatores de uma possível mudança de paradigma7 em relação à tributação das operações com bens e mercadorias digitais.
Todavia, as possíveis mudanças de compreensão sobre o tema não podem esconder que o Convênio ICMS 106/27 trata de matéria primeiramente reservada à lei. Ou seja, o avanço da tributação sobre a comercialização de bens digitais ainda dependerá de obediência à legitimidade pelo procedimento legislativo prescrito para tanto.
Ora, se a Constituição diz que é proibido aos Estados exigir tributo sem lei que o estabeleça8, e se o Código Tributário Nacional dispõe que só a lei pode definir o fato gerador da obrigação tributária9 , então, no caso do ICMS, deve-se observar, primeiramente, o que traz a lei complementar 87/96, hierarquicamente superior ao Convênio ICMS 106/17 e às leis e decretos estaduais que porventura determinem seu cumprimento.
De acordo com a lei complementar 87/96, quando se trata do ICMS relativo a mercadorias, o que se tributa é sua circulação, que compreende a transferência da propriedade sobre o bem. Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro aponta que a propriedade referente ao software é de natureza intelectual (art. 2º da lei 9.609/9810).
Assim, não são poucos os estudiosos a apontar que, no caso do software, ocorre a cessão do direito de usá-lo (costumeiramente na forma de ''licença'') em vez da transferência de sua propriedade, o que claramente afastaria a tributação pelo ICMS. Porém, já há, na doutrina, autores que sustentem que tal imposto incide na transferência de software enquanto mercadoria que circula via download11.
Se é natural o debate doutrinário sobre os conceitos jurídicos, não se pode dizer o mesmo sobre a indefinição legislativa e jurisprudencial acerca do tema, dada a nocividade da insegurança jurídica para o ambiente de negócios, em especial se considerada a crescente importância relevância que programas e aplicativos vêm alcançando na economia.
Então, se a jurisprudência tradicional, ao interpretar a estrutura normativa referente ao ICMS, afasta a incidência desse imposto das operações com softwares que não circulam via suporte físico, como é o caso do download e do streaming, não é possível que um Convênio do CONFAZ (cuja natureza é de ato administrativo) suplante o posicionamento firmado pelo STF e pelos demais tribunais do País, de maneira majoritária, ao interpretar desde a Constituição Federal até leis de maior hierarquia, como é o caso da lei complementar 87/96. Portanto, ainda que os Estados atualizem suas legislações em alinhamento ao Convênio 106/17, é possível o questionamento de tais medidas perante o Poder Judiciário, dado o risco de se mitigar o Princípio da Legalidade, especialmente albergado pelo texto constitucional quando se trata de matéria tributária.
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2 RE 176626, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 10/11/1998, DJ 11-12-1998 PP-00010 EMENT VOL-01935-02 PP-00305 RTJ VOL-00168-01 PP-00305.
3 RE 199464, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 02/03/1999, DJ 30-04-1999 PP-00023 EMENT VOL-01948-02 PP-00307.
4 ADI 1945 MC, Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 26/05/2010, DJe-047 DIVULG 11-03-2011 PUBLIC 14-03-2011 EMENT VOL-02480-01 PP-00008 RTJ VOL-00220-01 PP-00050.
5 ''A bitributação significa a possibilidade de um mesmo fato jurídico ser tributado por mais de uma pessoa. Diante de nosso sistema tributário, tal prática é vedada, pois cada situação fática somente pode ser tributada por uma única pessoa política, aquela apontada constitucionalmente, pois, como visto, a competência tributária é exclusiva ou privativa. Inviável, portanto, que haja mais de uma pessoa política autorizada a exigir tributo sobre o mesmo fato jurídico.'' In COSTA, Regina Helena. Curso de direito tributário. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
6 STF. Súmula Vinculante 31: “É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis”.
7 Contudo, há outros fatores a serem tomados em consideração, como, por exemplo, a manifestação da Receita Federal no sentido de que a comercialização de programas de computador customizáveis caracteriza-se como venda de mercadoria, incluindo aqui os ajustes feitos em softwares já existentes para as finalidades de clientes em específico – Solução de Consulta DISIT/SRRF03 Nº 3002, de 03/03/2017, publicada no DOU de 10/03/2017, disponível em: <Clique aqui>
8 Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
9 Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
(...)
III - a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seu sujeito passivo;
10 A Lei nº 9.609/1998 dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, e estabelece, em seu art. 2º, que “o regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos (...)”. (sublinhado acrescido).
11 Ao tratar do ICMS, Hugo de Brito Machado leciona que "Mercadorias são coisas móveis. São coisas porque bens corpóreos, que valem por si e não pelo que representam. Coisas, portanto, em sentido restrito, no qual não se incluem os bens tais como os créditos, as ações, o dinheiro, entre outros. (...) Todas as mercadorias são coisas, mas nem todas as coisas são mercadorias. O que caracteriza uma coisa como mercadoria é a destinação. Mercadorias são aquelas coisas móveis destinadas ao comércio. In MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 31ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 389. Porém, Leandro Paulsen e José Eduardo S. de Melo sustentam que o conceito de mercadoria “(...) Passa a compreender os softwares adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados, porque o STF passou a entender que não pode se furtar a abarcar situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas, por considerar que o apego a tais diretrizes jurídicas acaba por enfraquecer o texto constitucional, pois não permite que a abertura dos dispositivos da Constituição possa se adaptar aos novos tempos, antes imprevisíveis (MC na ADIn 1.946-MT – Plenário – rel. p/acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 26.5.10, DJe 11,3,11).” In PAULSEN, Leandro; MELO, José Eduardo S. de. Impostos federais, estaduais e municipais. 9ª ed. rev. e at. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2015.
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*João Amadeus é advogado no escritório Martorelli Advogados e atua na área de Direito Tributário.