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A Justiça e a invisibilidade do incesto

Há fatos que não se quer ver, realidades que não se quer enxergar, como se, com isso, eles fossem desaparecer. Quando o assunto são crimes sexuais, crimes que acontecem dentro do lar, crimes cometidos contra crianças por pais, padrastos, tios, avós, etc., ninguém sequer gosta de pronunciar o nome.

3/7/2006

 

A Justiça e a invisibilidade do incesto

 

Maria Berenice Dias*

 

Há fatos que não se quer ver, realidades que não se quer enxergar, como se, com isso, eles fossem desaparecer. Quando o assunto são crimes sexuais, crimes que acontecem dentro do lar, crimes cometidos contra crianças por pais, padrastos, tios, avós, etc., ninguém sequer gosta de pronunciar o nome.

 

Aliás, é delito que nem nome tem, pois não se encontra tipificado no Código Penal.

 

Este crime de que ninguém fala, que ninguém quer ver chama-se: incesto!

 

O abuso sexual contra crianças e adolescentes é um dos segredos de família mais bem guardados, sendo considerado o delito menos notificado. Ao contrário do que se imagina, é um dos crimes mais democráticos. Atinge as famílias de todas as classes sociais e níveis culturais.

 

Tudo é envolto em um manto de silêncio, daí a dificuldade em estabelecer estimativas a respeito de números.

 

Assim, é difícil se ter uma idéia dessa perversa realidade.

 

Avalia-se que apenas 10 a 15% dos casos de incesto são revelados, sendo que 20% das mulheres e de 5 a 10% dos homens foram vítimas de abuso sexual na infância ou na adolescência.

 

Na expressiva maioria, 90% dos delitos são cometidos por homens que as vítimas amavam, respeitavam e confiavam: 69,6% dos agressores é o pai biológico; 29,8% o padrasto e 0,6% o pai adotivo. Não há registro de abuso por parte de pais homossexuais.

 

Por ser praticado no silêncio do lar, o incesto é um crime que todos escondem, parece ser um fato sobre o qual ninguém pode falar, que não se deve discutir. É um fato que todos insistem em não ver, pois ninguém acredita que existe.

 

O incesto é um delito cujo início é marcado por uma relação de afeto, um vinculo de confiança. São práticas que começam com gestos gentis, toques e carícias que a vítima recebe de uma pessoa que ela ama, que ela respeita e à qual deve obediência.

 

Todas as pessoas gostam de carinho, principalmente crianças, que não têm como imaginar a intenção de ordem sexual do abusador. A correspondência afetiva e até a excitação e o orgasmo, não podem ser chamados de prazer sexual, pois fruto de estimulação mecânica. Tais ocorrências não podem ser atribuídas à vítima como prova de conivência ou de concordância. Ao contrário, quando tal ocorre o grau de perturbação é ainda maior. Ela considera-se traída não só pelo abusador, mas também por seu próprio corpo.

 

O abusador passa a cobrar o silêncio e a cumplicidade da vítima, colocando em suas mãos a mantença da estrutura da família e a sua própria liberdade. Leva-a a acreditar que a genitora vai ficar com ciúme, pois ele a ama mais do que à mãe, e ninguém vai entender esse amor “especial”. Muitas vezes, a vítima se sujeita em virtude da ameaça do abusador de que ele passará a manter relações incestuosas com as outras filhas menores, o que inibe a denúncia. Resta o medo de provocar o esfacelamento da família e, com isso, gerar dificuldades a todos. Também, receia ser afastada de casa, tendo de ir para um abrigo.

 

A denúncia é muito difícil, pois o crime não é praticado com o uso de violência, e, quando a vítima se dá conta de que se trata de uma prática erótica, simplesmente o crime já se consumou. A vítima é pega de surpresa e surge o questionamento de quando foi que tudo começou, vindo junto a vergonha de contar o que aconteceu, o sentimento de culpa de, quem sabe, ter sido conivente. Teme ser acusada de ter seduzido o agressor, ser questionada de por que não denunciou antes. Assim, cala por medo de ser considerada culpada. Surge, então, o medo de não ser acreditada. Afinal, o agressor é alguém que ela quer bem, que todos querem bem, que a mãe e toda a família amam e respeitam, pois geralmente é um homem honesto e trabalhador, sustenta a família, é benquisto na sociedade e respeitado por todos. Quem daria credibilidade à palavra da vítima?

 

Denunciado o fato, a Justiça acaba sendo conivente com o infrator, pois sempre procura culpabilizar a vítima, e o altíssimo índice de absolvições gera a consciência da impunidade.

 

O juiz quer testemunhas para ter certeza da existência de crime que acontece entre quatro paredes e busca provas materiais quando nem sempre os vestígios são físicos. Não dá valor aos laudos sociais e psicológicos que, de forma eloqüente, mostram que os danos psíquicos são a mais evidente prova da prática do crime. E, de uma maneira surpreendente, a absolvição por falta de provas é o resultado na imensa maioria dos processos.

 

Há uma enorme dificuldade de emprestar credibilidade à palavra da vítima. Quando são crianças, costuma-se pensar que elas usam da imaginação ou que foram induzidas a mentir. Quando são adolescentes, acredita-se que elas provocaram o abusador, seduziram-no, insinuaram-se a ele, justificando, assim, a prática do delito. A vítima é inquirida se sentiu prazer, como se esse fato tivesse alguma relevância para a configuração do delito. Com isso, a responsabilidade pelo crime passa a ser atribuída a ela, e não ao réu.

 

No atual processo penal, a vítima é ouvida mais de uma vez e, em cada depoimento, revive os fatos, sofrendo nova violência. É revitimizada cada vez que precisa relatar perante estranhos o que aconteceu. É ouvida por pessoas não capacitadas para este tipo de escuta. No fim, cansada de repetir a mesma história, de ser sempre perguntada sobre o que quer esquecer, acaba caindo em contradições, o que geralmente enseja um juízo de absolvição por ausência de prova...

 

Algo precisa ser feito.

 

Está na hora de acabar com o pacto de silêncio.

 

Se a família não está cumprindo o seu papel de proteger as suas crianças, esta função precisa ser assumida pelo Estado, pela sociedade, por todos nós. 

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* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e vice-presidente nacional do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família

 







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