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Cláusula de barreira na Emenda Constitucional 97

Sem os efeitos da cláusula de barreira, hoje existem 35 (trinta e cinco) partidos com registro no TSE, sendo que rigorosamente todos eles têm participação no fundo partidário, que contabiliza até 27 de setembro deste ano a distribuição de R$585.540.922,032.

17/10/2017

Não é novidade para ninguém que vivemos uma crise política de enormes proporções, sendo uma de suas facetas evidentes a falta de representatividade dos partidos políticos, muitas vezes incapazes de firmar alguma conexão com o eleitorado.

O elevadíssimo número de agremiações partidárias em nosso sistema tem sido apontado como uma das causas desse estado de coisas, o que, ademais, vem afetando a própria governabilidade do país.

Encontram-se registrados no Tribunal Superior Eleitoral 35 legendas políticas1, que, ao menos em tese, deveriam refletir 35 matizes ideológicas ou talvez igual número de visões diferentes de mundo...

Esse dado de realidade é conhecido e tem sido amplamente divulgado. É digno de nota aliás que o apetite político para a criação de novos partidos apenas acelerou nos anos recentes, todos atrás de parcela de recursos do fundo partidário e de tempo de televisão a que têm direito por garantia constitucional.

Como resposta o Congresso promulgou a Emenda Constitucional 97, que, dentre outras medidas importantes, estabeleceu novas normas de acesso dos partidos políticos aos recursos do fundo partidário e ao tempo de propaganda gratuito no rádio e televisão.

Trata-se de emenda criadora de uma "cláusula de barreira" ou "cláusula de desempenho" que, conforme amplamente noticiado, diminuirá ao longo do tempo a participação no fundo partidário dos partidos com menor performance eleitoral, diminuindo também o acesso ao tempo de propaganda política. Espera-se com essa medida depurar o sistema, diminuindo a relevância das chamadas legendas de aluguel e incentivando a reunião de pequenos partidos representantes de mesma identidade ideológica.

Eis os termos da referida cláusula que em 2030 encontrar-se-á em plena vigência:

"Somente terão direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei, os partidos políticos que alternativamente:

I - obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 3% (três por cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 2% (dois por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou

II - tiverem elegido pelo menos quinze Deputados Federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação"

Até 2030 haverá um regime de transição, de modo que já na próxima legislatura, seguinte a 2018, somente serão agraciados com tais direitos as agremiações que obtiverem 1,5% dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 1% dos votos válidos em cada uma delas; ou tiverem elegido pelo menos nove Deputados Federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação. Nas legislaturas seguintes essas exigências serão elevadas paulatinamente até atingirem o patamar previsto para 2030.

Neste momento em que a crise política já encontra instalada parece ser de uma obviedade ímpar essa medida, tal a premência de se eliminar o desatino de se atribuir recursos escassos do Estado a 35 agremiações políticas.

O curioso, entretanto, é que essa obviedade precisou ser construída com grande sacrifício, pois foi necessário flertar com o abismo político para que finalmente a ideia viesse a ser apresentada sem grandes receios de rejeição.

Isso porque há mais de vinte anos o Congresso havia colhido a mesma ideia ao prever na lei dos partidos políticos (lei 9.096/95) a seguinte cláusula de barreira:

Art. 13. Tem direito a funcionamento parlamentar, em todas as Casas Legislativas para as quais tenha elegido representante, o partido que, em cada eleição para a Câmara dos Deputados obtenha o apoio de, no mínimo, cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles.

Como se verifica, o dispositivo (ainda não revogado) tem redação mais rigorosa que a sua atual versão de roupagem constitucional, que prevê o apoio de no mínimo 3% dos votos válidos ou a eleição de 15 deputados em 1/3 dos estados.

Os partidos que não alcançassem tais patamares teriam drástica redução de suas participações no fundo partidário (art. 41, I), sendo que o mesmo ocorreria quanto ao acesso gratuito à televisão (art. 48).

A lei dispunha ainda de respeitável regra de transição, de modo que seus efeitos apenas teriam início na legislatura de 2007.

Ou seja, o legislador previu dez anos para que as agremiações políticas se adaptassem às novas regras, o que gerou um saudável movimento de aglutinação de siglas. Foi o caso do PRONA que em outubro de 2006 se fundiu com o PL, sendo criado o atual Partido da República – PR.

Sucede que em dezembro de 2006, momentos antes de a lei ter sua plena aplicação, o Supremo Tribunal Federal declarou na ADIn 1351 a inconstitucionalidade dos citados dispositivos da lei 9.096/95, por entender que os seus termos afrontavam direitos fundamentais das minorias políticas, assegurados constitucionalmente.

E, deveras, eram respeitáveis os argumentos pela inconstitucionalidade, tal como sustentado pelo Min. Marco Aurélio:

Alfim, no Estado Democrático de Direito, paradoxal é não admitir e não acolher a desigualdade, o direito de ser diferente, de não formar com a maioria. Mais: o Estado Democrático de Direito constitui-se, em si mesmo – e, sob certo ponto de vista, principalmente -, instrumento de defesa das minorias.

(...)

É de repetir até a exaustão, se preciso for: Democracia não é a Ditadura da maioria! De tão óbvio, pode haver o risco de passar despercebido o fato de não subsistir o regime Democrático sem a manutenção das minorias, sem a garantia da existência destas, preservados os direitos fundamentais assegurados constitucionalmente.

O ministro Eros Grau ainda trouxe enriquecedoras ponderações da doutrina para enfatizar a necessidade de se cultivar o pluralismo político no país:

Da cláusula de barreira diz MARCELLO CERQUEIRA, em exposição proferida em congresso de Direito Constitucional realizado no mês de novembro que passou:

"Essa cláusula (barreira, exclusão, desempenho), abolida com a redemocratização, em 1985, agora retorna (aparentemente agravada) na lei 9.096/95 (...) Introduz-se, no Direito Constitucional, norma de exceção em face da qual está previamente censurada a liberdade partidária, a possibilidade de expressão de correntes e pensamentos políticos que não se enquadrem na "propalada" regra iníqua que implica negar seu aperfeiçoamento em uma sociedade complexa e diferenciada. É como um jardineiro que impede que flores novas desabrochem e se poupe de apenas regar antigas ervas, que podem ser daninhas".

Essa cláusula, designa-a o eminente professor como "corredor da morte das minorias políticas".

Como se extrai dos votos lançados, chegou-se até mesmo a considerar a possibilidade de a lei impedir o exercício do mandato daqueles políticos cujos partidos não teriam passado pelo crivo da cláusula de barreira.

No entanto, segundo os termos do acórdão, inviável seria sufocar a atuação do partido, com aniquilamento dos direitos de acesso ao fundo partidário e de veiculação de propaganda na televisão. Nos termos do voto do Min. Gilmar Mendes, seria afrontado o princípio constitucional da igualdade de chances:

Como se vê, trata-se de uma restrição absoluta ao próprio funcionamento parlamentar do partido, sem qualquer repercussão sobre os mandatos de seus representantes. Não se estabelecem qualquer tipo de mitigação, mas simplesmente veda-se o funcionamento parlamentar ao partido, com as consequências que isso pode gerar, como o não recebimento dos recursos provenientes do fundo partidário, ou o seu recebimento em percentuais ínfimos, e a vedação do acesso ao rádio e à televisão.

(...)

A regra da "cláusula de barreira", tal como foi instituída pela lei 9.096/95, limitando drasticamente o acesso dos partidos políticos ao rádio e à televisão e aos recursos do fundo partidário, constitui uma clara violação ao princípio da "igualdade chances".

Observa-se, por outro lado, que as novas regras constitucionais introduzidas pela EC 97 atacam justamente os pontos nevrálgicos tratados pelo STF, pois o novo regime jurídico também interditará às minorias o "direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão". O direito será igualmente aniquilado, embora em proporção sensivelmente menos rigorosa.

Certamente o status constitucional das novas regras poderá ser suficiente para contornar os respeitáveis argumentos lançados pelo STF na ADIn 1351.

No entanto, não é possível ignorar outros fatores de ordem concreta: em 2006 o país tinha 29 (vinte e nove) partidos registrados no TSE, sendo que, não fosse a declaração de inconstitucionalidade da cláusula de barreira da lei 9.095/95, 7 (sete) partidos teriam acesso em 2007 ao fundo partidário e à propaganda no rádio e televisão.

Sem os efeitos da cláusula de barreira, hoje existem 35 (trinta e cinco) partidos com registro no TSE, sendo que rigorosamente todos eles têm participação no fundo partidário, que contabiliza até 27 de setembro deste ano a distribuição de R$585.540.922,032.

Apenas para exemplificar, foram disponibilizados a partidos que sequer possuem representação na Câmara, como o PCO e o PRTB de Levy Fidelix, desde o início deste ano as quantias de R$ 705.263,19 e R$ 2.657.807,38, respectivamente.

Passados dez anos desde a ADIn 1351, qual teria sido o valor poupado pelo Estado com legendas de aluguel? Quanto ainda o Estado pagará até 20303 em valores de fundo partidário, sem falar no custo do tempo de propaganda de rádio e televisão?

Além dos efeitos meramente pecuniários, que não são desprezíveis, quais teriam sido os ganhos em governabilidade e estabilidade política do país? Ou inversamente, quais foram as perdas? Certamente seriam enormes.

Tais circunstâncias servem para pôr à prova os abalizados argumentos do STF quanto aos efeitos deletérios das cláusulas de barreira.

Por justiça, não se pode imaginar se à época do julgamento da ADIn 1351 seria possível antever o desastre que agora acomete o meio partidário, que por ironia do destino se encontra no citado "corredor da morte", com reflexos em nossa sociedade.

Desse quadro, entretanto, cabe ao menos a lição de que a Suprema Corte deve ter extremo cuidado na análise de questões de forte densidade política, cujo domínio deve ser essencialmente do Parlamento. Serve de alerta para os atualíssimos perigos do ativismo judiciário e das tentações hermenêuticas heterodoxas que, segundo alguns, teriam o intuito de impulsionar o "bonde da história".

__________

1 Partidos políticos registrados no TSE

2 Distribuição do fundo partidário

3 Ano em que a EC 97 terá plena aplicação

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*Marcelo Certain Toledo é advogado do escritório Malheiros, Penteado, Toledo e Almeida Prado - Advogados.

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