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A cobrança diferenciada entre homens e mulheres em casas noturnas: o machismo e a livre iniciativa

Esperemos que a diferenciação descabida e desprovida de critérios na cobrança entre homens e mulheres no setor do lazer e entretenimento seja finalmente erradicada – eventualmente por via legislativa, dando assim maior efetividade à medida – e prestigiando a emancipação da mulher na sociedade brasileira, no caminho para a civilidade.

25/8/2017

No início do mês de julho, a Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON) – órgão vinculado ao Ministério da Justiça – através do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, editou nota técnica proibindo a cobrança diferenciada entre homens e mulheres no setor de lazer e entretenimento, obrigando bares, restaurantes e casas noturnas a vincularem-se a esta conduta.

Ante o novo panorama, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes – Seccional de São Paulo (Abrasel/SP) ajuizou ação perante a Justiça Federal de São Paulo, questionando a Nota Técnica 2/2017, sob a alegação de que referida posição afetaria a livre iniciativa, prestigiada pelo arts. 1, IV, e 170 da Constituição Federal. Não só, ao descrever as supostas ilegalidades constantes na Nota, a ABRASEL sustentou que as mulheres recebem remuneração inferior aos homens e são assediadas em ambientes coletivos, provocando a necessidade do incentivo da cobrança menor para frequentar os estabelecimentos de lazer e entretenimento.

A ação teve o pedido liminar deferido pela 17ª Vara Cível Federal de São Paulo, proibindo órgãos de defesa do consumidor de autuar estabelecimentos comerciais filiados à ABRASEL/SP de cobrarem ingressos com preços diferenciados para homens e mulheres. Ato contínuo, a Advocacia-Geral da União (AGU) interpôs agravo de instrumento requerendo a suspensão dos efeitos da liminar supracitada.

Em tempos como os que vivemos hoje, discussões como a presente se mostram de relevância extrema para a reflexão de pontos fundamentais de nosso panorama sócio-político e, consequentemente, jurídico.

A ação que ora tramita no Tribunal Regional Federal da 3ª Região configura-se como uma excelente oportunidade para estabelecer parâmetros e garantir a conformidade das práticas dos setores do lazer e do entretenimento aos mandamentos do Código de Defesa do Consumidor e da Constituição Federal.

A cobrança diferenciada entre homens e mulheres é uma questão que exige enfrentamento há muito tempo, sendo nítido reflexo do machismo que assola a sociedade brasileira e que vem sido combatido a passos lentos.

Com efeito, coloca-se a mulher em uma situação de inferioridade, ao “objetificá-la” enquanto atrativo para os homens, sem qualquer critério que justifique tal diferenciação. Eis, portanto, um retrato perverso que surge como antagonismo ao prestígio necessário ao chamado empoderamento feminino.

O que se pode se extrair do ordenamento jurídico no cotejo entre princípios como o presente caso, em que a livre iniciativa confrontaria com os princípios da dignidade da pessoa humana e a igualdade, é muito claro: vejamos que a Constituição Federal, em seu art. 1, preocupou-se em assegurar enquanto fundamentos da República Federativa do Brasil, entre outros, a dignidade da pessoa humana (inciso III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV). O art. 5, em seu caput e no inciso I, aponta para a mesma direção: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos do texto constitucional.

Tanto é real a histórica marginalização da mulher na sociedade que a Constituição se preocupou em prover tratamento especial ao assegurar proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, conforme o art. 7, XX da CF.

Mesmo ao dispor sobre a ordem econômica e financeira, a Constituição submeteu a livre iniciativa, em seu art. 170, aos ditames da justiça social, explorando a necessidade de se observar, entre outros princípios, a defesa do consumidor e a redução das desigualdades regionais e sociais (incisos V e VII, respectivamente). Para a análise do presente caso, vale citar o preâmbulo da Carta Magna, que procura assegurar “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.

Ao refletir sobre a questão infraconstitucional, a consequência jurídica é, por decorrência hierárquica, a mesma.

Analisemos o Código de Defesa do Consumidor que, ao prestigiar o núcleo republicano da Constituição Federal, estabelece normas de ordem pública e interesse social, para a proteção do consumidor, vislumbrando a coibição e repressão de todos os abusos praticados no mercado de consumo (arts. 1 e 4, VI). É direito básico do consumidor a proteção contra publicidade enganosa e abusiva, contra métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços (art. 6, IV).

O próprio Decreto 5.093 de 2006, ao regulamentar a lei 10.962 de 2004, que dispõe sobre as condições de oferta e afixação de preços e bens e serviços para o consumidor, veda expressamente a atribuição de preços distintos para o mesmo item (art. 9º, VII), classificando tal conduta como infração a direito básico do consumidor.

Desse modo, é de se concluir que a diferenciação de preços entre homens e mulheres, injustificadamente, representa, além de estratégia de marketing ilícita e prática abusiva perante o direito consumerista, comportamento desmoralizado que se apega à livre iniciativa para alçar a mulher a um patamar inferior ao do homem. Mesmo se nos ativéssemos à questão jurídica, a livre iniciativa não pode prevalecer em detrimento da proteção à igualdade, à dignidade da pessoa humana e ao combate ao preconceito. É dizer: se refletirmos sobre o sopesamento de princípios, a resposta que se extrai do ordenamento jurídico brasileiro é muito clara.

Presumir que o presente caso trata-se somente de um caso de ingerência indevida no Poder Público na iniciativa privada guarda certa dose de superficialidade e falta de atenção à transformação da aplicação dos direitos fundamentais na atualidade, em especial no Brasil, um país em que uma mulher é espancada a cada 15 (quinze) segundos1 , em que se registra 10 (dez) estupros coletivos por dia2 , entre outros tipos de violência contra a mulher – violência esta, infelizmente, histórica e tradicional – cravejada por raízes centenárias.

Como fundamentos para o ajuizamento da ação, conforme apontado acima, a ABRASEL suscitou o fato de que as mulheres recebem remuneração inferior à dos homens e que são assediadas em ambientes coletivos.

Ora, com relação à primeira justificativa, ao reduzir o preço para as mulheres, a Associação só reafirma o preconceito ao manter o status quo do setor do lazer e do entretenimento. Com efeito, a prática do mercado não pode operar como pretexto para sustentação de mecanismos e comportamentos de opressão. Tal conduta nos faz lembrar a obra de Peter Häberle, em especial a formulação da sociedade aberta de intérpretes da constituição3 , segundo a qual, adotando a premissa filosófica da experiência do direito como ciência cultural, o círculo de intérpretes da Constituição deve ser ampliado para envolver não apenas as autoridades públicas e as partes formais nos processos de controle de constitucionalidade, mas todos os aqueles que, de uma forma ou de outra, vivenciam a realidade constitucional.

No que tange ao segundo fundamento, não nos parece minimamente razoável ou sequer factível que se possa diferenciar preços como medida de apoio às mulheres sob o argumento de que estas são assediadas em ambientes coletivos.

Mesmo na questão puramente processual da ação ajuizada pela ABRASEL, há um problema. Isso porque o pedido da ação funda-se na pretensão de que órgãos de defesa do consumidor não podem autuar estabelecimentos comerciais filiados à ABRASEL que cobram ingressos com preços diferenciados para homens e mulheres. No entanto – e somado ao fato de que os órgãos de proteção do consumidor não possuem subordinação hierárquica à SENACON – a Nota Técnica objeto da ação não tem por objetivo obrigar ou impedir tais órgãos de fiscalizar e aplicar punições.

Nesse sentido, ante os argumentos contraproducentes ao crescente empoderamento que a mulher deve ter na sociedade e a base jurídica que o sustenta, nos surpreende que a liminar tenha sido deferida pelo juízo de primeiro grau.

Esperemos que a liminar objeto do Agravo de Instrumento interposto pela AGU seja cassada pelo TRF da 4ª Região, e que a diferenciação descabida e desprovida de critérios na cobrança entre homens e mulheres no setor do lazer e entretenimento seja finalmente erradicada – eventualmente por via legislativa, dando assim maior efetividade à medida – e prestigiando a emancipação da mulher na sociedade brasileira, no caminho para a civilidade.

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1 A cada 15 segundos uma mulher é agredida no Brasil, diz ONG

2 País registra 10 estupros coletivos por dia; notificações dobram em 5 anos.

3 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.
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*Arthur Deucher Figueiredo é mestrando em Direito Constitucional na PUC-SP. Sócio do escritório Francez e Alonso Advogados, especializado em direito do entretenimento.

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