A contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública
Eduardo Domingos Bottallo*
1 – Introdução
A Emenda nº 39, de 19 de dezembro de 2002, acrescentou ao texto da Constituição um artigo 149-A, do seguinte teor:
“Art. 149-A. Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para custeio de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III.
Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica”.
Até o momento em que estas linhas estão sendo escritas (julho de 2003), a Constituição já foi alterada quarenta e cinco vezes, considerando as emendas “convencionais” e as de revisão.
Muitas destas emendas – sobretudo as que tratam de questões fiscais – são de manifesto casuísmo, demolindo as bases sobre as quais foi estruturado o sistema tributário que, diga-se de passagem, nunca chegou a ser efetivamente testado.
Daí decorre que a Constituição segue carregando o pesado fardo de não ser capaz de impor-se aos fatos, sendo estes, pelo contrário, que determinam as trilhas que ela deve seguir.
De qualquer forma, procuraremos analisar, com a necessária objetividade, algumas das conseqüências decorrentes do novel preceito.
E, já que, nele, é contemplada a figura da “contribuição, (...) para o custeio do serviço de iluminação pública”, cabe, então, de início, nos debruçarmos, em breves linhas, sobre esta espécie tributária.
2 – As contribuições na Constituição
I - A Constituição, ao partilhar as competências legislativas tributárias entre as pessoas que integram a Federação, o fez mediante o delineamento da regra-matriz dos tributos que elas podem criar.
Entretanto, no artigo 149, cuidando especificamente das contribuições a cargo da União, a Lei Maior, a par de submetê-las ao regime tributário, desviou-se do critério acima apontado para fixar-se na indicação dos objetivos a serem atingidos por meio delas: a) intervenção no domínio econômico; b) interesse das categorias profissionais ou econômicas; e c) custeio da seguridade social.
Haverá, pois, este tipo de tributo sempre que implementada uma de suas finalidades constitucionais: “quando a Constituição atribui competência à União para instituir contribuição de intervenção no domínio econômico, contribuições sociais ou no interesse de categorias, não está enumerado fatos geradores (materialidades de hipóteses de incidência) mas qualificando fins a serem buscados com sua instituição. (...) a idéia de causa não é a idéia informadora da contribuição. A idéia informadora é a idéia de fim, de resultado, de objetivo”1 .
Note-se, ainda, que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios receberam do constituinte originário competência limitada para a instituição de contribuições: poderão cobrá-las de seus servidores “para custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência social” 2.
II - Sob a óptica de suas hipóteses de incidência, as contribuições se identificam com os impostos ou as taxas. Embora não ignoremos a existência de outros critérios classificatórios, não nos parece errado afirmar que contribuições são impostos ou taxas voltados ao atendimento de finalidades pré-estabelecidas.
E, neste contexto, coloca-se a necessidade de estrita observância do princípio da reserva das competências tributárias, elegendo como hipóteses de incidência apenas os fatos, ações ou situações que a Constituição permitiu sejam alvo de tributação por parte do sujeito ativo designado.
Assim, as contribuições, enquanto figuras tributárias, haverão de curvar-se às limitações emergentes deste superior postulado, conforme bem apontou Geraldo Ataliba: “Não cabe dizer, no nosso sistema, que o legislador, ao criar contribuições, goza da mais ampla liberdade e que, em conseqüência, pode adotar toda e qualquer hipótese de incidência, inclusive as reservadas constitucionalmente aos Estados e Municípios. Tal interpretação implicaria afirmar: a) que as competências tributárias não são exclusivas; b) que a repartição de competências não é rígida; e que c) contribuição não é tributo”.3
III - Em resumo, e pelo que, até aqui, foi rapidamente sumariado, temos que as contribuições: a) são tributos; b) destinam-se a atender finalidades pré-determinadas; c) sob a perspectiva de suas hipóteses de incidências, correspondem ou a impostos (tributos não vinculados a uma atuação estatal), ou a taxas (tributos vinculados a uma atuação estatal); e d) devem ser estruturadas de forma a preservar o princípio da reserva das competências tributárias, pelo que lhes cabe respeitar as áreas de atuação constitucionalmente atribuídas às diversas pessoas que integram o pacto federativo.
Com base nos pontos destacados, podemos, agora, nos concentrar, de modo mais minucioso, no exame do art. 149-A, introduzido na Carta pela Emenda Constitucional nº 39/02.
3 - O artigo 149-A e suas injuridicidades
I - Conforme vimos, o dispositivo em apreciação abre margem a que os Municípios e o Distrito Federal instituam contribuição para custeio do serviço de iluminação pública.
Trata-se, portanto, de exação voltada para a manutenção de serviço que, por todas as razões cogitáveis, deveria incluir-se no feixe de competências reservadas, constitucionalmente, às pessoas de direito público que foram autorizadas a criá-la. Em outras palavras, sendo o custeio do serviço de iluminação pública o objetivo eleito pelo constituinte derivado, seria natural que se reconhecesse nos Municípios e no Distrito Federal, aptidão para sua prestação.
Todavia, não é isto que ocorre, pois a competência para explorar os serviços e instalações de energia elétrica não é municipal e nem distrital, mas sim federal, nos precisos termos do art. 21, XII, “b”, da Constituição Federal; verbis:
“Art. 21 – Compete à União:
------------------------------------------------------------a) XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:
------------------------------------------------------------b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos”.
Portanto, a surpreendente constatação que, desde logo, chama atenção na estranha figura criada pelo art. 149-A, é que foi aberta a possibilidade de os Municípios e o Distrito Federal instituírem tributo (contribuição) destinado a custear serviço que, ao menos constitucionalmente, não lhes cabe prestar (iluminação pública)...
A Professora Ana Emília Cordelli Alves, em percuciente estudo sobre o tema, confirmou este bizarro quadro, assinalando, com inteira correção, que “qualquer contribuição que tenha como materialidade da hipótese de incidência uma prestação de serviço público, deve revestir a natureza jurídica de uma taxa, além de atender uma das finalidades constitucionais acima descritas”.
No caso da E.C. 39/02, estamos diante de contribuição destinada ao custeio do serviço de iluminação pública que, por força do disposto no art. 21, inciso XII, “b”, da C.F., está atribuído à competência da União”.4
Aqui se erige obstáculo cujas dimensões põem em xeque a regular instituição desta contribuição.
Ao que nos consta, esta esdrúxula configuração não encontra precedente na nem sempre edificante história do direito tributário brasileiro.
II - Todavia, e sem prejuízo das considerações até aqui desenvolvidas, e apenas por amor à discussão, poderíamos admitir que o art. 149-A, ao outorgar competência aos Municípios e Distrito Federal para instituir contribuição destinada ao custeio da iluminação pública, teria, implicitamente, transferindo a estas pessoas a responsabilidade de prestar este serviço.
- À luz desta premissa, poder-se-ia reconhecer validade à instituição do tributo de que se cogita?
A nosso ver, a resposta a tal indagação ainda há de ser negativa.
Deveras, aceitando, como é nossa convicção, que a contribuição a que alude o art. 149-A, porque destinada ao custeio de um serviço público, deve guardar as características de “taxa de serviço”, então sua cobrança somente seria possível se o serviço a ser financiado fosse “específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição”.5
Ora, nenhum esforço maior de argumentação é necessário para demonstrar que o serviço de iluminação pública não exibe, em absoluto, atributos de especificidade e divisibilidade, sendo impossível, por isso, atribuí-lo a determinado contribuinte. Aliás, esta é a firme orientação do Supremo Tribunal Federal que, em contexto análogo, já decidiu:
“Taxas que, por qualquer modo, têm por fato gerador prestação de serviço inespecífico, não mensurável, indivisível e insuscetível de ser referido a determinado contribuinte, não têm de ser custeadas se não por meio do produto da arrecadação dos impostos gerais”.6
Com inteira razão, pois, a Professora Ana Emília Cordelli Alves quando aponta: “enquanto o fornecimento de iluminação domiciliar caracteriza-se como serviço público específico e divisível, sendo possível identificar as unidades domiciliares, comerciais e industriais que o utilizam, o mesmo não se pode afirmar do serviço de iluminação pública. De fato, não é possível individualizar os beneficiados, posto que tal serviço não se referencia apenas aos moradores de via que recebe a iluminação, mas a todos aqueles que transitam pela via, ainda que, esporadicamente, e, em última análise, à cidade como um todo (...). Portanto, neste caso, se está diante de um serviço público, sim, porém, a exemplo do serviço de segurança pública, não específico e não divisível, assim entendido aquele que atenda especificamente pessoa ou grupo”.7
Forçoso, então, concluir que serviço com tais características devem ser financiados por verbas orçamentárias gerais, e não por meio de tributo arrecadado indiscriminadamente dos contribuintes municipais ou distritais, ainda quando esta solução não se mostre atraente ao administrador público.
4 – Conclusões
I - Resumindo as idéias expostas, podemos assentar, em síntese, que:
a)o artigo 149-A da Constituição Federal, inserido pela Emenda Constitucional nº 39, de 19 de dezembro de 2002, atribuiu aos Municípios e ao Distrito Federal competência para custear modalidade de serviço (iluminação pública) cuja prestação cabe à União;
b)em conseqüência, a figura tributária que vier a ser criada com base nesta outorga, não pode ser tida como “contribuição” em sua correta e adequada acepção constitucional;
c)admitindo-se, para efeitos de argumentação, que o art. 149-A tenha, implicitamente, transferido aos Municípios e ao Distrito Federal a competência para prestar serviço de iluminação pública, nem assim se estará diante de regular “contribuição que revista a natureza de taxa de serviço”, dada a inespecificidade e indivisibilidade que caracterizam o serviço de iluminação pública.
Em arremate, algumas reflexões ainda nos ocorrem, embora fujam um pouco dos aspectos estritamente jurídicos do tema aqui abordado.
Queremos, desde logo, deixar claro que não nos move, em absoluto, a pretensão de contestar a utilidade e, mesmo, a necessidade do serviço de iluminação pública, como forma de atenuar as duras condições de vida e de segurança dos moradores das cidades.
Todavia, por mais relevantes que sejam, estas razões não são aptas a justificar a imposição de ônus tributário, por todos os modos atípico, aos contribuintes: este tipo de precedente abre caminho a que novas contribuições possam ser indiscriminadamente instituídas para custear outras utilidades e serviços – não menos essenciais – a cargo do Poder Público (prisões de segurança máxima, escolas de boa qualidade, segurança pública competente e aparelhada, etc).
Luigi Einaudi, reconhecido Professor de Finanças, que foi, também, Presidente da República Italiana, afirmou, a respeito da tributação desenfreada, que ela acaba por desvirtuar a finalidade de prover recursos ao erário, para converter-se apenas em fator de repugnância por parte do contribuinte. Estava coberto de razão.
Nem se diga – e este é o caso da contribuição aqui examinada – que o pequeno valor envolvido poderia justificar atitude de maior complacência por parte do mundo jurídico.
Solidariedade social e modicidade foram as bandeiras que o idealismo do Dr. Jatene, então Ministro da Saúde, levou às ruas para defender a instituição da CPMF, tributo que deveria ser “temporário” e inteiramente carreado para o custeio da melhoria dos serviços de saúde das camadas mais humildes e carentes da população. Deu no que deu.
Assim, em homenagem à preservação das garantias constitucionais pelas quais a sociedade brasileira tão duramente lutou, há de ser vigorosamente rejeitada a cômoda e crescente tendência de criarem-se novos tributos a pretexto de atender antigas necessidades públicas que, lamentavelmente, têm, até aqui, desdenhado das “experiências” engendradas para solucioná-las.
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1 Marco Aurélio Greco, “Contribuições (uma figura sui generis)”, Dialética, São Paulo, 2000, p. 38.
2 CF, art. 149, § 1º.
3 “Hipótese de Incidência Tributária”, São Paulo, Malheiros, 5ª edição, p. 177.
4 “Emenda nº 39 fere cláusula pétrea” in Gazeta Mercantil de 16.05.03, 1ª página do Caderno de Jurisprudência.
5 CF, art. 145, II, in fine.
6 RE nº 204.827-5-SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU 25.04.97.
7 Op. et loc. cit.
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* Advogado do escritório Bottallo e Gennari Advogados
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