Majoritariamente, a doutrina divide o iter criminis (caminho do crime) em quatro fases: a cogitação, a preparação, a execução e a consumação. Dentre as etapas, a única interna e sem potencial de conduzir à aplicação da pena é a da cogitação. Trata-se do brocardo cogitationis poenam nemo patitur (ninguém sofre punição pelo pensamento). Conquanto se discuta sobre a relevância penal da cogitação, esta "profunda e conflituosa batalha que se desenvolve entre impulsos contraditórios e ambivalentes, provindos do consciente e do inconsciente do agente"1 não é autonomamente punível.
Identificou-se, assim, um "direito à perversão". Nesse sentido, bem resume Cleber Masson:
"Por se tratar de mera ideia, sem qualquer possibilidade de ofensa ao bem jurídico, não pode ser alcançada pelo Direito Penal. Não é punível: inexiste crime, ainda que na forma tentada. De fato, conduta penalmente relevante é somente aquela praticada por seres humanos e projetada no mundo exterior. É o que se convencionou chamar de direito à perversão: as pessoas, ao menos em seus pensamentos, podem ser más, perversas, ou seja, têm liberdade para arquitetar mentalmente diversos ilícitos penais, sem que haja qualquer tipo de sanção penal"2.
Não se pretende censurar os adeptos do termo "direito à perversão", naturalmente inevitável e garboso em uma avaliação aplicada em sede de concurso público ou mesmo durante a academia. Ainda menor é o objetivo de contradizer a fase penal da cogitação, que acertadamente não é capaz de gerar punição alguma. Não poderia ser diferente; do contrário viveríamos como Tom Cruise, no filme Minority Report, valendo reproduzir a sinopse da ficção científica:
"Washington, 2054. O assassinato foi banido, pois há a divisão pré-crime, um setor da polícia onde futuro é visualizado através de paranormais, os precogs, e o culpado é punido antes do crime ter sido cometido. Quando os três precogs, que só trabalham juntos e flutuam conectados em um tanque de fluido nutriente, têm uma visão, o nome da vítima aparece escrito em uma pequena esfera e em outra esfera está o nome do culpado. Também surgem imagens do crime e a hora exata em que acontecerá. Estas informações são fornecidas para uma elite de policiais, que tentam descobrir onde será o assassinato, mas há um dilema: se alguém é preso antes de cometer o crime pode esta pessoa ser acusada de assassinato, pois o que motivou sua prisão nunca aconteceu? O líder da equipe de policiais é John Anderton (Tom Cruise), que perdeu o filho há seis anos atrás em virtude de um criminoso que o sequestrou. O desaparecimento da criança o fez se viciar em drogas e ainda continua dependente, mas isto não o impede de ser o policial mais atuante na divisão pré-crime. Porém algo muda totalmente sua vida quando vê, através dos precogs, que matará um desconhecido em menos de trinta e seis horas. A confiança que Anderton tinha no sistema rapidamente se perde e John segue uma pequena pista, que pode ser a chave da sua inocência: um estranho caso que não foi solucionado e há um "relatório menor", uma documentação de um dos raros eventos no qual o que um precog viu é diferente dos outros. Mas apurar isto não é uma tarefa fácil, pois a divisão pré-crime já descobriu que John Anderton cometerá um assassinato e todos os policiais que trabalhavam com ele tentam agora capturá-lo"3.
O roteiro ilustra a importância de afastar o Estado do pensamento humano enquanto apenas pensamento. De outro lado, o raciocínio aproxima as concepções do Direito às passagens bíblicas. Por oportuno, são reproduzidos alguns trechos:
"Porque é do coração que vêm os maus pensamentos, os crimes de morte, os adultérios, as imoralidades sexuais, os roubos, as mentiras e as calúnias" (Mateus 15:19); "Mas as pessoas são tentadas quando são atraídas e enganadas pelos seus próprios maus desejos. Então esses desejos fazem com que o pecado nasça, e o pecado, quando já está maduro, produz a morte" (Tiago 1:14). "Mas eu lhes digo: quem olhar para uma mulher e desejar possuí-la já cometeu adultério no seu coração" (Mateus 5:28); "Mas tenham as qualidades que o Senhor Jesus Cristo tem e não procurem satisfazer os maus desejos da natureza humana de vocês" (Romanos 13:14).4
Como se percebe, o Estado, vinculado a precitadas proposições, reconhece no indivíduo a inevitabilidade de produção de processos cognitivos minimamente desviados. Assim, admite-se que o córtex cerebral de cada ser humano cogite, pense e medite sobre situações existenciais que, se exteriorizadas em condutas penalmente típicas, antijurídicas e culpáveis (teoria tripartite do delito), seriam puníveis. Não o são, portanto, simplesmente porque o Direito reconhece um espaço mental intransponível e inalcançável.
Contudo, conceber – em razão de aludido raciocínio – um direito à perversão se mostra equivocado, pois isto não corresponde à correta ideia de que a fase da cogitação não pode ser punida.
Primeiro, nos que reconhecem a existência de um verdadeiro direito de ser perverso, não se encontra o dever correspondente, quebrando-se o axioma de que a todo direito corresponde um dever, e vice-versa. Alguém poderia contra argumentar sugerindo que o dever consistiria em não exteriorizar a cogitação perversa, porém este dever já possui um direito correspondente: o de não ser punido pelo Estado pela prática de condutas permitidas ou não proibidas (função limitadora do direito penal).
Ademais, mostra-se incompreensível o "ter" direito que somente se apercebe no momento em que já não mais se tem. Que direito é esse, que existe, mas logo que gera seu único fruto possível, um comportamento, torna-se um ilícito? Se a origem é lícita, porém invisível, por qual razão, justamente quando explícita, demonstrando sua existência ao Estado e aos demais indivíduos, passa a ser um "não-direito"? Se um animal é um sujeito de direitos, qual é o seu dever? Se um humano pensante pensa (ora!), qual é o seu dever com o pensamento, em si, e não com eventual conduta dele derivada? São indagações que refutam a existência de um direito à perversão.
Outrossim, o objeto da ciência jurídica, como é manifesto, constitui-se da relação circular e simbiótica entre direito objetivo e direito subjetivo. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira:
"Na sua polivalência semântica, a palavra Direito ora exprime o que o Estado ordena, impõe, proíbe ou estatui, ora significa o que o indivíduo postula, reclama e defende. Quando alguém se refere ao preceito emanado da autoridade, chama o direito, porque aí enxerga a norma de conduta, revestida de autoridade. Quando alude à projeção individual da norma, ou ao seu efeito, igualmente lhe dá o nome de direito. Para distinguir um e outro sentido, qualifica o, no primeiro caso, como Direito Objetivo (ou ordenamento jurídico), traduzindo o comando estatal, a norma de ação ditada pelo Poder Público, e é nesta acepção que se repete secularmente que ius est norma agendi. [...] No segundo caso, acrescenta-lhe outro adjetivo para denominá-lo direito subjetivo, abrangendo o poder de ação contido na norma, a faculdade de exercer em favor do indivíduo o comando emanado do Estado, definindo-se ius est facultas agendi"5.
Por seu turno, perversão, à letra, é o "ato ou efeito de perverter, a mudança para um estado ou situação considerado pior, a depravação, o desvio patológico do comportamento considerado normal"6. Perverso, na linha, é aquele que "tem péssimas qualidades morais, que mostra perversão, traiçoeiro, que ou quem tem intenção de fazer o mal ou de prejudicar"7. Note-se a exigência de que a perversão seja demonstrada.
Relembre-se as advertências de Roberto Lyra, para quem "a maior dificuldade, numa apresentação do Direito, não será mostrar o que ele é, mas dissolver as imagens falsas ou distorcidas que muita gente aceita como retrato fiel". Mais à frente, pontifica: "A diversidade das palavras atinge diretamente a noção daquilo que estivermos dispostos a aceitar como Direito"8.
Precisamente nesse ponto reside a problemática exposta: aceitar a existência de um direito à perversão implicaria em prejudicar a aparente intenção dos próprios adeptos do termo, isto é, aquiescer com que o Estado regulamente a psique humana. Se hoje é direito, amanhã pode tranquilamente ser um não-direito, a justificar a intromissão do Estado no pensamento humano. E isso não se restringiria à seara penal.
Destarte, além de não ser dado ao Direito a confecção de um estatuto do pensamento, por concretamente impossível, não se postula ao Estado a tutela do pensamento, pelo mesmo motivo. Não há, por conseguinte, direito. É imperioso reconhecer que há situações que antecedem o ordenamento e suas pretensões e, assim, não há falar em direito, sob pena de permitir ao Estado a exorbitância de suas atribuições, em afronta a fundamentais condições humanas.
Convenhamos: pudéssemos conhecer o pensamento do próximo e, com precisão matemática, distinguir o grau de um pensamento criminoso, ainda no interior da mente humana, não operaríamos, ao menos, uma tutela inibitória, mesmo que sem pena, com o objetivo de livrar a vítima do prejuízo certo? Novamente, que direito é esse que poderia ser combatido, se tal tecnologia (infelizmente) existisse? De direito não se trata, mas sim de situação por ele inalcançável e, por tal razão, sempre acertadamente impunível e irregulável.
Por derradeiro, resta a reflexão proposta por Friedrich Nietzsche, em "Aurora":
"Livres agentes e livres-pensadores – Os livres agentes se acham em desvantagem frente aos livres-pensadores, porque os homens sofrem mais visivelmente com as consequências dos atos do que dos pensamentos. Levando-se em conta, porém, que tanto uns como outros buscam a satisfação, e que já o pensar e enunciar coisas proibidas dá satisfação aos livres-pensadores, todos se equivalem quanto aos motivos; e, no tocante às consequências, a balança penderá mesmo contra o livre-pensador, desde que não se julgue a partir da primeira e mais tosca evidência – ou seja: como todo o mundo julga. Há que retirar boa parte da calúnia lançada sobre os homens que romperem através de uma ação a autoridade de um costume – geralmente são chamados de criminosos. Todo aquele que subverteu a lei de costume existente foi tido inicialmente como homem mau: mas se, como sucedeu, depois não se conseguia restabelecê-la e as pessoas acomodavam-se a isso, o predicado mudava gradualmente; - a história trata quase exclusivamente desses homens maus, que depois foram abonados, considerados bons!"9
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1 BECKER, Marina. Tentativa criminosa: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Siciliano Jurídico, 2004. p 51.
2 MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado: parte geral. Volume I. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017. p. 362.
3 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 15 Aug. 2017.
4 Disponíveis em clique aqui. Acesso em: 15 Aug. 2017.
5 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Volume I. 30 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 31.
6 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 08 Aug. 2017
7 Disponível em: clique aqui Acesso em: 08 Aug. 2017
8 LYRA, Roberto. O que é direito. 11 ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.
9 NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Parágrafo n°. 20.
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*Hugo Campitelli Zuan Esteves é advogado. Especialista em Direito Constitucional.