Tanto na Europa quanto no Brasil, discute-se na academia e nos tribunais como tributar o fornecimento de serviços na computação em nuvem. Na verdade, o debate levado a efeito no Velho Continente tem mais a ver com o lugar onde o serviço deve ser tributado do que a disputa se nesses casos ocorre a tributação de um serviço ou a tributação de um bem. Na Europa, o imposto sobre o consumo incorpora bens e serviços. O fato gerador1 é diferente para um e outro, é verdade, mas o acrônimo é um só: VAT (ou IVA, como é denominado pelos portugueses).
Não há dúvida de que os serviços em nuvem, nos termos da legislação europeia, refere-se ao fornecimento de um serviço, e assim deve ser tributado. É que de acordo com o artigo 242 da Diretiva 2006/112/EC3 , o fornecimento de serviços corresponde a qualquer transação que não corresponda ao fornecimento de bens. Define-se por exclusão: se não há fornecimento de bem, há fornecimento de serviço, gênero que inclui os serviços eletrônicos, cujo conceito é claro na legislação europeia: serviços eletrônicos são aqueles “prestados através da Internet ou de uma rede eletrônica, e cuja natureza torna a sua prestação essencialmente automatizada, requerendo uma intervenção humana mínima, e que são impossíveis de assegurar na ausência de tecnologias da informação”4 . Com efeito, esta é precisamente a ideia da computação em nuvem: os modelos IaaS, PaaS ou SaaS são prestados através da Internet, requerem intervenção mínima de humanos, e permitem ao consumidor gerenciar ou controlar a infraestrutura de nuvem subjacente (IaaS), desenvolver e operar o software (PaaS), ou usar este software em qualquer lugar (SaaS).
No Brasil, insiste-se na discussão se o fornecimento da computação em nuvem é fato gerador do ISS ou do ICMS. Mormente em relação ao modelo SaaS, revive-se o infindo debate se o software, no caso, é personalizado ou de prateleira5 . O SaaS, para o leitor que é leigo no assunto, é o modelo de computação em nuvem mais fácil de visualizar. Exemplos básicos podem-se resumir ao acesso pelo usuário ao Google Drive6 ou o acesso pelo usuário ao e-mail pessoal pela internet. De acordo com Strommen-Bakhtiar e Ravazi7, SaaS é basicamente o fornecimento, pela internet, de serviços de software sob demanda. Mulholland, Pyke, e Fingar8 observam que SaaS é um modelo fornecido ao consumidor para ele usar os aplicativos em uma infraestrutura de nuvem, acessível a partir de vários dispositivos, através de uma interface como um navegador na internet. Os autores deixaram claro, ainda, que um dos benefícios desse modelo é reduzir os custos porque, por exemplo, tanto a matriz quanto suas afiliadas podem ter acesso ao software em qualquer lugar do mundo. Desse modo, não há necessidade de que cada filial disponha de um software específico; a matriz faz o pagamento da licença para usar o software, que pode posteriormente ser acessado por cada entidade associada, independente do local em que ela esteja localizada.
De acordo com Moreira Junior e Almeida9 , para a incidência do ICMS é necessária a presença de três elementos: “operação”, “circulação” e “mercadoria”10 . Para os autores, o elemento “circulação” não é verificado no caso do SaaS, uma vez que não há troca de titularidade do bem. Assim, a tributação do fornecimento de computação em nuvem dependeria da previsão na Lista Anexa da lei complementar 116/03, que regulou o disposto no art. 156, III, da Constituição Federal 11 . O item 1.05 (licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação) é opção para evitar que o fornecimento do serviço de computação em nuvem não fosse tributado. Para Moreira Junior e Almeida12 , porém, a licença de uso, da forma em que consta no item 1.05, refere-se a softwares de encomenda, e não softwares “standards”, fazendo ressurgir o antigo debate. Na intenção de por fim a qualquer desavença, o Secretário Municipal da Fazenda de São Paulo lançou parecer13 para definir que “o licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação, por meio de suporte físico ou por transferência eletrônica de dados, ou quando instalados em servidor externo (Software as a Service - SaaS), enquadra-se no subitem 1.05 da lista de serviços”; independentemente “de o software ter sido programado ou adaptado para atender à necessidade específica do tomador (software por encomenda) ou ser padronizado (software de prateleira)”. É um caso específico, de um município específico, que pode inclusive ser barrado caso se impugne, no Poder Judiciário, a norma local contra a LC 116/03. Em nível nacional, há um projeto de lei complementar (PLC n. 171/12)14 que pretende deixar claro a competência impositiva dos municípios brasileiros nessa questão, ao adicionar na lista anexa da LC 116/03 os serviços de “computação em nuvem”.
Pois bem, na medida em que a competência dos municípios para cobrar o ISS vai se revelando mais facilmente, deve-se dar início à discussão sobre o local onde a prestação desses serviços deve ser tributada. Mais tecnicamente, é importante discutir o aspecto espacial do fato gerador. Com efeito, para verificar o local onde o ISS deve ser cobrado, lembre-se que no dia 28/11/12, ao julgar o REsp 1.060.210-SC representativo de controvérsia repetitiva, o STJ firmou orientação no sentido de que, em se tratando do ISS em arrendamento mercantil15 , o ente competente para a cobrança do tributo, a partir da LC 116/03, é aquele onde a relação é perfectibilizada, assim entendido o local onde se comprove haver unidade econômica ou profissional da instituição financeira com poderes decisórios suficientes à concessão e aprovação do financiamento. O entendimento, por certo, não se restringe apenas ao negócio jurídico do arrendamento mercantil. Todavia, é necessário proceder ao esforço exegético para encaixar o raciocínio nas diversas hipóteses previstas na lista taxativa e anexa à LC 116/03. Diante disso, para definir o aspecto espacial, o intérprete da LC 116/03 deve levar em conta três situações distintas16 : i) uma em que serviço é prestado por empresas que comportem sede e ramificações, como os grandes empreendimentos em geral. Nesse caso, de acordo com a orientação do STJ, o imposto é devido no local do estabelecimento prestador (LC 116/03, art. 3), onde o contribuinte de fato desenvolve a atividade de prestar serviços, sendo irrelevantes para caracterizá-los as denominações de sede, filial etc (LC 116/03, art. 4). ii) outra quando o serviço é prestado por quem não utiliza de estabelecimento para realizar a atividade, como muitos profissionais autônomos, situação em que o imposto é devido no local do domicílio do prestador (LC 116/03, art. 3). iii) e a última quando a hipótese se encaixar nos incisos do art. 3º da LC n. 116/03, situação em que o imposto é devido no local onde o serviço for efetivamente prestado.
Verifica-se, então, que a prestação de serviços na economia digital, e isso inclui a computação em nuvem, é tributada no lugar onde o fornecedor está localizado. Isso porque as hipóteses relacionadas à economia digital não estão previstas no incisos do art. 3 da LC 116/03. Na nossa opinião, isso vai de encontro à tendência mundial de tributar o consumo onde ele de fato ocorre. Pior: a legislação vigente prejudica a receita dos municípios menores, que poderiam se beneficiar de uma regulação mais justa, se ela desse prevalência ao local onde os consumidores estão localizados. Além de modificar a sujeição ativa nessas hipóteses, a legislação brasileira deveria estar preparada para combater os comportamentos evasivos e os planejamentos tributários abusivos levados a efeito pelos contribuintes na economia digital. É muito simples, por exemplo, instalar um servidor em um município de baixa tributação e fornecer, dali, os serviços de computação em nuvem para a matriz e outras afiliadas. Também é fácil instalar esse servidor em município de baixa tributação para receber os serviços de “cloud computing”. Independe, portanto, se a tributação é realizada no município de destino ou no município de origem. A fim de evitar tal problema, na Europa exigia-se que o estabelecimento fixo (filial, subsidiária etc.) da empresa matriz tivesse um grau suficiente de permanência e uma estrutura adequada, em termos de recursos humanos e técnicos, que lhe permitisse efetuar as prestações desses serviços17 . Apenas se houvesse dita estrutura é que o Estado-membro onde a filial ou a subsidiária estavam localizadas poderia exigir o tributo. É uma solução apropriada para evitar que a simples instalação de um servidor em um município de baixa tributação fosse suficiente para atrair a competência tributária para aquela localidade.
Diante disso, este texto pretende ir além para discutir o que realmente importa na tributação sobre o consumo dos serviços de computação em nuvem. É um serviço que, diante da capacidade contributiva do adquirente, pode e deve ser tributado. Deve-se debater, então, qual município tem competência para cobrar o imposto. Também é necessário modernizar a legislação a fim de tributar o consumo onde ele realmente ocorre. Medidas legislativas a fim de evitar comportamentos elisivos e evasivos também devem ser tomadas, mormente nessa onda digital, na qual o consumo existe, mas a receita tributária equivalente não é arrecadada.
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1 De acordo com o art. 63 da Diretiva 2006/112/CE, “o fato gerador do imposto ocorre e o imposto torna-se exigível no momento em que é efetuada a entrega de bens ou a prestação de serviços”.
2 Artigo 24 - Entende-se por “prestação de serviços” qualquer operação que não constitua uma entrega de bens.
3 A Diretiva 2006/112/EC revogou a Sexta Diretiva 77/388/CEE e estabeleceu o sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA).
4 Artigo 7 do Regulamento de Execução (UE) n. 282/2011, que estabelece medidas de aplicação da Diretiva 2006/112/CE relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA).
5 De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Os programas de computação, feitos por empresas em larga escala e de maneira uniforme são mercadorias de livre comercialização no mercado passíveis de incidência do ICMS. Já os programas elaborados especialmente para certo usuário exprimem verdadeira prestação de serviço sujeita ao ISS”. Ver REsp 1070404 / SP, rel. Min. Eliana Calmon, j. 26-8-2008.
6 Google Drive é um serviço de armazenamento e sincronização de arquivos, apresentado pela Google Ver: clique aqui.
7 RAVAZI, Amir R.; STROMMEN-BAKHTIAR, Abbas in: HILL, Richard; MAHMOOD, Zaigham. Cloud computing for enterprise architectures. London: Springer, 2011. p. 53.
8 FINGAR, Peter; MULHOLLAND, Andy; PYKE. Enterprise Cloud Computing: A Strategy Guide for Business and Technology Leaders. Tampa: Meghan-Kiffer Press, 2010. p. 30.
9 ALMEIDA, Flora Ferreira de; MOREIRA JUNIOR. Gilberto de Castro. Cloud computing e a tributação do software as a service (SaaS) in: Estudos de Direito Tributário em Homenagem ao Prof. Gerd Willi Rothmann. São Paulo: Quartier Latin, 2016.
10 Conclusão extraída da literalidade do art. 155, II, da Constituição Federal: (...) II - Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.
11 Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (...) III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.
12 ALMEIDA, Flora Ferreira de; MOREIRA JUNIOR. Gilberto de Castro. Cloud computing e a tributação do software as a service (SaaS) in: Estudos de Direito Tributário em Homenagem ao Prof. Gerd Willi Rothmann. São Paulo: Quartier Latin, 2016.
13 Parecer Normativo SF 1 DE 18/7/17, que dispôs sobre a incidência do ISS relativamente aos serviços de licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação, por meio de suporte físico ou por transferência eletrônica de dados, ou quando instalados em servidor externo.
14 PLC 171/12, que modifica a lista de serviços anexa à LC no 116, de 31 de julho de 2003, que dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, e dá outras providências.
15 É bom deixar claro que a decisão é anterior à LC n. 157/2016, que inclui o inciso XXV no art. 3 da LC 116/03, para definir que na prestação de serviços de arrendamento mercantil o imposto é devido no domicílio do tomador desses serviços
16 Foram essas as conclusões que o autor, junto ao Desembargador Júlio César Knoll, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, tirou ao analisar a Apelação Cível 2012.089761-3, de Criciúma, j. 20/10/15.
17 Nos termos do art. 11 (2) do Regulamento de Execução (UE) 282/11, que estabelece medidas de aplicação da Diretiva 2006/112/CE relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), para a aplicação do artigo 44 da Diretiva 2006/112/CE, entende-se por estabelecimento fixo qualquer estabelecimento, diferente da sede da atividade, caracterizado por um grau suficiente de permanência e uma estrutura adequada, em termos de recursos humanos e técnicos, que lhe permitam fornecer os serviços que oferece.
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*Gabriel Bez Batti é mestre (LLM) em International Tax Law pela Vienna University of Economics and Business e pós-graduado pela FGV.