O abuso nas ações de improbidade administrativa e a possibilidade de reparação dos danos causados ao agente público
Gustavo Russignoli Bugalho*
Atualmente, após quase quinze anos de sua promulgação, a lei em questão vem sendo utilizada regularmente pelos órgãos fiscalizadores, mormente pelo Ministério Público, no exercício de suas funções.
Isto ocorre, em primeira análise, por duas fundamentais razões, a saber:
1- A extensa gama de amplitude decorrente da tipificação notadamente aberta das condutas puníveis, o que evidencia ao Órgão Acusador, a possibilidade de realizar o enquadramento de uma mesma conduta por diversas correntes interpretativas e, assim, atribui-se várias aplicações legais à mesma, aumentando-se, então, a possibilidade de êxito na demanda judicial.
2- A possibilidade, em tese, de sua instauração, seguindo-se as regras gerais de competência, em qualquer instancia e juízo, notadamente, especialmente após o julgamento da ADIN 2797 pelo Supremo Tribunal Federal, que entendeu pela inconstitucionalidade do parágrafo segundo do artigo 84 do Código de Processo Penal, incluído ali pela lei 10.628/02 (clique aqui).Tal artigo determinava a aplicação do Foro por Prerrogativa de Função aos agentes a ele submetidos, também nas ações por ato de improbidade administrativa.
Estas duas peculiaridades retro-citadas da lei 8429/92, trazem como características práticas a maior facilidade de manejo por parte do órgão fiscalizador, e a conseqüente maior possibilidade de êxito de condenação, do que outros instrumentos de semelhante finalidade e de iguais conseqüências, notadamente, exemplificativamente, em relação aos processos por crime de responsabilidade que são constitucionalmente atribuídos a determinadas categorias de agentes políticos.
A grande diferença que faz com que ocorra uma nítida maior aplicação das ações previstas na lei 8429/92 sobre as ações de responsabilidade, notadamente em relação aos membros do Poder Executivo Municipal e o regime do Decreto-lei 201/67, está no fato de que neste último, prevalece a obrigatoriedade do foro por prerrogativa de função, o que denota maior neutralidade dos órgãos participantes do feito, em razão da distância para com os fervores políticos locais, e, assim, a menor possibilidade de condenação do agente público, ocorrendo esta somente em situações nas quais demonstrou-se incontestável a irregularidade.
Todo este cenário prático debanda, em diversas vezes, na utilização dos conceitos da Lei de Improbidade Administrativa como uma verdadeira “panacéia” contra todos os males que assolam o Poder Público no país, remetendo-se, por isso, a uma utilização indiscriminada deste instituto.
Talvez por este fato é corrente a tendência atual de se processar o agente público, notadamente o agente político, por todo e qualquer fato que, ainda que em sutil e questionável irregularidade não pode ser sequer enquadrado na categoria de imoralidade.
Assim, o que ocorre na prática, hoje em dia, é o super-abarrotamento dos cartórios com ações cíveis públicas originadas inquestionavelmente das conseqüências do fervor e dos rumores públicos, bem como, muitas vezes oriundas de fatos genéricos, o que demanda o inevitável equívoco de ações em grande parte nascidas com intuito único e exclusivamente político, ou, quando não, de legitimidade fiscalizadora duvidosa.
Nesta situação, a ação de improbidade administrativa ajuizada perde sua eficácia como instrumento de moralização e punição do agente desonesto, desviando-se sua finalidade e passando a servir como instrumento de inviabilização da condução da Administração Pública e acuamento do agente político na realização de sua gestão, obtendo caracteres nitidamente políticos e, assim, cooperando com o engessamento dos Poderes Estatais, mormente do Poder Executivo, que observa-se regredir a cada dia.
Nota-se que o Direito Positivo Brasileiro não admite, em hipótese alguma, o desvio de finalidade e o abuso de direito, mormente dos atos estatais, sendo obrigatória na aplicação dos institutos jurídicos a estrita observância das razões atinentes à sua existência, caracterizando tais desvios e abusos na condição de ato ilícito.
Sobre o desvio de finalidade, escreveu o saudoso administrativista Hely Lopes Meirelles:
“O desvio de finalidade ou de poder verifica-se quando a autoridade, embora atuando nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos ou com fins diversos dos objetivados pela lei ou exigidos pelo interesse público. O desvio de finalidade ou de poder é, assim, a violação ideológica da lei, ou, por outras palavras, a violação moral da lei, colimando o administrador público fins não queridos pelo legislador, ou, utilizando motivos e meios imorais para a pratica de um ato administrativo aparentemente legal.” (in Direito Administrativo Brasileiro, p. 109)
O Direito Administrativo pátrio, por sua vez, determina como requisito intrínseco a qualquer ato administrativo, nestes incluída a ação fiscalizadora exercida pelo Ministério Público, sua vinculação à finalidade para o qual for realizado, estabelecendo nulidade para aqueles atos que não observarem tal finalidade.
Assim, na situação discorrida no início do presente trabalho, observa-se que a lei de improbidade administrativa vem sendo utilizada cada vez mais como um aparato político e de pressão contra o agente público, desviando-se totalmente de sua finalidade legal de prevenção, fiscalização e punição de atos ilegais praticados pelo agente público, o que constitui um verdadeiro abuso do direito de fiscalização de condutas pelos respectivos órgãos fiscalizadores.
O Código Civil também estabelece o desvio de finalidade e o abuso de direito como um espécie de ato ilícito, notadamente no artigo 187, ao estabelecer:
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes”
Inquestionável que, configurando-se o desvio de finalidade e o abuso de direito, assim, ocorrendo o ato ilícito, e em razão disso vindo a vítima a sofrer danos, ainda que exclusivamente de índole moral, o Direito Pátrio, notadamente na seara cível e constitucional, estabelece a obrigatória reparação dos danos sofridos.
Isto se depreende, especialmente, do dispositivo inserido ao nosso regime da Responsabilidade Civil, pelo artigo 927 do Código Civil vigente, verbis:
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”
No que diz respeito à situação ora abordada, no qual o agente causador do dano em razão de conduta viciada seja agente ligado à Administração Pública, observa-se que a Constituição Federal, em seu artigo 37, §6º, estabelece a obrigatoriedade objetiva de reparação dos danos causados nestas condições, verbis:
“Art. 37. (...)
§6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável no caso de dolo ou culpa.”
Nesta esteira, também, a Constituição Federal distribui diversas disposições normativas objetivando a proteção da pessoa privada contra os excessos exercidos através do abuso de direito e do desvio de finalidade, notadamente ao disciplinar a inviolabilidade da intimidade, da honra, da imagem e da vida privada (art. 5º, inciso X), o direito de indenização do dano moral, material e à imagem (art. 5º, V), dentre outras.
É indiscutível que, em se tratando de agentes políticos, homens de vida pública, o bem mais valioso que lhes pertence é sua imagem de credibilidade perante a população, perante o eleitorado, o que torna catastrófico o efeito de uma acusação oficial de se ver submetido a uma ação por improbidade administrativa, repercutindo isto, diretamente em sua vida profissional futura, bem como em todos os aspectos de sua vida íntima e privada.
Assim, o Direito não admite a utilização de procedimentos administrativos ou judiciais disciplinares genéricos, cuja conseqüência direta é o início de uma devassa profunda na vida do agente público, objetivando-se encontrar, como citou o ilustre doutor Mauro Roberto Gomes de Mattos ( in Responsabilidade Civil do Poder Público pelo Manejo indevido de ação de improbidade administrativa), “pseudoconduta ilícita” de sua parte, envolvendo-se inclusive, muitas vezes, no afã dos interesses políticos, a mídia.
Disso decorre, portanto, o direito reconhecido constitucionalmente ao agente público de, ao se ver repelido por uma ação de improbidade administrativa genérica, ou seja, baseada em acusações vagas ou intuitos de caráter políticos, pleitear a reparação dos danos causados à sua honra e moral, bem como a todos os danos materiais que lhe forem causados pela atuação do Estado na esfera judicial, como efetiva garantia da prevalência geral e irrestrita do Estado de Direito Democrático também na atuação jurisdicional.
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*Advogado no âmbito do Direito Público no Estado de São Paulo. Especialista em Direito Constitucional pelo Centro de Extensão Universitária.
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