Migalhas de Peso

Sarahah e Secret: notas sobre o anonimato aparente em aplicativos de internet

O que se deve buscar entender é o motivo pelo qual muitos usuários se aproveitam dessas oportunidades de modo lesivo, e como é possível que essa utilização disfuncional não mais ocorra.

9/8/2017

O Sarahah. A nova rede social Sarahah vem chamando a atenção da mídia e dos usuários no mundo todo e liderando os rankings de aplicativos mais baixados em diversos países.

Com a premissa de permitir que as pessoas sejam mais honestas e francas umas com as outras (“get honest feedback from your coworkers and friends”), o aplicativo viabiliza o envio de mensagens anônimas para outros usuários, eliminando o risco de criação de mal-estar ou ressentimento com o remetente. A mensagem não pode ser respondida pelo destinatário, apenas “curtida”, embora conste no site do app que essa funcionalidade está sendo avaliada.

Segundo o criador do aplicativo, Zain al-Abidin Tawfiq, originalmente a ideia era possibilitar que as pessoas pudessem efetuar críticas construtivas no ambiente profissional sem medo de possíveis retaliações de seus chefes.1

Implicações jurídicas e direitos em discussão. No Brasil, as discussões geradas pela disponibilização do aplicativo dizem respeito à privacidade, à vedação ao anonimato e aos limites da responsabilização dos provedores de aplicação pelos danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Tais assuntos permeiam direitos e deveres estabelecidos na lei 12.965/14, o Marco Civil da Internet, e na Constituição Federal. Ainda, com a súbita popularidade do Sarahah, diversas vozes acusaram o aplicativo de ser um terreno fértil para a proliferação de condutas de cyberbullying e de mensagens de ódio.

Fato é que esta não é a primeira vez que estas discussões surgem no Brasil. Há poucos anos, o aplicativo Secret, com proposta semelhante, já ganhava espaço nos fóruns midiáticos e judiciais. Natural, portanto, que a resposta jurisdicional dada àquele caso auxilie a esclarecer algumas das questões que hoje cingem o Sarahah.

Experiência brasileira com o aplicativo Secret. A popularidade e a polêmica atreladas à ferramenta de feedback “anônimo” remetem, inevitavelmente, às discussões envolvendo o aplicativo Secret, disponibilizado no Brasil entre 2014 e 2015, com a proposta de permitir que os usuários publicassem e comentassem “segredos” sem imediata identificação de autoria.

Em 2015, o Ministério Público do Estado do Espírito Santo ajuizou Ação Civil Pública com o intuito de proibir a disponibilização do Secret no Brasil por entender que o aplicativo violaria a vedação constitucional ao anonimato e estimularia a troca de ofensas entre os usuários.

À época, a 5ª Vara Cível de Vitória chegou a deferir liminar inaudita altera parte determinando a remoção do aplicativo das lojas virtuais entendendo que:

“a utilização dos aplicativos desrespeita a parte final do art. 5º, IV, da Constituição Federal (vedação ao anonimato), bem como inviabiliza, ou pelo menos torna extremamente difícil, a possibilidade de obter indenização por dano material ou moral decorrente de eventual violação ao direito da privacidade, honra e imagem das pessoas (art. 5º, X, CF).”2

Anonimato apenas aparente. Nesta ocasião, a empresa Secret Inc. compareceu em juízo e esclareceu que, muito embora o aplicativo proporcione ao usuário relativo anonimato, no ambiente online os passos do internauta podem ser rastreados. Tanto no caso do Secret, quanto no contemporâneo Sarahah, basta uma leitura mais atenta dos termos de uso para verificar que o anonimato é apenas aparente e não impossibilita que determinado usuário seja identificado, nos termos do Marco Civil3 para reparar danos que eventualmente cause.

O anonimato no Sararah, assim como no Secret, não é – e nunca foi – absoluto, pois não se estende às autoridades e não impede a identificação de usuários que postem conteúdo indevido.

Na verdade, o suposto anonimato que existe no Sararah é o mesmo que é igualmente possível em diversos sites na internet, tanto em redes sociais como o Facebook e Twitter, como em servidores de e-mail tal qual o Gmail ou em sites de notícias como o Globo.com, em suas áreas de comentários. Em todos esses sites ou serviços, qualquer usuário pode se cadastrar e criar contas ou perfis falsos, sem fornecer seus dados pessoais, sendo o endereço de IP a maneira de se rastrear o responsável por eventual conteúdo lesivo a terceiros.

Decisão paradigmática do TJ/ES. Em emblemática decisão, a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Espirito Santo reverteu a liminar concedida pelo juízo de primeiro grau na Ação Civil Pública ajuizada para bloquear o aplicativo Secret. Nas palavras do relator, desembargador Robson Luiz Albanez, o que motivou o seu voto pela manutenção do aplicativo nas lojas virtuais foi o fato de o aplicativo não diferir, quanto ao seu potencial lesivo, de inúmeras outras ferramentas disponíveis na rede mundial:

“Creio que este aplicativo não difere, em essência, de muitos outros utensílios da rede mundial de computadores em que se apresenta viável o seu uso como instrumento ofensivo, sob o manto de aparente anonimato. Não se revela incomum o uso de sites ou aplicativos, como Facebook ou Twitter, por pessoas que valem-se de “perfis” falsos para dar destinação imprópria a tais ferramentas.”4

O Regime de responsabilidade dos provedores de aplicação no Marco Civil. Conforme o art. 19, do Marco Civil5, provedores de aplicação, como o Sarahah, não respondem pelos danos decorrentes do conteúdo gerado pelos seus usuários, salvo se, após ordem judicial específica, não tomarem as providências necessárias à indisponibilização do conteúdo6. Importante notar o legislador não excepciona a imprescindibilidade de ordem judicial que obrigue o provedor a retirar o conteúdo e, exige, ainda, que a decisão delimite, de maneira clara, o conteúdo infringente e aponte a sua exata localização na web7.

Já os agressores, aqueles que forem responsáveis pelas postagens indevidas, podem ser identificados por meio do rastreamento do IP e, portanto, podem ser instados a responder pelos danos aos quais deem causa no ambiente virtual8.

Àqueles que anunciam prognósticos pessimistas de que o aparente anonimato do ambiente digital estimula a adoção de posturas potencialmente lesivas, importa esclarecer que, nas palavras do próprio legislador, o regime instituído pelo Marco Civil visa “assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”.

Obrigação de guarda dos registros de acesso. Por fim, vale lembrar que os provedores de aplicações de internet, por força de determinação contida no art. 15 do Marco Civil9, são obrigados a manter os registros de acesso a aplicações pelo prazo de 6 meses. Tal dever, portanto, garante que a identificação de usuários que proliferem danos pode ser fornecida pelos provedores às autoridades competentes na forma da lei.

Conclusão. O Sarahah não é o primeiro aplicativo que permite o envio de mensagens aparentemente anônimo e tampouco a primeira ferramenta perseguida por pessoas preocupadas com a proliferação do ódio na internet.

Embora essa preocupação seja absolutamente legítima, ela parece mal direcionada. Parece haver um interesse real dos usuários nesse tipo de ferramenta e proibi-la pode ir de encontro à desejável liberdade no ambiente online. Há de se ter em mente que o fato de um aplicativo garantir um aparente anonimato a seus usuários, não significa que o anonimato seja absoluto e que não haja meios de se identificar pessoas que, abusando de seu direito de liberdade de expressão, invadam a esfera de direitos de outros e causem danos.

Como visto acima, o sistema jurídico brasileiro hoje conta com elementos e meios para identificar o autor de eventual ofensa propagada na internet, de modo a permitir que o lesado busque seu direito à devida reparação.

Recorda-se que, tal qual a privacidade, que vem experimentando uma releitura em seu conteúdo à luz dos valores constitucionais, e que sofreu virada radical em sua concepção nos últimos anos, também outras questões jurídicas intensificadas pela presença da rede precisam ser revaloradas de modo compatível com a realidade atual e com as concepções sociais vigentes.

Nesse sentido, também a questão da vedação ao anonimato merece uma repaginação que seja compatível com as necessidades da sociedade contemporânea, amplamente conectada, para que não se engesse a criação de novas tecnologias e aplicações sob falsos pretextos excessivamente paternalistas de proteção.

Assim, a perspectiva meramente estrutural da vedação ao anonimato precisa atentar para a verdadeira função do instituto, que é a de impedir que danos restem irreparados. Isso, de modo consentâneo com a perspectiva atual da responsabilidade civil que busca evitar que vítimas não possam ser compensadas por eventuais danos sofridos.

A discussão que realmente merece ser aprofundada, portanto, não é se os programas devem existir, já que estes não criam conteúdos, não ofendem direitos de terceiros e tampouco garantem anonimato absoluto que inviabilize a identificação do agente causador de um dano. O que se deve buscar entender é o motivo pelo qual muitos usuários se aproveitam dessas oportunidades de modo lesivo, e como é possível que essa utilização disfuncional não mais ocorra.

Uma vez feita essa reflexão, os aplicativos não poderão ser tratados como os culpados por uma internet violenta e lesiva. Os usuários, por sua vez, terão que admitir que é seu próprio comportamento que deve ser alterado. Nesse sentido, o Sarahah, que significa “franqueza” ou “honestidade” em árabe, pode até mesmo vir a contribuir.

______________________

1 KIRCHER, Madison Malone. Teens Explain Their Obsession With Sarahah, Summer’s Hottest Anonymous-Gossip App. NYMAG.com. Disponível em: clique aqui

2 5ª Vara Cível de Vitória. Processo 0028553-98.2014.8.08.0024. Decisão de: 19/8/14.

3 Termos de uso do Sarahah na língua original, consultado em 31/7/17: “We will never disclose the this (sic) information unless there is a law requirement or with good intention if we feel that this procedure is required or wanted to meet legal requirements” (

clique aqui). Tradução livre: “Não iremos revelar as informações, salvo para atender a exigências da lei”. Termos de uso do aplicativo Secret, consultado em 24/10/2014: “Se o conteúdo de um Post pode ser considerado ilegal ou ilícito (ou em casos nos quais o Post esteja sendo utilizado para realizar, incentivar ou promover tais atividades), caso em que podemos relatar a sua identidade às autoridades competentes, a fim de proteger direitos, a propriedade e a segurança do Secret, de nossos usuários e/ou de outros”. (Clique aqui).

4 TJES. 3ª CC. AI 0035186-28.2014.8.08.0024. Trecho do voto do Des. Rel. Robson Luiz Albanez. Julgamento em: 7/4/15.

5 Art. 19 da lei 12.965/14:

Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

6 A interpretação desta norma já foi, inclusive, discutida pela jurisprudência que “entende necessária a notificação judicial ao provedor de conteúdo ou de hospedagem para retirada de material apontado como infringente, com a indicação clara e específica da URL - Universal Resource Locator.” (STJ. Recurso Especial 1.568.935-RJ. Terceira Turma. Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Data do julgamento: 5/4/16)

7 Art. 19, § 1o, da ei 12.965/14: A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.

8 A respeito da imprescindibilidade de ordem judicial para responsabilização do provedor de aplicação: STJ. REsp 1.582.981-RJ. Terceira Turma. Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze. Data do julgamento: 10/05/2016; STJ. REsp 1.568.935-RJ. Terceira Turma. Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Data do julgamento: 5/4/16; STJ. AgRg no Ag em REsp 712.456-RJ. Terceira Turma. Rel. Ministro João Otávio de Noronha. Data do julgamento: 17/3/16.

9 Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento.

_______________________

*Isaura Silva é advogada do escritório Licks Advogados.

*Douglas Leite é advogado do escritório Licks Advogados.

*Fernanda Cohen
é advogada do escritório Licks Advogados.



Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Coisa julgada, obiter dictum e boa-fé: Um diálogo indispensável

23/12/2024

Macunaíma, ministro do Brasil

23/12/2024

Inteligência artificial e direitos autorais: O que diz o PL 2.338/23 aprovado pelo Senado?

23/12/2024

"Se não têm pão, que comam brioche!"

23/12/2024

“Salve o Corinthians”

24/12/2024