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Validade e atipicidade da "compra e venda" de monografia

A “compra e venda” de monografia, em negócio envolvendo o titular da obra, é válida e penalmente atípica.

8/8/2017

A expressão "compra e venda" de monografia é inadequada. Primeiro, porque gera a falsa compreensão de que somente a transferência onerosa do direito autoral de nominação1 é relevante. Se o objetivo da monografia é aferir o conhecimento do estudante, pouco importa se o aluno pagou ou não pelo uso do direito de terceiro. Segundo, porque a compra e venda, tal como a doação e a permuta, é espécie de alienação, que significa transferência de coisa2. Nos casos envolvendo monografia, o objeto do negócio é o direito moral do autor de pôr o nome em sua obra. Por conta disso, já afirmaram, em observação que vale para qualquer negócio envolvendo direito, que não se vendem direitos autorais, nem se doam, nem se permutam. Transferem-se por cessão3.

É preciso distinguir ainda a cessão do direito por quem não criou da que é feita pelo autor da obra. Só o segundo negócio é controverso. Aquele é sem dúvida nulo e crime. A nulidade decorre da impossibilidade de algum dia o cedente ser considerado o criador de obra realizada por outrem. A paternidade de obra intelectual é estritamente genética (art. 11 da lei 9610/98). Assim, negócio jurídico com obra alheia consubstancia objeto impossível, e, por isso, nulo (art. 166, II, do CC). Além do ilícito civil, a cessão configura crime previsto no artigo 184 do Código Penal, pois implica usufruir de direito autoral sem autorização do autor; violação, portanto.

A proibição para que o verdadeiro autor de obra intelectual ceda o direito a terceiro não se deduz da norma que veda a "alienação" e renúncia de direitos autorais (art. 24, da lei 9610/98). A cessão é feita na modalidade licença, e não oneração. Enquanto essa modalidade gera direito de exclusividade e produz efeitos contra terceiros, a licença, por sua vez: " [...] se esgota na relação jurídica constituída com o autor" 4. O autor poderia declarar a todo tempo o direito de paternidade (o qual gera efeitos contra todos), embora, como alerta Desbois5: "[...] da vinculação contratual devesse resultar o dever de indenizar".

Para Ascensão6, o uso do direito de nominação por terceiro poderia esbarrar na norma prevista no art. 5, XXVII, da CF, que confere ao autor o direito exclusivo de utilizar a obra. No entanto, o destinatário dessa norma é o titular dos direitos de autor, e não necessariamente o autor intelectual. Faz referência inclusive à norma do Código Civil anterior (art. 667, do CC de 1916), que permitia a alienação dos direitos morais de autor, para concluir: "[...] perante textos constitucionais semelhantes, o art. 667 do Código Civil nunca foi considerado inconstitucional"7.

Ainda segundo o autor, o contrato de “compra e venda” de monografia, na modalidade licença, é lícito. A cessão total seria nula, pois a norma extraída do art. 52, da lei 9610/98, aplicável por analogia ao caso, ressalva os direitos de natureza personalíssima da cessão em bloco dos direitos autorais8. Isso não implica proibição da licença, pois mantém incólume a faculdade de o autor assumir a qualquer tempo a titularidade da obra. Arremata Ascensão:

Quer isto dizer que o criador intelectual, mesmo que pudesse ceder o direito ao nome, manteria na sua titularidade um núcleo fundamental de poderes ínsitos no direito de autor. [...] E entre esses poderes está [...] o direito à paternidade da obra (art. 25, I). A ser válida semelhante cláusula, só se poderia pois admitir de modo limitado e revogável a todo o tempo, pois o criador intelectual nunca perderia o direito de reivindicar essa qualidade.

A despeito disso, deve ser considerada suspeita a atitude do autor de monografia que assume posteriormente a paternidade da obra licenciada. O aparente exercício do direito poderia mascarar cobrança de dívida ou até rancor, por improvável sucesso alcançado pela obra acadêmica negociada.

O primeiro caso é mais comum, certamente. Na praxe acadêmica, doutores elaboram monografias para futuros doutores, doutorandos, para futuros mestres, e os mestrandos, por sua vez, os trabalhos de conclusão de curso para graduandos. Na maioria dos casos, a obra intelectual está aquém das habilidades intelectuais do criador. Um mestrando, por exemplo, utiliza sempre linguagem mais amena e evita grandes controvérsias quando faz trabalho de conclusão de curso. Desse modo, ainda que o autor possa reivindicar a paternidade a qualquer tempo, o exercício dessa faculdade revela, em regra, abuso de direito9; e, por consequência, a necessidade de indenizar o prejudicado.

Por outro lado, quem cede o direito de nominação da obra própria não viola direito moral do autor. O termo violar, previsto no art. 184 do Código Penal, significa utilização não consentida, em franca oposição ao que ocorre nos casos de licença. Conforme afirmou Fragoso:

Pratica-se o crime realizando qualquer ação que viole o direito de utilizar, de fruir e de dispor da obra, basicamente publicando ou reproduzindo, modificando ou divulgando, por qualquer meio, sem autorização, a obra a que se refere o direito. A tradução não consentida também é violação de direito autoral10

A apresentação da monografia feita por outrem também não se amolda ao crime de estelionato. Há fraude sem dúvida. No entanto, falta o prejuízo patrimonial, imprescindível ao tipo. Como alerta Hungria, demorou bastante tempo para a Ciência Penal desgarrar o crime de estelionato do crime precedente de falso. Na Espanha, por exemplo, é exigido inclusive o dolo específico, o ânimo de lucro, fora a necessidade do prejuízo patrimonial subsequente, embora com denominação equivalente ao falso (estafa, art. 248 do CP espanhol). Atualmente é indiscutível que o crime de estelionato tutela o patrimônio. Segundo Hungria:

a matéria punível não é a fraude em si mesma, o engano ou o induzimento em erro, mas a locupletação ilícita ou a injusta lesão patrimonial. O engano é apenas um momento precursor do crime. Este critério conceitual está definitivamente integrado no direito penal hodierno, tendo resultado de uma lenta e gradativa elaboração científica, no sentido de atribuir ao estelionato seu verdadeiro posto entre os crimes contra o patrimônio, para corrigir-se a imprecisão das fontes romanas e a obscura doutrina dos juristas medievais, que o haviam confundido com o falsum (ofensa à fides publica, sem necessidade de um efetivo dano material)"11

No caso da artimanha referida, inexiste prejuízo patrimonial à instituição lesada. Se for pública, implicará inclusive abertura de vaga com a saída do falsário, jubilado. Se particular, embora pequena parte da doutrina admita o lucro cessante12 no âmbito de proteção do estelionato, também não se vislumbra prejuízo mediato à instituição. O estudante pagará pela matéria referente ao projeto de apresentação do trabalho. O provável é que faça matrícula em outra faculdade, para concluir o curso, considerado o
esforço hercúleo a ser desenvolvido para apresentar nova monografia na mesma escola. Porém, mudar de instituição é franqueado ao estudante em qualquer etapa do curso. Embora haja perda de receita com sua saída - e por eventual êxodo estudantil acarretado pelo rigorismo docente -, o dano não pode ser atribuído ao falsário.

Também não configura falso ideológico, pois monografia não é documento para fins penais. A propósito, Von Liszt, ao comentar o Código Alemão, que não previa o conceito de documento, tal como o nosso, afirmou o motivo: [...]supõem-no ‘conhecido e firmemente estabelecido’"13]. No entanto, segundo o mesmo autor: "essa suposição é um erro lamentável, pois cada um dos caracteres do conceito é tão controvertido quanto a idéia fundamental sobre que ele se assenta" 14. Segundo a versão restritiva, documento para fim penal não é qualquer documento que sirva para prova, mas somente os que tenham: "[...]sido preparados para provar, pelo seu conteúdo intelectual (e não somente pela sua existência), um fato juridicamente relevante [...]15. Daí ter concluído Von Liszt que: "[...] O que constitui a essência do documento é o seu destino de prova e não a sua aptidão para a prova" 16.

A monografia, segundo a versão restritiva, não se ajusta ao conceito de documento para fins penais. Afinal, não é concebida para que o aluno prove ser o criador da obra apresentada. A apresentação perante banca examinadora pode até certificar que o aluno não sabe patavina do que escreveu. Isso significa que a monografia tem aptidão para provar quem foi seu criador, a partir da apresentação oral do trabalho ou da sabatina feita pela banca, mas não existe para esse fim.

Ainda que fosse documento, a declaração contida na monografia não é falsa ou diversa da que deveria constar, conforme exige o tipo penal objetivo do crime de falsidade ideológica. O Supremo Tribunal Federal, ao examinar caso de "cola eletrônica" 17 , em que vestibulando, posteriormente diplomado deputado federal, respondia a prova com a ajuda de professores (via rádio), decidiu que a conduta não configurava falso ideológico, como pretendia a acusação. O tema foi analisado antes da lei 12.550/11, que criminalizou a conduta (art. 311-A do CP).

Segundo a tese vencedora no STF, não haveria, pelo candidato, inserção em documento de conteúdo diverso do que deveria constar. As questões devem ser respondidas a critério do avaliado, facultado inclusive deixá-las em branco. Consideraram o envio das respostas pelo transmissor de rádio irrelevante para a configuração do falso ideológico. O tipo do falso não descreve o meio utilizado para declaração da vontade. Segundo o Ministro Cesar Peluzo, em voto vencedor nesse julgamento:

"[...]Para fins penais, releva tão só seja mentirosa a declaração, pouco se dando a via pela qual o declarante logre formar a representação mental dessa inverdade e o expediente de que lance mão para chegar a declará-la. No caso, falsas podem ter sido algumas das respostas às questões do vestibular, nunca o processo mediante o qual o agente se pôs em condições de formalizar as declarações correspondentes às respostas"

O precedente, embora tenha peculiaridades, é aplicável ao caso das monografias. Assim como o vestibulando não tem o dever de responder corretamente as questões formuladas na prova, o estudante não é obrigado a fazer constar qualquer declaração em monografia. Pode inclusive entregar o trabalho em branco. O modo de execução das fraudes é diferente sem dúvida. Enquanto o vestibulando tem o trabalho de transferir as respostas enviadas via rádio, o falso monografista recebe a obra já pronta, e assina. No entanto, o meio utilizado para o embuste é irrelevante para a configuração do crime de falso, conforme a razão de decidir do precedente aludido.

Portanto, a “compra e venda” de monografia, em negócio envolvendo o titular da obra, é válida e penalmente atípica. A bem da verdade, a incorreção do termo “compra e venda” de monografia, somada à falta de apelo comercial do termo jurídico correto, gera incontáveis cartazes com os dizeres: “digitação e correção de monografias”. Convenhamos, quem venderia monografia com a placa: licencia-se direito autoral de nominação na área de humanidades? Isso mostra que a mistificação em torno do tema é mais questão de marketing do que propriamente jurídica.

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1 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: tomo XV. Campinas: Bookseller, 2002, p. 87 e ss.

2 Para José de Oliveira Ascensão, o direito do autor de pôr o nome na obra criada é instrumental em relação ao direito de paternidade da obra, e consiste na: "[...] escolha, pelo autor, da designação que deverá ser utilizada na divulgação da obra" (ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 73).

3 Gribelli, Ivana Go. A regulação da construção de direitos autorais, a aparecer em: Eduardo Salles Pimenta, coordenação. Direitos autorais: estudos em homenagem a Otávio Afonso dos Santos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 154.

4 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 310.

5 DESBOIS, Le Droit d’Auteur en France, p. 527 e ss., a aparecer em: VITORINO, Antonio de Macedo. A eficácia dos contratos de direito de autor: contributo para uma teoria geral da natureza jurídica das transmissões, onerações e autorizações de exploração de obras intelectuais. Lisboa: Almedina, 1995, p. 64.

6 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 76.

7 Id. Ibidem.

8 Id. Ibidem.

9 Segundo Aguiar Dias: "Vemos, pois, que o abuso de direito, sob pena de se desfazer em mera expressão de fantasia, não pode ser assimilado à noção de culpa. [...] essa concepção, que limita exageradamente a ideia do abuso de direito, importa em deixar à margem, como adverte Rotondi, ‘todos os casos de abuso produzidos pela evolução das condições sociais, e que constituem o lado mais interessante, frequente e importante do fenômeno" (DIAS, Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 539).

10 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. São Paulo: Bushatsky, 1977, p. 199.

11 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, vol VII, arts. 155 a 196. Rio de Janeiro Forense,1967, p. 171. Cf. também Cláudio Heleno Fragoso, que, sobre o crime de estelionato, afirmou: O interesse juridicamente tutelado neste crime é a inviolabilidade do patrimônio, com especial referência às ações praticadas com engano ou fraude. De forma secundária é também tutela a segurança, a fidelidade e a veracidade dos negócios jurídicos patrimoniais [...] O estelionato é crime material e de dano, que se consuma com a vantagem ilícita patrimonial, que é o fim visado pelo agente. A fraude, o engano, é apenas o meio de que se serve. Não pode caber dúvida, pois, de que este é crime contra o patrimônio. A boa fé e a veracidade dos negócios é apenas tutelada secundariamente, de maneira reflexa (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. São Paulo, Bushatsky, 1977, p. 65).

12 BARIA DE QUIROGA, Jacobo Lopes. Derecho penal: parte especial. Madrid: Akal, 1994, p. 250.

13 LISZT, Franz Von. Tratado de Direito Penal alemão, vol. II. Brasília: Senado Federal, 2006, p. 307.

14 Id. Ibidem.

15 LISZT, ob. cit., p. 307.

16 Id. Ibidem.

17 Inq 1145. Rel. Min. Maurício Correa. DJU de 04-04-2008.

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*João Paulo Rodrigues de Castro é defensor público federal em Cuiabá.

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