Em 2002, com a ratificação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW - Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women), o enfrentamento acerca da violência especificamente contra a mulher ganhou forças e, em 7 de agosto de 2006 foi sancionada a lei federal 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha.
A lei recebeu este nome porque foi através da triste história de Maria da Penha Maia Fernandes que o Brasil - após ter sido condenado internacionalmente pela (in) tolerância, negligência e omissão estatal no que tange ao tratamento conferido aos casos de violência contra a mulher - se viu obrigado a cumprir algumas recomendações dentre as quais a de mudar a legislação brasileira a fim de que fosse permitida, nas relações de gênero, a prevenção e proteção da mulher em situação de violência doméstica e a punição do agressor.
Isso porque, em 1983, Maria da Penha começou a sofrer agressões pelo seu marido, o professor universitário colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, o qual, em duas ocasiões, tentou matá-la, sendo que, na primeira, com um tiro, deixou-a paraplégica. Em 1998, Maria da Penha, em parceria com o CLADEM (Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) e CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional), denunciou o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, resultando na condenação mencionada.
Pois bem. No seu 11º aniversário, a Lei Maria da Penha merece receber um crítico parabéns, implicando no enfrentamento da problemática com a devida consideração do histórico tratamento dado à mulher no ambiente familiar, marcado pelo exercício de poder pelos homens sobre as mulheres, justificado pela construção social de oposição e desigualdade entre os sexos e os papéis sociais a eles atribuídos.
A Lei Maria da Penha, muitas vezes, ao invés de cumprir o seu papel principal – o de proteger a vítima – tem, na verdade, contribuído para a perpetuação do ciclo de violência doméstica contra a mulher. A maioria das mulheres ainda se veem desencorajadas a buscar ajuda pois sabem que a denúncia pode punir gravemente o autor da agressão, que geralmente é um parente por quem elas ainda têm uma relação afetiva, proporcionando um lar ainda mais desestabilizado.
A lei apostou no enrijecimento penal e, consequentemente, na necessária imposição da pena ao agressor, num falacioso intuito de prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher, sem levar em consideração, contudo, um dos aspectos cruciais da problemática que é a existência - entre vítima e agressor - de uma relação familiar de afeto, de modo que, paradoxalmente, impôs sanções à mulher, agora reiteradamente vitimada pelo próprio Estado.
É preciso perceber que a via formal da justiça criminal é incapaz de solucionar os conflitos interpessoais, pois não apresenta soluções e efeitos positivos sobre os envolvidos e também não previne as situações de violência, ignorando, na verdade, as origens do conflito, e, de forma simbólica e seletiva, procura um culpado para impor-lhe uma pena. Nesse contexto, é urgente que se ampliem as discussões a respeito das melhores formas de resolução dos conflitos domésticos para além do sistema penal.
Não se pode negar, claro, que a Lei Maria da Penha introduziu mudanças significativas na legislação brasileira com relação à violência doméstica e familiar contra a mulher – a exemplo, concretamente, da inclusão na lei de medidas de assistência à mulher, como, por exemplo, a possibilidade de sua inclusão e de seus dependentes em programas de assistência governamental, além das medidas protetivas de urgência -, como uma forma de resposta às fortes demandas populacionais, corroboradas principalmente pelo apelo midiático por uma resposta mais incisiva contra a violência perpetrada contra a mulher no ambiente doméstico.
Contudo, como reflexo de uma política criminal excludente e mal elaborada e de uma criminologia que despreza uma análise acerca das causas sociais do crime, o ideal da "tolerância zero" tem ganhado espaço, sendo a contenção provisória considerada como única solução ao problema, que, na verdade, consiste efetivamente em uma pena antecipada, ocasionando uma inversão do sistema penal.
A proibição de utilização de institutos despenalizadores fruto da Lei Maria da Penha - com a vedação à utilização de alternativas capazes de evitar penas encarceradoras desumanas - deixou de contemplar a crise do atual sistema punitivo. A crença de que com a punição do agressor a vítima poderá descansar e encontrar sua paz é tão mentirosa quanto os ideais de ressocialização e prevenção que permeiam o nosso "modelo" de justiça penitenciária.
De acordo com o PCSVDF Mulher - Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, elaborado em 16 de dezembro de 2016, aproximadamente, 3 em cada 10 mulheres (27, 04%) nordestinas sofreram pelo menos um episódio de violência doméstica ao longo da vida, sendo que parceiros atuais e ex-parceiros são responsáveis pela quase totalidade da violência doméstica perpetrada contra as mulheres. São dados comprovadores de que, indubitavelmente, o manejo do sistema punitivo para assegurar a emancipação feminina é ferramenta claramente ineficaz no âmbito das políticas públicas.
É urgente, portanto, a necessidade em se observar criticamente as consequências geradas pela Lei Maria da Penha, a fim de aprimorar alguns mecanismos e aparatos da lei para, efetivamente, dirimir as consequências da violência doméstica, não (re) vitimizando a mulher, que tem se tornando refém de um sistema de aparências que surge para supostamente garantir sua emancipação.
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*Manuela Galvão é advogada especialista em Direito Penal, sócia do escritório da Fonte, Advogados.