No ano de 2016 o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que o tráfico de entorpecentes abarcado pela modalidade privilegiada não possui natureza hedionda.
Isso porque a menor ofensividade da conduta, reconhecida pela causa de diminuição de pena, seria incompatível com a caracterização da hediondez, reservada apenas aos crimes que atingem de maneira mais severa a sociedade.
Porém, talvez pela simples falta de análise do acórdão no caso julgado, surgiu controvérsia no meio forense no que se refere ao lapso temporal que deve ser cumprido para a concessão de livramento condicional em caso de tráfico privilegiado.
Sabe-se que o Código Penal, em seu artigo 83, I, define que sendo o agente primário e de bons antecedentes, entre outros requisitos, fará jus ao livramento condicional após o cumprimento de 1/3 (um terço) da pena.
Por sua vez, o inciso V estabelece que no caso de condenação por crime hediondo ou tráfico ilícito de entorpecentes, o livramento condicional dar-se-ia após o cumprimento de 2/3 (dois terços) da pena.
No mesmo sentido, a Lei de Drogas, no parágrafo único de seu artigo 44 estabelece que para os delitos previstos nos "arts. 33, caput e § 1, e 34 a 37" daquela lei, o livramento condicional somente poderá ser concedido após o cumprimento de dois terços da pena.
Assim, surgiu corrente de pensamento defendendo que, mesmo após o afastamento do caráter hediondo do tráfico privilegiado pelo STF, o condenado que faz jus a tal benefício somente poderia obter o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, pouco importando o caráter hediondo, por expressa disposição legal.
O entendimento não é correto.
Em primeiro lugar porque a lei 11.343/06 não prevê, para o livramento condicional, o lapso temporal de dois terços da pena para todos os delitos de tráfico nela disciplinados.
O artigo 44, caput e parágrafo único, é expresso nesse sentido de que apenas os crimes previstos no caput do artigo 33 e no parágrafo primeiro (além daqueles previstos nos artigos 34 e 37) é que exigem o cumprimento de dois terços da pena para o livramento condicional.
O dispositivo legal não cita, propositalmente, o parágrafo quarto do artigo 33 que, apesar de sua natureza jurídica de causa de diminuição de pena, é tratado pela doutrina, de certo modo, como um crime “autônomo” de tráfico privilegiado.
Do contrário, não haveria sentido em fazer menção expressa ao caput e ao parágrafo primeiro, se o parágrafo quarto também demandasse o cumprimento do lapso mais gravoso.
Em segundo lugar, olvida tal corrente que ao decidir pela natureza não hedionda do tráfico privilegiado, no julgamento do Habeas Corpus 118.533, o plenário do Supremo Tribunal Federal tratava justamente da concessão do livramento condicional após o cumprimento de um terço da pena.
Esse dado, inclusive, consta do acórdão, com transcrição da discussão entre os ministros Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia:
“O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – Senhor Presidente, só gostaria de fazer um comentário. Quer dizer, a Constituição considera inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. A consequência jurídica da posição da Relatora, que eu acompanhei, não afeta nem a inafiançabilidade, nem a concessão de graça ou anistia. Ao dizer que não é hediondo, a consequência prática é acelerar a progressão de regime e permitir o livramento condicional.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) – Aqui é só o livramento condicional”
Há de se observar, também que, o próprio Ministério Público, titular da ação penal, manifestou-se sobre a não aplicação do prazo de dois terços da pena para fins de livramento condicional em caso de tráfico privilegiado, através de manifestação da Procuradoria-Geral da República, nos autos do HC supracitado:
“É certo que nos crimes de tráfico de drogas é necessário que o réu cumpra 2/5 da pena para obter a progressão de regime (art. 2, § 2, da lei 8.072/9) e 2/3 da pena para fins de livramento condicional (art. 44, parágrafo único, da lei 11.343/06, e art. 83, V, do Código Penal).
Contudo esses prazos maiores se aplicam apenas aos crimes previstos nos arts. 33, caput, e 34 a 37 da lei 11.343/06, sem abranger as condutas punidas pelo § 4º do art. 33, que têm menor grau de reprovabilidade e, portanto, não podem ser qualificadas pela hediondez. Donde, condenados os pacientes por tráfico privilegiado, deve ser aplicada a regra geral, ou seja, o resgate de 1/6 e 1/3 da pena, para a progressão de regime e livramento condicional, a teor dos artigos 112 da Lei de Execução Penal e art. 83, inciso I, do Código Penal, respectivamente (...)”.
Em conclusão, é equivocado o entendimento de que o afastamento do caráter hediondo do tráfico privilegiado não afastou, de igual forma, a necessidade de cumprimento de dois terços da pena para o livramento condicional.
Esse equívoco decorre da singela ausência de leitura do acórdão do leading case julgado pela Corte Suprema.
Com o afastamento do caráter hediondo do tráfico privilegiado, estabeleceu o Supremo Tribunal Federal que o livramento condicional dar-se-á mediante o cumprimento de um terço da pena.
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*Wagner Lucas Rodrigues de Macedo é advogado.