Quase 15 anos após a publicação da Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal do Brasil (IN SRF) 243/02, a Câmara Superior de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda (CSRF) concluiu, em 2016, que o mencionado diploma não extrapolou as disposições da Lei 9.430/96, no que tange à apuração do preço parâmetro – limite de dedutibilidade – segundo o método do Preço de Revenda menos Lucro de 60% (PRL 60), aplicável a importações realizadas de pessoas vinculadas situadas no exterior.
Em que pese tal interpretação tenha chocado grande parte da comunidade jurídica, fato é que, desde então, a CSRF tem mantido, reiteradamente, inúmeros lançamentos de ofício relativos ao Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) decorrentes, essencialmente, das divergências entre os preços parâmetro calculados de acordo com (I) a Lei 9.430/96 e (II) a IN SRF 243/02, conforme demonstram as ementas a seguir colacionadas:
"IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA JURÍDICA – IRPJ
Ano-calendário: 2003
PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA. MÉTODO PRL 60. AJUSTE. IN/SRF 243/2002. ILEGALIDADE. INEXISTÊNCIA. Descabe a arguição de ilegalidade da IN SRF nº 243/2002, cuja metodologia busca proporcionalizar o preço parâmetro ao bem importado aplicado na produção. Assim, a margem de lucro não é calculada sobre a diferença entre o preço líquido de venda do produto final e o valor agregado no País, mas sobre a participação do insumo importado no preço de venda do produto final, o que viabiliza a apuração do preço parâmetro do bem importado com maior exatidão, em consonância ao objetivo do método PRL 60 e à finalidade do controle de preços de transferência." (Câmara Superior de Recursos Fiscais – Acórdão nº 9101-002.319 – Relator: Marcos Aurélio Pereira Valadão)
"IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA JURÍDICA – IRPJ
Ano-calendário: 2003
PREÇO DE TRANSFERÊNCIA. MÉTODO PRL 60. IN SRF Nº 243/2002. LEGALIDADE.
A IN SRF nº 243/2002 não viola o princípio da legalidade tributária, estando em consonância com o que preconiza o art. 18 da Lei nº 9.430/96, na redação dada pela Lei nº 9.959/00. [...]" (Câmara Superior de Recursos Fiscais – Acórdão nº 9101-002.416 – Relatora: Adriana Gomes Rêgo)
"IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA JURÍDICA – IRPJ
Ano-calendário: 2003
IN/SRF 243/2002. ILEGALIDADE. INEXISTÊNCIA.
Não há que se falar em ilegalidade da IN SRF nº 243/2002, cujo modelo matemático é uma evolução das instruções normativas anteriores. A metodologia leva em conta a participação do valor agregado no custo total do produto vendido. Adotando-se a proporção do bem importado no custo total, e aplicando-se a margem de lucro presumida pela legislação para a definição do preço de revenda, encontra-se um valor do preço parâmetro compatível com a finalidade do método PRL 60 e dos preços de transferência." (Câmara Superior de Recursos Fiscais – Acórdão nº 9101-002.444 – Relator: André Mendes Moura)
A matéria em questão foi altamente controvertida no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e já foi analisada sob os mais diversos prismas – dos mais esdrúxulos (como a pretensa feiura da fórmula para o cálculo do preço parâmetro) aos mais profundos (que combinam aspectos jurídicos, gramaticais, matemáticos e teleológicos) – até que foi, finalmente, submetida à apreciação pela CSRF para uniformização da jurisprudência administrativa sobre o tema.
Sem prejuízo dos vastos argumentos que convergem no sentido de refletir a ilegalidade da IN SRF 243/02 no que diz respeito ao PRL 60, cabe refletir se, diante do posicionamento adotado pela CSRF, é justificável ou não a manutenção da multa de ofício de que trata o artigo 44 da Lei 9.430/96 nos casos que versam sobre esse tema.
Isso porque, após muito ponderar sobre a questão da legalidade da IN SRF 243/02, a instância especial do CARF reconheceu expressamente que a técnica legislativa utilizada pela Lei 9.430/96, após a modificação promovida pela Lei 9.959/00, não foi adequada, conforme se extrai do voto proferido pela conselheira Adriana Gomes Rêgo no Acórdão CSRF 9101-002.416:
"É reconhecido que o ato legal padeceu da boa técnica legislativa, tanto que, na Exposição de Motivos da MP 478/09, trazida pela recorrente em seu recurso, porém interpretada por ela, equivocadamente, como um reconhecimento da ilegalidade da IN, o então Advogado-Geral da União, justifica as alterações trazida (SIC) pela medida provisória como sendo com o intuito de reduzir a litigiosidade que a lei, e não a IN, causava. Assim, a tentativa de colocar em lei o texto da IN não é um reconhecimento de ilegalidade na IN, mas sim uma forma de deixar a interpretação da lei menos susceptível a discussões judiciais ou mesmo no contencioso administrativo."
No mesmo acórdão, há, ainda, o reconhecimento expresso de que, diante da inadequação do dispositivo legal, havia diversas possíveis interpretações para o artigo 18 da Lei 9.430/96, na redação dada pela Lei 9.959/00, como demonstra o excerto a seguir transcrito:
"Assim, a leitura que a contribuinte faz do que dispõe o art. 18, da Lei 9.430, de 1996, nada mais é do que a sua interpretação dada ao comando, que representa uma dentre outras tantas possíveis, restando saber se essa sua interpretação traduz, efetivamente, o que desejou a Lei: que o preço parâmetro, obtido a partir de estabelecimento de métodos matemáticos, seja (SIC) aquele igual ao custo incorrido sem artificialismo, não majorado por renda indevidamente transferida ao exterior, conforme se pode depreender da própria exposição de motivos da Lei [...]."
O acórdão em análise deixa bastante claro que, no entendimento da CSRF, o artigo 18 da Lei 9.430/96 comporta diversas interpretações e, por conseguinte, diversas fórmulas de cálculo para definição do preço parâmetro segundo o método PRL 60. Dentre tais possíveis interpretações, a CSRF entendeu que aquela prevista pela IN SRF 243/02 é a que mais se amolda ao espírito das normas brasileiras de preços de transferência e, desta forma, concluiu que a mencionada IN SRF não é ilegal.
A questão que se coloca, diante deste cenário, é a seguinte: pode haver manutenção da multa de ofício a um contribuinte que, de boa-fé, aplicou a Lei 9.430/96 com base em uma interpretação reconhecidamente possível caso o CARF ou a CSRF entenda que essa interpretação, apesar de reconhecidamente possível, não era a que mais se adequava ao espírito das normas de preço de transferência? Parece-nos que a resposta a essa pergunta é rigorosamente negativa.
Ora, partindo da premissa adotada pela CSRF, no sentido de que a sistemática de apuração do preço parâmetro adotada pela IN SRF 243/02 é apenas uma das possíveis interpretações do artigo 18 da Lei 9.430/96, é forçoso concluir que a adoção de outra interpretação – reconhecidamente possível – por um determinado sujeito passivo não configura conduta dolosa e, portanto, implica em ato ilícito que justifique a imposição de multa de ofício, consoante o rigor técnico do termo utilizado no artigo 9º, caput, do decreto 70.235/72.
Com efeito, as multas de ofício possuem caráter punitivo. Sob essa perspectiva, não se pode admitir a aplicação de multas punitivas aos sujeitos passivos que, legitimamente, se utilizaram de uma das interpretações possíveis da Lei 9.430/96 para embasar a apuração do IRPJ e da CSLL. É princípio nemo potest venire contra factum proprium: se a técnica legislativa empreendida pelo legislador comporta, reconhecidamente, diversas interpretações, o vício na redação do dispositivo não pode, por outro lado, dar ensejo à aplicação de penalidade ao sujeito passivo que seguiu uma das interpretações possíveis e, desta forma, não cometeu ilícito (em sentido estrito).
A propósito, o próprio Código Tributário Nacional (CTN), em seu artigo 100, parágrafo único, garante a exclusão de penalidades e de encargos legais aos sujeitos passivos que agem guiados por normas complementares das leis, dos tratados, das convenções internacionais e dos decretos.
Nesse espectro, cumpre ponderar que, de fato, numa primeira análise, poderia causar estranheza a invocação do artigo 100, parágrafo único, do CTN – que trata da observância de normas complementares –, para justificar o afastamento de penalidades, na medida em que, no caso do PRL 60, o que ocorre é justamente o inverso: em geral, há observância da lei, ao revés da norma complementar.
No entanto, é preciso ponderar que o CTN sequer precisaria abranger as leis, os tratados e as convenções internacionais no bojo do parágrafo único do artigo 100. E isso porque é demasiadamente óbvio que, sob o prisma da legalidade tributária, a observância destes diplomas jamais poderia ser considerada pelo Fisco como ilícito e, deste modo, não caberia a aplicação de penalidades aos contribuintes que aplicaram tais dispositivos.
Em razão disso, segundo entendemos, o artigo 100, parágrafo único, do CTN é plenamente aplicável aos casos de PRL 60, por se tratar, claramente, de um vetor interpretativo das normas tributárias, em consonância com os princípios da boa-fé, da segurança jurídica, da razoabilidade e da proporcionalidade, que balizam a constitucionalidade da tributação e da atividade de lançamento.
Destarte, aos sujeitos passivos que ainda aguardam o julgamento de seus casos na via administrativa cabe pleitear o afastamento da multa de ofício e dos encargos legais, a fim de que o CARF e a CSRF possam enfrentar a questão da aplicabilidade do artigo 100, parágrafo único, do CTN, nos casos que versam sobre o PRL 60. Nesse particular, especificamente quanto à CSRF, por ser meramente subsidiário à questão da legalidade da IN SRF 243/02, o enfrentamento de tal argumento sequer dependeria da comprovação de divergência interpretativa, em nosso entendimento.
De todo modo, mesmo que a CSRF não tenha enfrentado a questão sob esse prisma – e, portanto, não seja possível, neste momento, saber se o colegiado de fato enfrentará o tema como argumento subsidiário à legalidade da IN SRF 243/02 ou como questão autônoma relativa ao artigo 100, parágrafo único, do CTN –, existem, em nossa opinião, bons argumentos para sustentar, tanto na via administrativa como na judicial, a inaplicabilidade de multa de ofício aos lançamentos decorrentes da discussão "Lei 9.430/96 versus IN SRF 243/02".
____________________
*Marcelo Rocha dos Santos é advogado do escritório Demarest Advogados, em SP.