O Supremo Tribunal Federal progrediu*
José Arthur Di Spirito Kalil**
“Art. 2º. Os crimes hediondos, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:
(...) §1º. A pena prevista por crime neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado”.
O parágrafo primeiro citado acima não permitia que os condenados pelos crimes hediondos e pelos crimes a estes assemelhados executassem a pena de forma progressiva, isto é, iniciando o seu cumprimento em regime fechado e, com o tempo, desde que apresentem bom comportamento, passassem a regimes de cumprimento menos severos – o semi-aberto e o aberto.
Em que pese o descompasso da Lei dos Crimes Hediondos com o sistema progressivo de cumprimento das penas estabelecido pela Constituição da República e pelo Código Penal, o Judiciário, ressalvadas honrosas exceções, até então, vinha aplicando à risca o transcrito dispositivo de lei, justificando-se sistematicamente no fato de o Supremo Tribunal Federal considerar constitucional a vedação à progressão.
Finalmente, depois de passados mais de quinze anos desde a vigência da Lei dos Crimes Hediondos, o STF modificou o seu posicionamento e reconheceu, em apertada votação, o descabimento de se negar ao condenado a progressão de regime pela simples existência de disposição de lei infraconstitucional nesse sentido. Ressaltaram os Ministros que assim votaram que a decisão não abre as portas para a impunidade, e tampouco diminui as severas penas impostas pela Lei 8.072/90. Como frisaram, apenas os condenados que apresentarem mérito favorável terão direito à progressão.
É com satisfação que a sociedade deve receber a boa nova. A Constituição da República foi preservada, e o STF revelou neste julgamento ser realmente o seu guardião. É mais do que sabido que casos pontuais justificaram a edição da Lei dos Crimes Hediondos e de suas modificações para abranger outros crimes, e conhecida também é a pura retórica de suas disposições para tentar combater a criminalidade. Afinal, a publicação de duras leis penais causa, sem muito esforço do Poder Público, a impressão na sociedade de que se vai conquistar segurança pública através da futura aplicação de penas extremamente severas. Sabe-se que não é esse o caminho para combater o aumento crescente da criminalidade violenta.
Os direitos humanos ganham em muito com a progressão de regime. O preso é tratado com mais dignidade, porque a sua escolha de ter um bom comportamento carcerário surte efeitos. Ademais, o condenado é visto como alguém que merece a chance de demonstrar que está cada vez mais apto a retornar à comunidade.
Pondere-se, por oportuno, que o condenado por qualquer crime que seja, um dia, irá retornar ao convívio social, porque a prisão perpétua é abolida em nosso ordenamento; é bom que ele seja testado antes de alcançar à liberdade plena e isso se faz em regimes menos severos de cumprimento que o regime fechado.
Essa decisão propicia uma reforma verdadeira no Judiciário quanto ao benefício da progressão de regime. Como já disse o iluminado Ministro Marco Aurélio Mello, Relator do Habeas Corpus cujo julgamento propiciou a mudança de entendimento ora focada, o Judiciário não se modifica substancialmente com mudanças promovidas na legislação, mas sim com a coragem de alguns de seus membros de decidir em conformidade com a justiça e com os ideários presentes na Constituição da República.
Parabéns ao STF! Mais dignas de encômios são as decisões de diversos juízes que se anteciparam ao Supremo e já vinham entendendo inconstitucional a vedação à progressão de regime. Que a Constituição da República seja sempre lembrada pelos juízes e Tribunais!
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*Artigo publicado no jornal O Tempo – edição de 4 de abril de 2006
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**Advogado, Professor de Direito Penal, Mestre em Ciências Penais pela UFMG e membro do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais
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