I. A justificação racional para a tomada de decisões
Uma auspiciosa forma de ver as lacunas encontra-se na teoria propugnada tanto por Frederick Schauer1, como por Joseph Raz2, que, conquanto partam de diversos pressupostos teóricos, enxergam na ação humana a justificação racional para a tomada de decisões baseadas em regras/razões. Analisemos as teorias mencionadas a fim de verificar se e em que medida, a partir das regras e razões para ação, auxiliam na solução das lacunas, axiológicas e normativas.
a) Frederick Schauer
Ao decompor a regra em estrutura características e partes integrantes (figurando como componentes da regra: predicado fático hipotético e consequente = operador deôntico desnudo, isto é, estabelecimento de obrigação, permissão ou proibição) e empreender distinção entre ordem e regra (a ordem é particular e a regra depende de uma totalidade), Schauer reconhece que as regras trabalham com generalizações, de modo que, conquanto existam núcleos de significados claros, isso não se verifica em todos os casos e tampouco pode ser considerado nas hipóteses de termos linguísticos técnicos.
Impõe-se observar, todavia, a justificativa da regra e não apenas a sua aplicação literal3. Como consequência desta visualização da aplicação das regras que, por um lado generalizam, por outro entrincheiram situações revelando âmbito de aplicação que não pode ser alterado, o autor salienta que necessariamente há de se considerar a justificação subjacente das regras como forma de preencher o seu caráter subótimo, permitindo, como consequência, a estabilidade, isto é, a perpetuação do sistema. Para tanto, lança mão do conceito de subinclusão e superinclusão: naquela hipótese, há algo que a regra não prevê, mas pode ser aplicado no seu contexto, a exemplo da regra que prevê a impossibilidade de cachorros entrarem em restaurantes, o que não se aplica aos cães-guia, de cegos, porque se presumem que estes sejam treinados e comportados; nesta, ocorre o contrário, como, verbi gratia, observando-se que a regra que não permite cachorros em restaurante nada disciplina acerca de crianças absolutamente malcomportadas4.
A tese do autor, portanto, é a de que as regras figuram como ponto de partida. Diante de uma ausência de certeza semântica, deve-se indagar qual a justificação subjacente da regra, o que decorre da correlação entre a formulação semântica da regra e a divergência extensional. Se ainda persistir dúvida, deve-se perquirir a justificação de segunda ordem5.
Assim, o sujeito considera o elemento decisor da regra, mas o adapta às situações particulares. Existem, dessa forma, núcleos de significados claros das regras, embora isso não se verifique em todos os casos e tampouco possa ser considerado nas hipóteses de termos linguísticos técnicos. Impõe-se observar, na sua concepção, a justificativa da regra e não apenas a sua aplicação literal, de modo que a regra pode até prever uma exceção, mas terá que ser considerada ainda que se opte pela exceção.
À questão de valores, ponto nodal tanto no que concerne à teoria da interpretação, como da teoria da norma jurídica, Schauer propõe o positivismo presumido (ou presuntivo, conforme a tradução do termo original), de acordo com o qual as regras jurídicas se aplicam, mas a sua força não é absoluta e, diante de razões políticas, econômicas e morais, podem ser superadas. Note-se que esta superação é trabalhada indistintamente à existência de derrotabilidade ou lacunas. Necessário tão somente que exista uma regra e, se for o caso, razões externas que justifiquem a sua superação, o que abre o flanco teórico para, de um lado, legitimar a existência de lacunas e sua superação tão somente como parte de um quebra-cabeças normativo contextualizado pelo intérprete; e, por outro, admitir que fatores externos possam consubstanciar relevantes razões a afastar regramentos postos – ou delimitá-los – no cerne do sistema.
Schauer observa que todos os procedimentos decisórios são passíveis de erros. O resultado da regra pode ser distinto do resultado oriundo da sua justificação subjacente, mas, uma vez alcançada a interpretação da regra em si, ter-se-á o que denomina "virtude silenciosa das regras": simplificação das vidas das pessoas, que, não precisando se preocupar com aspectos já definidos pelas regras, podem dedicar seu tempo a outras coisas.
Conquanto Schauer ofereça procedimento de tomada de decisões que congloba a razão prática à teoria das normas, não parece, ainda assim, que os conceitos de super e subinclusão racionalizem a questão que ainda se revela pendente, qual seja, a metodologia para colmatação de lacunas, axiológicas e normativas. Para lidar com lacunas, sugere, pode-se utilizar o enfoque interpretativo ou legislativo. No primeiro, o intérprete pode considerar todos os enfoques relevantes, já que o sistema não oferece soluções (o intérprete tem mais liberdade); no segundo, deve-se procurar a solução que melhor desenvolva o sistema em si.
Em ambos os casos, ressalto, não se percebe interface, a partir de significados linguísticos, das razões políticas, econômicas e morais às regras, garantindo ora a sua superação, ora sua reafirmação. Uma possível conexão neste vazio – lacunoso – do pensamento de Schauer seria o método axiomático identificado por Ferrajoli para racionalização da linguagem jurídica. Segundo Ferrajoli, o método axiomático pretende alcançar justamente a univocidade e a precisão da linguagem teórica, cujo rigor semântico, conforme reconhece expressamente.
Por outro lado, aproveitando os comentários de Mauro Palma – no sentido de que sistemas formalizados são coerentes, mas incompletos–, Ferrajoli destaca que tal característica faz com que a teoria axiomatizada do direito esteja sempre aberta para desenvolvimentos posteriores, através da modificação, substituição e aperfeiçoamento de seus postulados e definições6. Ferrajoli, todavia, não considera acertada a conexão entre direito e moral, o que deixa pendente justamente a questão da interface proposta, mas não resolvida, por Schauer.
b) Joseph Raz
Em sua obra "Razão prática e normas", Joseph Raz apresenta modelo de discurso prático baseado principalmente em razões, compreendidas como operativas, auxiliares, excludentes e conclusivas que determinam, a partir de uma perspectiva prática, a observância da norma e a ação desempenhada pelo seu destinatário. Nesse momento, não serão apresentadas todas as características do modelo proposto, mas somente aquelas que permitam contrastar a sua compreensão com a proposta teórica do presente trabalho; vale dizer, os aspectos das normas permissivas e autorizantes e a compreensão dos sistemas normativos, com especial atenção para os órgãos primários e a sua função na solução de conflitos.
No capítulo terceiro da obra supramencionada, Raz salienta que o termo permissões comporta diversas acepções, mas o que as caracteriza é o fato de que não há razões pró ou contra a realização de determinado ato, ou que tais razões se contrabalançam perfeitamente. O que define a ação é a própria vontade da pessoa. Há, pois, autonomia jurídica e moral para realizar uma ação ou dela se abster. Estas são, na forma como alguns filósofos caracterizam, permissões fracas.
As permissões fortes, de outro turno, revelam-se quando "(...) se diz que uma ação é fortemente permitida apenas se o fato de ser permitida decorrer de uma norma"7. A importância da distinção passa pela verificação de lacunas na lei, mas, para o autor, tal distinção não tem sentido, sendo precipitado especular sobre as motivações filosóficas das pessoas. Nessa linha, sugere que a permissão pode ser considerada sob a feição excludente, isto é, como sendo baseada em normas que conferem poder, o que as difere de todas as permissões fracas e, ao mesmo tempo, as atrela às razões excludentes. Pondera que a permissão baseada em razões excludentes pode ser considerada uma permissão forte, uma vez que é considerada baseada em razões e não apenas na ausência delas.
A permissão excludente, contudo, difere em parte das razões excludentes, pois não preveem que as razões excluídas devam ser desconsideradas, dando apenas a alguém o direito de fazê-lo. Raz destaca que as normas permissivas apresentam a mesma estrutura das normas impositivas, de conteúdo, afirmando que determinados sujeitos da norma possuem uma permissão excludente para realizar o ato por ela previsto quando as condições de aplicação se mantém.
Diferenciam-se das normas impositivas apenas quanto ao operador deôntico, já que o operador da permissão excludente substitui o do 'dever' excludente juntamente com um ‘dever’ de primeira ordem que aparece no conteúdo de normas impositivas. Ostentam, contudo, uma terceira dimensão, consistente em transformar em permitido um ato que não o era até então. Tanto as permissões fracas quanto as excludentes podem ser concedidas. Pode-se conceder uma permissão fraca quando é possível alterar as razões contrárias a uma ação, de forma que a omissão desta ação não seja mais exigida.
O conceito de permissão para Raz somente faz sentido se contextualizado com a sua visão de sistemas normativos. No que toca ao sistema de normas interdependentes, entende Raz que Searle deixou de traçar distinção viável entre regras impositivas e autorizantes. Observa que Searle explorou a noção de regras que regulam modos de conduta criados por elas mesmas, descurando-se de que uma norma pode exigir que uma pessoa use de determinado modo um poder concedido a ela por outra norma, além de poder permitir ou proibir o exercício de tal poder em certas circunstâncias.
Pontua, ainda, que estar em conformidade ou violar uma norma impositiva pode estar entre as condições de aplicação de outras normas. Alude que termos como "doação", “venda", "testamento", "contrato", "propriedade", "hipoteca" e “truste” aparecem na descrição de várias normas, algumas concedendo poderes para a aquisição de uma propriedade; outras conferindo poderes aos proprietários; outras, ainda, exigindo certas condutas dos proprietários ou lhes concedendo permissões excludentes; outras exigindo determinadas condutas das pessoas com relação aos proprietários e assim por diante.
Conclui, pois, que se pode definir os sistemas de normas interdependentes como qualquer conjunto de normas que sejam internamente relacionadas8. A proposta, dessa forma, é que a imprecisão linguística seja encontrada a partir da interdependência entre normas figurantes no mesmo sistema. A partir deste ponto, define sistemas normativos de validade compartilhada como sendo aqueles constituídos por normas que apenas são válidas para alguém que segue todas as normas ou certo grupo específico delas.
Neste ponto, as concepções de Schauer, ao visualizar uma razão subjacente à regra; e de Raz, ao inserir as razões em um sistema que as justifique e libere o Poder Judiciário a tomar a decisão final enquanto instituição primária, viabilizam o reconhecimento de uma sistemática interessante para solucionar questões tidas como lacunosas.
Vejamos com um pouco mais de detalhamento, a proposta de Raz.
II. Sistemas institucionalizados: observações introdutórias – Uma análise perfunctória
Já em momento inaugural da obra em foco, Raz limita o objeto e estudo às instituições cuja função é a de criar e aplicar normas. Assinala que as características dos sistemas jurídicos não lhes são exclusivas, podendo também ser encontradas em sistemas de origem comum e discricionariedade absoluta, adiante tratados.
Observa o autor que o critério para definir se um sistema é jurídico é a lei de uma comunidade; "deve, portanto, incluir a condição de ele ser geralmente obedecido e ainda outras condições que afrouxem a exigência de que todas as normas do sistema sejam de fato praticadas"9. A este respeito, relembra concepção de Hart ao sugerir que a condição adicional seja a de que ao menos os funcionários do sistema aceitem suas normas e conduzam seus comportamentos de acordo com elas.
Na sequência, passa a elencar os aspectos importantes dos sistemas institucionalizados. O primeiro é o de que possuam um critério que indique se são praticados ou vigoram, o que equivale ao fato de todas as normas serem praticadas e terem um peso considerável nas atividades dos funcionários e instituições. O segundo aspecto é que os sistemas institucionalizados – jurídicos ou conexos – "(...) possuam relação interna com as normas que estabelecem tanto as instituições que criam as normas como as que aplicam as normas"10.
Isso porque para todos os tipos de sistemas normativos, faz-se necessário um critério que determine quais normas pertencem ao sistema. O terceiro aspecto gira em torno de que a validade sistêmica das normas pertencentes aos sistemas seja condicionada ao fato de o sistema ser praticado: uma norma é válida quando aqueles a ela sujeitos devem endossá-la e segui-la; um sistema normativo é válido se suas normas o são. Ressalta, ademais, que a validade das normas inerente aos sistemas normativos deve se apoiar em razões completamente independentes do fato delas pertencerem a tais sistemas.
Considerando que são as instituições que aplicam as normas – e não as que criam – que fornecem a chave para a concepção de um sistema institucionalizado, passa a apresentar as características das mencionadas instituições. Raz procura definir os órgãos de aplicação pelas normas, em si, que estabelecem as instituições que lhes servem de base: "As instituições que aplicam as normas são, antes de mais nada, instituições normativas estabelecidas por normas, e é nessas normas que devemos buscar pistas para definir sua identidade"11.
São caracterizadas, portanto, pelo modo como cumprem suas funções e não pelas funções em si. Aplicando tal concepção ao sistema jurídico, é possível perceber que todo ato realizado por um agente público caracterizado como a execução de um dever ou o exercício de um poder deve ser considerado como ato que aplica leis. Porém, a execução, em si, da lei não é capaz de distinguir um sistema como jurídico, pois uma Corte pode decidir e a execução ficar adstrita às partes.
Diferenciam-se daqueles órgãos que tratam da execução física da norma. Importante destacar que a decisão oriunda de órgãos primários é, para Raz, vinculante ainda que esteja errada. Neste contexto, releva frisar que a questão sobre força vinculante só surge em relação às determinações criativas, vale dizer, aquelas que alteram a situação normativa. "Determinações criativas podem ser ou não vinculantes, mas não podem ser julgadas como corretas ou incorretas. O inverso é verdadeiro para as determinações de aplicação"12.
Assim, uma determinação não pode ser vinculante e aplicar as normas ao mesmo tempo. Esta circunstância é de fundamental importância no tema das lacunas, em que ou se está lidando com aspectos valorativos de determinada expressão, ou com vazios normativos que necessariamente demandam a decisão criativa tratada por Raz.
Evidentemente, as pessoas também avaliam o comportamento com base nas normas de outros tipos de sistemas normativos, mas apenas os sistemas institucionalizados fornecem aos órgãos primários a função de avaliar o comportamento de forma autoritativa com base nas normas do sistema.
A conclusão da compreensão do sistema institucionalizado e das razões excludentes é que "um sistema institucionalizado consiste em um conjunto de regras, sendo que algumas delas instituem órgãos primários e que todas devem ser obedecidas por esses órgãos para a exclusão de todas as outras razões conflitantes". As Cortes, portanto, devem julgar os indivíduos de forma a tomar as exigências jurídicas como razões excludentes.
III. Conclusão
As propostas apresentadas, conquanto possam apresentar alguns pontos de maior reflexão, representam interessantes plataformas para o debate da questão das lacunas.
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1 Em especial em: SCHAUER. Friedrich. Las reglas en juego. Las reglas en juego–un examen filosófico de la toma de decisiones basadas en reglas en el derecho y en la vida cotidiana. Traducción de Claudina Orunesu y Jorge L. Rodriguez. Madrid: Marcial Pons, 2004.
2 Em especial em: RAZ, Joseph. Razão prática e normas. Tradução de José Garcez Ghirardi. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
3 SCHAUER. Friedrich, op. cit., p. 88.
4 Idem, p. 88-89.
5 Ibidem, p. 91.
6 FERRAJOLI, L. Principia iuris, teoria del diritto e della democrazia. Vol. I. Traducción de Juan Carlos Bayón Mohino, Marina Gascón Abellán y Luis Prieto Sanchís. Madrid: Editorial Trotta, 2007. p. 92.
7 RAZ, Joseph, op. cit., p. 82.
8 "A conformidade com uma norma, por exemplo, pode ser definida em outra norma como a condição na qual um determinado funcionário público deve recompensar a pessoa que agiu conforme a primeira norma. Uma norma impositiva de punição pode impor deveres a qualquer pessoa que transgrida qualquer norma. Outra norma, ainda, pode conceder à polícia poder sobre as pessoas caso elas violem determinadas regras e assim por diante". RAZ, Joseph. Razão prática e normas. Tradução de José Garcez Ghirardi. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 108.
9 RAZ, Joseph. Razão prática e normas, op. cit., p. 122.
10 Idem, p. 123.
11 Ibidem, p. 129.
12 Ibidem, p. 132.
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*Tiago Gagliano Pinto Alberto é Juiz de Direito no Estado do Paraná. Professor de cursos de pós-graduação e graduação.