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Decisão judicial e argumentação dedutiva

A argumentação dedutiva ostenta problemas em sua aplicação que podem ser enfrentados desde questões afetas às premissas normativas e fática.

6/6/2017

I. O problema: motivação e racionalidade

Em 2012, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução 1.995/12 que disciplina o que se convencionou denominar "Testamento Vital", em que se permite a ortotanásia sob o argumento de que não se justifica prolongar um sofrimento desnecessário da qualidade de vida do ser humano1. Os problemas afetos à aplicação da controvertida2 norma3 decerto não tardariam a ocorrer e se fizeram candentes por oportunidade de pedido de alvará judicial para suprimento da vontade do idoso e ex-portador de hanseníase João Carlos Ferreira, residente no Hospital Colônia Itapuã (HCI), localizado em Viamão, Município vizinho a Porto Alegre.

O idoso fora diagnosticado com necrose no pé esquerdo desde 2011 e, em franco definhamento, recusava-se à amputação, cirurgia que poderia salvar a sua vida. De acordo com os médicos que o atendiam, acaso não se submetesse à amputação, poderia vir a falecer em decorrência de infecção generalizada. Conquanto não apresentasse sinais de demência, o senhor, de 79 anos, era acometido por quadro de depressão.

Tendo como base o laudo da psicóloga que o atendia, segundo o qual "o paciente está desistindo da própria vida, vendo a morte como alívio do sofrimento", o MP judicializou linha argumentativa no sentido de que o paciente estaria sem condições psíquicas de recusar o procedimento cirúrgico, de sorte que o direito à vida justificaria a contraposição ao desejo do paciente.

Em primeiro grau, a postulação não vingou. O juízo da Comarca de Viamão, negando a concessão do alvará, indeferiu o pedido de amputação, argumentando que o paciente é pessoa capaz, tendo livre escolha para agir e, provavelmente, consciência das eventuais consequências. Assim, ainda que pudesse vir a falecer, não caberia ao Estado imiscuir-se em sua vontade.

Em julgamento ao recurso interposto pelo Parquet, a Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul confirmou a decisão monocrática, entendendo, assim como o juízo de origem, que o Estado não pode proceder contra a vontade do paciente, como pediu o Ministério Público, mesmo que com o propósito de salvar sua vida.

Ademais da Resolução supramencionada, o relator da Apelação, Desembargador Irineu Mariani, afirmou que o direito de morrer com dignidade e sem a interferência da ciência tem previsão constitucional e infraconstitucional, sendo certo que o direito à vida, garantido pelo artigo 5º, caput da Constituição da República, deve ser combinado com o princípio da dignidade humana, previsto no artigo 2º, inciso III da mesma Carta de Direitos. Entretanto, em relação ao seu titular, o direito à vida não é absoluto, inexistindo obrigação constitucional de viver. Já sob o plano infraconstitucional, lembrou que o Código Penal não criminaliza a tentativa de suicídio; e, ainda, que, de acordo com o artigo 15 do Código Civil pátrio, "Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica"4. Ao final, portanto, entendeu que a vontade do idoso deve prevalecer, ainda que contra o seu próprio direito à vida.

O caso mencionado foi citado com o propósito de introduzir a discussão pertinente à racionalidade das decisões judiciais.

II. Dificuldades na elaboração da decisão

Nessa linha de compreensão, convém, desde logo e tendo o caso aludido como pano de fundo, investigar algumas dificuldades que se apresentam para a elaboração da decisão.

A primeira questão que se apresenta é a insuficiência do método dedutivo como forma de desate do nó górdio posto à cura do aparelho judicial. O silogismo, quer na forma de modus ponens, modus tollens, disjuntivo, conjuntivo ou quaisquer outras maneiras em que se apresente5, simples ou complexas, não parece adequado à resolução da complexidade de casos que a atual sociedade revela6.

Não se trata mais de classificar as testilhas em fáceis ou difíceis, mas de constatar que todas as situações controvertidas, existindo ou não normas que pretensamente regulem o contexto fático de fundo, revelam nuances que inviabilizam ou ao menos tornam dificultosa, a mera subsunção do fato à norma sem qualquer outra consideração. Efetivamente, com a mesma pretensa facilidade com que se percebe a incidência da norma ao fato, pode-se dela afastar, inclusive com argumentos situados no próprio regramento, ou para além dele, em vista de considerações de justiça, conveniência, manutenção do sistema judiciário, ordem pública e econômica, consequencialistas, entre outros que convierem à subjetividade do órgão investido na função judicante.

Se, de um lado, não se pode descurar totalmente do silogismo, tampouco se pode olvidar que inúmeros casos não são solucionados por essa técnica, a exemplo, numerus apertus, dos seguintes: a) os dilemas constitucionais, em que se verifica um conflito genuíno de direitos fundamentais17; b) as dificuldades de definições no contexto da Carta Constitucional8; c) as dificuldades de definições na legislação infraconstitucional; d) as decisões estruturantes; e) as decisões intermédias; f) as decisões aditivas9; g) as decisões que reconhecem a derrotabilidade.

Ao que se pode perceber, não se trata da deficiência da técnica dedutiva, deveras utilizada e recomendada sob o ponto de vista de boa parte das teorias modernas da argumentação jurídica, mas que a complexidade dos conflitos – e da sociedade – clamam e reclamam por decisão que não mais se atenha ao quadro esquemático formal há muito esquadrinhado por Aristóteles no contexto da lógica formal em termos não necessariamente jurídicos10.

Para citar um exemplo e escandindo um pouco o pensamento para além da análise interna das normas, até o modelo de processo que atualmente se objetiva no âmbito processual civil, o cooperativo, não recomenda mais a subsunção enquanto método de solução de casos. Com efeito, não há como se cogitar de um modelo em que imperam institutos como i) minimização da oitiva de Parte anteriormente à decisão judicial que venha em seu desfavor; ii) determinação probatória estática; iii) decisão que, conquanto aplicando diretamente a norma de direito material, exponha tese não suscitada por quaisquer das Partes ao transcurso do feito; para fins de solução de conflitos discutidos, ainda que oriundos da aplicação reta e direta da normatização já previstal11.

E, destaque-se, não se trata da conhecida distinção entre justificativa interna e externa, de sorte que, uma vez identificado, ou reconhecido o argumento de base, viabiliza-se, ato contínuo, fazer incidir a norma; tampouco da também consagrada classificação dos contextos da descoberta e da justificação. Ao contrário, trata-se do reconhecimento pelo próprio sistema, ao menos processual civil, da insuficiência da técnica dedutiva.

Essas dificuldades podem ser exploradas inclusive sob o ponto de vista da linguagem, como o fez o filósofo canadense Charles Taylor.

Partindo das premissas de que: i) o homem é, sobretudo, um animal de linguagem; e ii) a linguagem deve ser vista como algo confuso e enigmático; considera que a linguagem apresenta uma dimensão designativa e outra expressivista. Trabalhando com o exemplo "O livro está sobre a mesa", observa que aquela dimensão pode revelar uma relação direta entre o enunciado e o fato de que verdadeiramente exista um livro sobre a mesa; entretanto, supondo agora que um livro muito importante tenha sido perdido, este enunciado expressará mais do que uma simples correlação entre a palavra e o objeto, mas também um sentimento de alívio por parte do emissor, prestando-se não apenas à comunicação, mas a expressar pensamentos, percepções, crenças e sentimentos12.

A teoria HLC – assim denomina a teoria designativa, em referência aos seus três principais defensores: Hobbes, Locke e Condillac – apresenta uma simples conexão entre o signo e a coisa designada. A linguagem, neste quadrante, pretende-se neutra, objetiva (pois já ostenta um significado no mundo) e monológica, eis que o sujeito não necessita da participação de outros para compreender o que significa a expressão utilizada. Por outro lado, na teoria expressivista, ou triplo H (em referência aos seus criadores, Herder, Humbolt e Hamman), a linguagem não ostenta transparência em seu significado, revelando-se, bem ao revés, nebulosa, confusa e enigmática13.

Neste ponto reside a questão do poder. A linguagem, segundo Herder, lembrado por Taylor, apresenta o que denomina de capacidade reflexiva, de acordo com a qual as expressões reclamam mais do que o simples identificar de seus sinais e elementos descritivos. Taylor nos fornece o seguinte exemplo em "Language and human nature"14: a palavra "triângulo”, se procurada no dicionário, revelará um significado por meio do qual se poderá reconhecer as coisas com essa forma geométrica.

Entrementes, é possível treinar uma rata para que se dirija a uma porta com formato de triângulo e não para a porta em formato de círculo, de sorte que, da mesma maneira, a rata também reconheceria o triângulo. Existe, contudo, segundo o Autor, uma diferença entre as duas personagens: a rata somente reconhece o que lhe proporciona reação, ao passo que o usuário que opera em dimensão linguística opta por usar e responder aos signos em termos de verdade ou correção descritiva. Conclui, dessa forma, que a linguagem humana implica consciência reflexiva acerca da significação de uma palavra, consciência esta que se atualiza unicamente pela linguagem, que, por sua vez, passa a ostentar uma feição holista. Para Taylor, uma palavra só tem significado dentro de um contexto de uso da linguagem, que, em último grau, está incrustada no modo de vida da sociedade15.

A linguagem, para a teoria em foco, assume a forma de uma rede, pois: i) permite identificar seus signos somente através de outros signos, includentes e excludentes; ii) revela uma dimensão de valor, que lastreia a perpetração de atos de fala; iii) funciona como forma de expressão, amparada em sentimentos existentes no cerne da sociedade; iv) permite a propagação de pensamentos, sentimentos e expressões, por sua vez somente captados se e enquanto o indivíduo se encontrar em uma mesma comunidade linguística16; v) ostenta uma função criativa, em que se cria e recria por intermédio da fala, contextualização e discussão; vi) permite acessar sentimentos e emoções não acessíveis aos seres não linguísticos17.

Charles Taylor expõe, com arrimo nas teorias descritas, uma importante faceta da linguagem, em que se evidencia aspecto valorativo que não apenas a constitui, senão que também funciona como amálgama da dinâmica social, embasada em compreensões sociais fluidas e em constante movimento, permeadas por valores, crenças, sentimentos, pré e pós-compreensões e, ainda, contextualizações temporais e espaciais.

Como esperar que algo diverso ocorra com a norma? Acaso não seria a norma uma forma de objetivação da linguagem em determinado setor, com recorte temporal, espacial, subjetivo e objetivo específico e com foros de racionalidade18? Até que ponto, examinando a questão sob o ponto de vista expressivo, não se traduziria em sistemática que afastaria a metodologia dedutiva enquanto forma definitiva de solução de casos, ou ao menos criaria complicadores que dificultassem a compreensão do texto em si enquanto materialização estática de uma expressão linguística dinâmica? O ordenamento jurídico, enquanto instrumento de poder através da linguagem, ostentaria alguma forma de sistematização em casos-limite, quais os dilemas constitucionais, ou naqueles em que, identificadas lacunas, sequer houvesse norma a aplicar?

A comunidade linguística, antes de constituir qualquer valor ou referência, constrói e reconstrói a si mesma por intermédio da linguagem, criando ambientes de valoração de suas atividades, instituições e intersubjetividades.

III. Conclusão

A argumentação dedutiva ostenta problemas em sua aplicação que podem ser enfrentados desde questões afetas às premissas normativas e fática, como em relação à ligação existente entre estas e, como sugere Charles Taylor em seu âmago mesmo, correlacionadas com a movimentação linguística praticada na sociedade. A questão é, evidentemente ampla, de modo que apenas uma faceta foi explorada neste quadrante.
________________

1 O texto da Resolução CFM 1.995/12. Acesso em 16 de maio de 2017.

2 A seguinte bibliografia versa especificamente sobre o tema, descrevendo as divergências a respeito: MÖLLER, Leticia Ludwig. Direito à morte com dignidade e autonomia. Curitiba: Juruá. 2008. FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima. Direito de morrer. Belo Horizonte: Del Rey. 2005. p. 39. FARIAS, Gisela. Muerte voluntaria. Buenos Aires: Astrea. 2007. p. 35. GOLDIM, José Roberto. Eutanásia. Acesso em 16 de maio de 2017.

3 Utilizado o termo norma nesta oportunidade apenas a título descritivo do direito posto; as dificuldades inerentes à aplicação do vocábulo, em especial em conexão com os pressupostos normativos, serão abordadas mais adiante neste trabalho.

4 "APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TES- TAMENTO VITAL. 1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para "aliviar o sofrimento"; e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural. 3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal. 4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70054988266, Primeira Câmara Cível, TJ do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 20/11/2013) (TJ-RS–AC: 70054988266 RS, Relator: Irineu Mariani, Data de Julgamento: 20/11/2013, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 27/11/2013)." Acesso em 16 de maio de 2017.

5 COPI, Irving M. Introdução à lógica. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: editora Mestre Jou, 1968.

6 LIPOVESTSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004; para outros como modernidade: ROMERO, José Manuel. Teoría de la modernidade y experiência moderna del tempo de Habermas. In: REVISTA REALIDAD, n. 113, 2007, p. 435-460; ou modernidade líquida: BAUMAN, Zygmunt. Modernidad líquida. Traducción de Mirta Rosenberg, con colaboración de Jaime Arrambide Squirru. Buenos Aires: Fondo de Cultura de Argentina, 2000, revela dificuldades que outrora não se faziam ver, tais como as inerentes aos contratos, família, sujeitos de direito etc. Para estudo específico acerca da metodologia tópico-sistemática que atualmente pode ser considerada ao menos no cenário do direito civil para ao menos aplainar essas dificuldades, veja-se obra recentemente publicada de Luiz Edson Fachin. FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Rio de Janeiro: Renovar, 2015.

7 ZUCCA, Lorenzo. Los conflitos de derechos fundamentales como dilemas constitucionales. In: ZUCCA, Lorenzo. Dilemas Constitucionales. Un debate sobre sus aspectos jurídicos y morales. Madrid: Marcial Pons, 2011, p. 09-36.

8 HACK, Érico; ROVEDA, Luiz Carlos. O conceito de faturamento para fins de incidência do PIS e da Cofins e as alterações decorren- tes da MedProv 627/2013. In: REVISTA TRIBUTÁRIA E DE FINANÇAS PÚBLICAS. Vol. 120/ 2015, p. 195 – 2015. Jan – Fev/ 2015.

9 Os provimentos estruturantes, intermédios e aditivos serão adiante abordados, motivo pelo qual opta-se por não se desenvolver maiores digressões a respeito neste ponto do trabalho.

10 ARISTÓTELES. Organon – V Tópicos. Lisboa: Guimarães Editores, 1987.

11 Para ampla investigação acerca do processo em sua feição cooperativa: MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil–Pressupostos Sociais, Lógicos e Éticos. São Paulo: RT, 2009.

12 TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Edições Loyola, 2000. MÉNDEZ, Yolimar Mendoza. Lenguajes, valores y apertura al otro en Charles Taylor. In: REVISTA LAGUNA, 13; julio 2003, pp. 151-166.

13 MÉNDEZ, Yolimar Mendoza, op. cit., p, 154.

14 TAYLOR, Charles, op. cit., p. 228.

15 Idem, p. 228-229

16 MÉNDEZ, Yolimar Mendoza, op. cit., p, 160.

17 Idem, p. 160.

18 Lembre-se, inclusive, neste ponto, do "legislador racional". NINO, Carlos Santiago. Consideraciones sobre la Dogmática Jurídica. México: Instituto de Investigaciónes Jurídicas, 1989, p. 85-99.
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*Tiago Gagliano Pinto Alberto é professor de cursos de pós-graduação e graduação. Juiz de Direito no Estado do Paraná.


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