Migalhas de Peso

Colaboração premiada, leniência e acordos de cessação de práticas

A punibilidade, sobretudo a criminal, seja em termos de privação de liberdade ou imposição de multas ou deveres de reparar / indenizar, existe para garantir à sociedade tranquilidade em face daqueles que querem, pela prática de ilícitos, obter vantagens.

31/5/2017

Será que o brasileiro efetivamente quer Justiça? Se quer, ele entende o que é fazer Justiça num Estado de Direito?

De um ponto de vista laico, Justiça é fazer os culpados pagarem por seus ilícitos. Por uma ótica não laica, é fazer o culpado ir para o inferno, inferno tal qual concebido por crença.

A questão, contudo, é que a realidade demonstra que isso não é verdadeiro, porque uma coisa é a noção hipotética de fazer Justiça e outra é aquela que se tem quando se é envolvido de alguma forma, até mesmo por mera proximidade, numa prática ilícita, isto porque a proximidade tende a levar as pessoas a serem mais flexíveis quanto aos conceitos de Justiça e punibilidade e a se tornarem mais críticas quanto aos procedimentos de persecução. Em outras palavras, adota-se o dito popular: “pimenta nos olhos dos outros é refresco”.

Por que essa introdução? Porque com a maior visibilidade dos institutos da colaboração premiada, leniência e compromissos de cessação de práticas1 em função de sua utilização em atualíssimos casos e de grande repercussão social2, a opinião pública passou a revelar uma hostilidade aos institutos, tendo-os, a partir de um senso comum, como danosos ao interesse público3.

A razão é clara, a sociedade que raciocina, via de regra, pelo senso comum e que foi educada (ou não) com a ideia de que o ilícito deve ser punido sem exceções, está com dificuldades para entender que fazer Justiça às vezes implica em não fazê-la para certas pessoas em determinadas ocasiões e sob certas condicionantes4.

A punibilidade, sobretudo a criminal, seja em termos de privação de liberdade ou imposição de multas ou deveres de reparar / indenizar, existe para garantir à sociedade tranquilidade em face daqueles que querem, pela prática de ilícitos, obter vantagens.

Ocorre que o ilícito não é, sempre, um ato isolado. Ao contrário, e nos casos mais graves, ele tende a ser uma prática estruturada, reiterada, prolongada no tempo e envolvendo inúmeras pessoas, em diferentes níveis de atuação, participação e cadeias de relações. Assim, por exemplo, no furto de cargas há desde os chefões até aquele cuja única função foi a de ser vigia do local onde os bens furtados foram guardados.

Pelo senso geral todos são criminosos e, como tais, punidos da mesma forma. A lei, contudo, não adota esse senso comum e sim valoriza a individuação da pena e da punição5, ainda que respondendo vários réus a um mesmo processo6.

Para que isso seja possível, é necessário e crucial que todo o processo, que vai da investigação dos fatos, passando pela formalização do indiciamento, propositura da ação e sua realização, ocorra de modo criterioso, a fim de que os fatos sejam bem apurados, as imputações bem estabelecidas e as participações bem definidas, de maneira a ser viável a formação do elo ato/atores/responsabilidades, o que representa uma defesa para a sociedade e os imputados. Este é o conceito de devido processo legal, ou seja, o distanciamento da ansiedade, da subjetividade absoluta e de que os apontados como responsáveis devam ser condenados a qualquer custo, de preferência de modo rápido7.

Isto posto, e fora do senso comum, desenvolveram-se ideias e conceitos de que se fará melhor Justiça se, no curso de sua realização, a ilicitude possa ser eliminada em sua máxima extensão possível, ou seja, de modo a extirpar o mal pela raiz. Nesse caso, e até mesmo diante da existência dos princípios legais que definem que a punição deve ser na extensão da culpabilidade, foram sendo erigidos entendimentos que, por vezes, será conseguida melhor Justiça se, para que se atinja a raiz do mal, conte-se com a colaboração útil de alguns dos que cometem o ilícito e que, em razão desse grau de colaboração, tais pessoas devam merecer alguns benefícios, até mesmo imunidade plena, ou seja, não receberem qualquer tipo de punição8 9.

Clique aqui para ler o artigo na íntegra.

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1 Colaboração premiada, lei 12850/2013; Leniência, lei 12846/13; e Compromissos de Cessação de Práticas, vide lei 12.529, art. 85 e leis 8005/1990 combinada com as leis 9605/1998, 9784/1999 e 9873/1999 e com o Decreto 6514/2008.

2 Casos Samarco, Lava Jato (JBS e Odebrecht).

3 É digno de nota que um instrumento de colaboração seja tratado, publicamente, por uma expressão diferente, delação, com nítido caráter negativo. Cabe aqui à sociedade atentar para o equívoco e usar a expressão correta e pertinente. Aliás, a própria imprensa poderia ajudar nisso ao usar a denominação correta, da mesma forma que ninguém chama o Coelhinho da Páscoa de Papai Noel, ainda que ambos sejam fantasias.

4 A legislação criminal brasileira é clara ao indicar que ações positivas de pessoas responsabilizáveis criminalmente são motivos para reduzir ou limitar o alcance da punição, dentre elas a desistência voluntária, o arrependimento eficaz (CPenal, art 15) e o arrependimento posterior (CPenal, art. 16).

5 Constituição Federal, art. 5º: XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido; XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos;

6 Veja-se o caso do escândalo mundial no futebol, onde o réu brasileiro, José Maria Marin, pleiteia, por seus defensores, junto à Justiça norte-americana, seja julgado de modo isolado dos demais réus, isto porque, pelo entendimento da defesa, há coisas imputadas aos outros réus que não seriam aplicáveis a ele e que, se for julgado em conjunto, será atingido indevidamente, o que seria evitável pela divisão dos processos por réus. Neste momento a autoridade judicial negou o pedido, porém a matéria ainda comporta recursos. Disponível em: clique aqui

Outro exemplo, agora num sentido oposto, o processo no caso da invasão do presídio do Carandiru, São Paulo, SP, Brasil, no qual policiais militares que foram inicialmente condenados em 1ª instância de forma igual – tribunal do júri -, em grau de recurso perante o Tribunal de Justiça de São Paulo, tiveram suas condenações anuladas por ter sido entendido que a condenação “por atacado” não seria cabível, uma vez não individualizada a responsabilidade de cada um dos agentes. O processo continua sem solução pois ainda cabem recursos, em que pese terem os fatos ocorridos em 1992, isto é, 25 anos atrás: Disponível em: clique aqui.

7 Essa noção comum, que não deve ser condenada, mas iluminada, esclarecida, não é capaz de perceber que a pressa condenatória impede o melhor conhecimento e análise dos fatos, de modo a permitir um juízo valorativo mais neutro; que o volume de informações divulgadas não é, necessariamente, verdadeiro ou é enviesado; mas sem deixar de reconhecer que há certa dose na reclamação por uma eficácia judicial mais pronta e rápida (rápido ? de imediato).

8 No proverbial: “Vão-se os anéis, ficam os dedos.” e em inglês: “Better lose the saddle than the horse.”.

9 Não há nada na lei que impeça a quem quer que seja confessar alguma prática legal ou ilegal. A ideia de que ninguém é culpado até que prove a sua inocência não implica seja vedada a confissão, tanto que ela é sempre uma atenuante de pena pelo Código Penal (vide nr.4).

A colaboração, na qual se inclui a possibilidade de delação (divulgação de algo ignorado ou secreto; mostra, revelação) é ato unilateral de uma pessoa e que diz respeito a fatos sobre os quais é responsabilizável. Ninguém a obriga a delatar, com o que a decisão pessoal sobre delatar é algo que está no foro íntimo da pessoa, que, na prática, está a exercer um direito essencial seu, que é o de proteger a sua liberdade, o que no caso significa buscar punição menor.

O direito constitucional ao silêncio é voltado ao indivíduo e, portanto, a decisão sobre abdicar dele é ato unilateral e pessoal desse indivíduo, não cabendo intervenções de terceiros, salvo situações que revelem sejam o indivíduo incapaz na forma da Lei. Nessa linha, terceiros não têm direito a exigir o silêncio, seja porque isso é atentatório ao direito de livre manifestação (CFederal, art. 5º, IV).

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*José André Beretta Filho é advogado.


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