A alienação fiduciária em garantia representa espécie contratual em que uma parte, o devedor fiduciante, transfere ao credor a propriedade de um bem como forma de garantir o pagamento de uma dívida.
Esse contrato foi introduzido no Brasil pelo art. 66 da lei 4.728/65, e sua criação apresentou evidente função econômica, com especial objetivo de estimular o financiamento de bens (em particular veículos). Logo, de um ponto de vista econômico, a criação de um mecanismo de maior garantia ao credor buscou gerar uma série de efeitos positivos, visto que, com maior segurança na concessão do crédito, os bancos aceitariam oferecer linhas de crédito com taxas mais acessíveis, facilitando a aquisição de bens pelos consumidores, levando por consequência a uma maior demanda dos bens, estimulando e desenvolvendo a respectiva atividade industrial etc. Ou seja, tratou-se de mecanismo jurídico destinado a impactar na economia, através de um barateamento do crédito e como forma de estimulo à atividade econômica.
Tal mecanismo foi bem aceito no mercado, a ponto de que, originalmente concebido para bens móveis, foi aproveitado em outros setores, tal como a alienação fiduciária em garantia para bens imóveis (vide a lei 9.514/97) ou a cessão fiduciária de direitos creditórios (vide a redação do art. 66-B da lei 4.278/65, incluído pela lei 10.931/04).
Apesar de o contrato destinado a bens móveis ainda hoje ser vastamente utilizado, suas características e procedimentos sofreram consideráveis modificações ao longo dos anos. Nesse sentido, o texto original do art. 66 da lei 4.728/65 viria a sofrer grandes mudanças pelo decreto-lei 911/69. Esse decreto-lei, por sua vez, sofreu considerável mudança pela lei 10.931/04, e novamente pela lei 13.043/14.
Ainda, é de se destacar que cada grande mudança legislativa passou, posteriormente, por diversas discussões judiciais. E todas essas mudanças, tanto legislativas quanto na interpretação dos tribunais, impactam na economia, na disposição dos bancos em conceder crédito e na situação dos consumidores tomadores de crédito.
Para o objetivo deste texto, cabe destacar que, na sistemática legal vigente até o ano de 2004, constante do decreto-lei 911/69, previa-se que, diante da inadimplência do devedor, o credor poderia ajuizar busca e apreensão para retomada do bem, que seria então vendido para satisfação do crédito. No entanto, nessa época, em ocorrendo a busca e apreensão, era direito assegurado ao devedor de purgar a mora caso já tivesse pago 40% do preço financiado.
Lembre-se ainda que existia previsão da possibilidade de, não se localizando o bem, obter a conversão da busca e apreensão em ação de depósito, em hipótese que poderia levar à prisão civil do devedor (inclusive, nesse sentido, decisões do STF até início dos anos 2000 ainda admitiam a legalidade da prisão civil do devedor nestas circunstâncias).
Em 2004 o contrato passou por grande mudança, imposta pela lei 10.931, com evidente intuito de aumentar o rigor da garantia, na expectativa de promover maior segurança jurídica e aumentar a disponibilidade de crédito.
Nesse contexto, dentre as mudanças procedimentais promovidas, destaque-se a extinção da possibilidade de purgação da mora, na medida em que, pela nova sistemática adotada, cinco dias após executada a liminar de busca e apreensão, a propriedade se consolida em nome do credor. Deste modo, o antigo direito de purgação da mora foi substituído pela possibilidade de pagamento integral da dívida pendente dentro do prazo de cinco dias após executada a liminar, hipótese em que o bem deve ser restituído livre de ônus. Assim, a lei deixou de possibilitar a restauração do contrato, bem como permitiu o uso da busca e apreensão independentemente do valor em aberto. Ainda, manteve-se no texto legal em 2004 a possibilidade de conversão da busca e apreensão em depósito, o que poderia levar à prisão civil do devedor.
O aumento do rigor na garantia, no entanto, foi objeto de diversas discussões no Judiciário.
Por um lado, a impossibilidade de purgação da mora e restauração do contrato foi matéria bastante contestada em decisões judiciais, sendo que várias decisões ainda mantiveram o direito de purgação, mesmo diante da nova redação legal. No entanto, o STJ, ao tratar do tema, reconheceu a impossibilidade de purgação da mora após o texto de 2004, sendo que ao devedor restaria a possibilidade de pagamento integral da dívida. É o que se viu do REsp 1.418.593/MS:
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. DECRETO-LEI N. 911/1969. ALTERAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N. 10.931/2004. PURGAÇÃO DA MORA. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE PAGAMENTO DA INTEGRALIDADE DA DÍVIDA NO PRAZO DE 5 DIAS APÓS A EXECUÇÃO DA LIMINAR.
1. Para fins do art. 543-C do Código de Processo Civil: "Nos contratos firmados na vigência da Lei n. 10.931/2004, compete ao devedor, no prazo de 5 (cinco) dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida - entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária".
2. Recurso especial provido.
Por outro lado, outro aspecto que foi substancialmente afetado judicialmente foi a questão da conversão da busca e apreensão em ação de depósito e a consequente prisão civil do devedor. Embora continuasse presente no texto legal de 2004, a jurisprudência se pacificou quanto ao entendimento pela impossibilidade da prisão civil nestas condições. E, pondo um fim a essa questão, em 2014 essa previsão legal foi eliminada por completo, com a alteração do artigo 4º do decreto-lei 911/69 promovida pela lei 13.043/14.
No entanto, outra discussão surgiu quanto ao funcionamento prático da alienação fiduciária em garantia e suas consequências econômicas. Mesmo após a definição do STJ quanto à impossibilidade de purgação da mora e a necessidade de observância do procedimento específico do texto do decreto-lei 911/69 promovido pela reforma de 2004 (que impõe somente o direito à restituição do bem em caso de pagamento integral da dívida), diversas decisões judiciais passaram a flexibilizar o rigor desta garantia com base na ¨teoria do adimplemento substancial do contrato¨.
Desta forma, ainda que ocorrendo o inadimplemento, impede-se a busca e apreensão em hipóteses de pagamento de parte substancial da dívida, criando uma dificuldade adicional na recuperação de crédito. Diante disso, surgiram discussões jurídicas quanto à compatibilidade dessa teoria à figura da alienação fiduciária em garantia e seu procedimento específico constante do decreto-lei 911/69.
De um lado, os defensores da aplicação da teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária em garantia afirmam que a utilização de tal medida evita a extinção do contrato (e perda do bem) em situação de pagamento substancial da dívida, de modo que a busca e apreensão seria medida excessiva, e que nesse contexto faltaria ao credor interesse de agir na busca e apreensão, devendo valer-se de meio menos gravoso para receber o montante faltante.
Por outro, quem entende inaplicável tal interpretação argumenta que uma teoria, sem previsão legal, não pode substituir previsão legal expressa que regulamenta minuciosamente o procedimento, e na medida em que inexiste estipulação legal de percentuais mínimos, a busca e apreensão poderia ser utilizada diante de qualquer inadimplência, sendo um direito do credor. Inclusive, sob a ótica econômica, essa argumentação considera que maior segurança e previsibilidade estimulam a concessão de crédito e favorecem o ambiente econômico.
Referida discussão passou a se verificar também nos tribunais. Após constatar-se o aumento do debate acima, e de uma gradativa aplicação da teoria nos tribunais estaduais, a despeito da falta de previsão legal da teoria e da indefinição do que seria um "adimplemento substancial", recentemente o STJ tratou do tema, através do REsp 1.622.555 / MG, julgado em fevereiro de 2017, e adotou interessante posicionamento, com várias considerações quanto aos impactos econômicos envolvidos.
Em coerência ao entendimento anteriormente apresentado no REsp 1.418.593/MS, o julgamento recente (REsp 1.622.555 / MG) foi no sentido da inaplicabilidade da teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária em garantia.
Na hipótese, o recurso era contra decisão do TJ/MG que tinha admitido a teoria do adimplemento substancial em um caso em que, constatado o inadimplemento das 4 últimas parcelas de um total de 48, se determinou a extinção da busca e apreensão, baseada no adimplemento substancial. A Segunda Seção do STJ, contudo, ao apreciar a matéria, entendeu incabível a figura da teoria do adimplemento substancial, considerando-a incompatível com o procedimento próprio da alienação fiduciária em garantia.
Ressaltou também o julgado que o credor possui interesse de agir na busca e apreensão, independentemente do número de parcelas em aberto, tendo em vista que o decreto-lei 911 não faz qualquer restrição à utilização da busca e apreensão em razão da proporção do inadimplemento, além de possuir texto expresso que demanda a quitação integral do debito como condição para a restituição do bem ao devedor (sendo que, nesse sentido, constou da ementa: "para que o bem possa ser restituído ao devedor, livre de ônus, não basta que ele quite quase toda a dívida; é insuficiente que pague substancialmente o débito; é necessário, para esse efeito, que quite integralmente a dívida pendente"). Logo, nesse entendimento, ficou evidente ser irrelevante a extensão da inadimplência, sendo admissível a busca e apreensão diante qualquer montante em aberto
Assim, diante da insegurança e imprevisibilidade que referida questão traz a esse popular instrumento de garantia, o STJ adotou entendimento que levou em consideração as questões econômicas e de comportamento que são impactadas, tanto que, ao final da ementa, fez constar tais aspectos econômicos, no seguinte sentido: "4.2. A propriedade fiduciária, concebida pelo legislador justamente para conferir segurança jurídica às concessões de crédito, essencial ao desenvolvimento da economia nacional, resta comprometida pela aplicação deturpada da teoria do adimplemento substancial."
Interessante observar também a preocupação com os efeitos econômicos negativos que podem afetar terceiros (consumidores adimplentes), aspecto que foi considerado no voto vencedor do ministro Marco Aurélio Bellizze: "não se pode deixar de reconhecer que a aplicação da tese do adimplemento substancial na hipótese em comento, a pretexto de proteger o consumidor, parte vulnerável da relação contratual, acaba, em última análise e na realidade dos fatos, a prejudicar o consumidor adimplente, que, doravante, terá que assumir o ônus pelo inarredável enfraquecimento do instituto da garantia fiduciária, naturalmente com o pagamento de juros mais elevados. A própria indefinição do que seria adimplemento substancial, em termos percentuais, de inequívoca subjetividade, enseja, diante da elevação do risco de inadimplemento, sensível majoração dos juros cobrados em contratos dessa espécie".
Logo, como se vê, o recente entendimento do STJ levou em consideração não somente a situação das partes diretamente envolvidas no contrato, mas também os efeitos econômicos que afetam a terceiros externos, sejam eles outros devedores (adimplentes e inadimplentes) ou os diversos envolvidos no funcionamento do mercado. Resta agora aguardar para constatarmos se referido entendimento se consolidará na jurisprudência brasileira.
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*Fernando Schwarz Gaggini é advogado e professor de Direito Comercial na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.