Um dos maiores progressos do Direito no século XX foi o reconhecimento da existência de empresas, embora até hoje não se saiba bem como defini-las.
Empresa é atividade, é o grupamento de pessoas em torno de um escopo comum, para gerar lucro. Empresa é a organização, colocando-se, ao mesmo tempo, como o motor da economia e uma grande ilusão. Na realidade dos fatos, não passa de uma reunião de pessoas, que se aposentam, morrem ou vão trabalhar em outros grupos, mas podem resistir por séculos. Ao atingir certa dimensão, adquirem características próprias, como personalidade, know how, cultura e tecnologia.
As sociedades [anônimas ou limitadas] situam-se em outra esfera. São roupagens jurídicas que permitem a autoridade sobre a empresa. Quem detém o controle da sociedade comanda e esse domínio permite pautar os destinos da corporação, em um esquema que somente é possível por conta do Direito. Nos últimos 500 anos, as melhores cabeças têm trabalhado para aperfeiçoar o ferramental jurídico que viabiliza o controle das organizações. No reino animal, os grupos são conduzidos por machos alfa. No empresarial, por acionistas controladores e seus representantes. Machos alfa são fisicamente mais fortes. Acionistas compram ou herdam ações, que não passam de um feixe de poderes atribuídos pelo Direito sobre determinada organização empresarial. A pujança do macho alfa existe independente de qualquer ordem jurídica; a do acionista controlador apenas porque lhe é garantida pelo Direito.
A sofisticação dessa construção atingiu seu ápice no século passado, com o reconhecimento da pessoa jurídica e de seu patrimônio separado. Tecnicamente, acionistas controladores possuem meras parcelas abstratas do capital social. Os bens tangíveis e intangíveis ligados à exploração da atividade são da sociedade, e não de seus acionistas.
Também por força da eficiência das construções jurídicas, ações podem trocar de mãos com rapidez, deixando a empresa intacta. Quando se transferem os títulos, altera-se o comando empresarial no mundo jurídico com grande facilidade, deixando que as atividades econômicas sigam adiante, no mundo dos fatos. O Direito cria uma realidade paralela, viabilizando o comando das empresas e a mudança de sua titularidade, sem deixar que os bens e características ligados à exploração da atividade econômica dissipem-se ou percam valor com a transferência.
Se ninguém houvesse divulgado a morte de Steve Jobs, nada teríamos percebido em nossos celulares. Continuamos a usar os mesmos telefones da Apple, mesmo com o desaparecimento daquele que a concebeu. Durante nossas compras do mês, nenhum de nós teria deduzido que Abílio Diniz deixou o Pão de Açúcar para participar da BRFoods. Novamente: isso é possível porque a empresa, produtos e serviços estão no mundo real, dos fatos, ao mesmo tempo em que seu controle situa-se em uma dimensão virtual e abstrata, criada e mantida pelo Direito.
Contudo, os dois planos interrelacionam-se intensamente, na medida em que os controladores costuram a teia de comando da organização. Em sociedades familiares, a estrutura administrativa desdobra-se a partir de relações de sangue. Emílio é pai de Marcelo. César é sobrinho de Murilo e assim por diante.
Com a operação Lava-Jato, muitas das nossas grandes empresas imbicaram em comportamentos ilegais e altamente reprováveis. Embora demonizadas por muitos, é preciso reconhecer que geram lucros, são detentoras de alta tecnologia, produzem riquezas, empregos e impostos. Seria infantil presumir que todos os que prestam serviços ou trabalham na Petrobrás, na Odebrecht ou na Camargo Correa são corruptos, como as redes sociais parecem concluir. Quem conduziu a organização por essa trilha foram seus acionistas dominantes e administradores, as pessoas de carne e osso que detém os poderes para decidir os caminhos da organização.
Qual seria a vantagem econômica para o País de fazer desaparecer as empresas/organizações envolvidas nesses escândalos? O que o Brasil ganha com esse minguar dos grandes grupos econômicos? Absolutamente nada, a não ser o delírio dos ingênuos no Facebook e o gáudio daqueles que herdarão um grande mercado, sem terem investido para isso. Se os empreendimentos forem dissolvidos ou definharem, dissipar-se-á grande parte da sua riqueza. Quando a empresa [organização] é seriamente atingida, torna-se quase impossível transferir, sem muitas perdas, sua tecnologia, know-how e relações econômicas, bem como a enorme teia de contratos que gravita ao seu redor.
As empresas devem ser preservadas e seus controladores/administradores punidos. Simples assim. O Direito dispõe dos instrumentos para implementar a degola daqueles que precisam ser degolados e, ao mesmo tempo, garantir a preservação do ente gerador de riqueza e de empregos. Dissolver as organizações atadas aos escândalos equivaleria a fuzilar os cidadãos, porque o prefeito desviou recursos públicos e a população não o linchou pelas ruas, apesar de "ter ciência" dos fatos.
É possível e necessário separar a empresa de seus controladores, a água suja da criança, preservando a vida da nossa economia. Cortemos as cabeças, mas deixemos que as organizações econômicas cumpram sua tão aclamada função social. Para isso, é preciso preservá-las.
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*Paula A. Forgioni é professora titular de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.