Introdução
A lei 13.432, de 11 de abril de 2017, regulamentou a profissão de detetive particular, criando normas a serem observadas para o seu regular exercício, limitando o alcance dessa atuação e fincando os direitos e deveres do também chamado detetive profissional.
Investigações de caráter não penal
O diploma, logo em seu art. 2º, é claro em restringir as atividades do detetive particular ao planejamento, execução e coleta de dados e informações "de natureza não criminal". Curiosa essa ressalva formulada na lei. Afinal, se o art. 5º dispõe que o detetive particular pode colaborar com investigação policial em curso, temos como evidente a incoerência do legislador ao limitar a atuação do detetive particular a fatos "de natureza não criminal". Sobretudo quando no parágrafo único, do mesmo dispositivo, condiciona a colaboração ao prévio aceite do delegado de polícia. Resta óbvio, pois, o liame entre a investigação policial e a atuação do detetive particular. Ora, se a atividade deste último se restringir a fatos "de natureza não criminal", indaga-se, então, qual seria a utilidade do detetive na persecução penal. Segundo consta da justificação do projeto de lei que deu origem ao diploma em exame, tais investigações seriam referentes, em sua grande maioria, a casos de envolvimento extraconjugal de marido ou mulher, ou entre companheiros. Sucede que o adultério, previsto no art. 240, segundo a redação original do Código Penal, não é mais crime, revogado que se encontra desde o ano de 2005. Daí se antever a reduzida possibilidade de atuação do detetive particular na persecução penal.
Pois bem. Caso o detetive particular efetue investigações de cunho penal, qual delito teria cometido? A doutrina, antes da nova ordem normativa, divergia, a saber: a) para uma primeira corrente, a investigação particular configurava o crime do art. 328 do Código Penal (usurpação de função pública), não importando a inexistência de função pública com a denominação de detetive; b) outra ensinava não constituir delito, ao conceber como lícito o trabalho exercido pelo detetive particular, que se submetia à legislação própria para a atividade profissional de prestação de serviço de investigação (lei 3.099/57). Configuraria o crime, apenas, se o particular se identificasse como policial, agindo como se fosse servidor público executando um ato oficial.
A lei 13.432/17 buscou colocar uma pá de cal na discussão, dispondo sobre o exercício da profissão de detetive particular. Para os fins desta lei, considera-se detetive particular o profissional que, habitualmente, por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial, planeje e execute coleta de dados e informações de natureza não criminal, com conhecimento técnico e utilizando recursos e meios tecnológicos permitidos, visando ao esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante (art. 2º).
Percebam, portanto, que sua atuação é primordialmente extrapenal, conquanto façamos a ressalva acima, quando apontamos a aparente incoerência do legislador. De qualquer sorte, interpretando-se a lei de forma gramatical e não sistemática, tem-se que a usurpação por particular da tarefa de investigar criminalmente permanece crime, como forma de se resguardar o normal e regular funcionamento das atividades administrativas, comprometido pelo indevido exercício de funções públicas por pessoa inabilitada. O que a lei 13.432/17 permite, no seu art. 5º, é o detetive particular colaborar com a investigação policial em curso, desde que expressamente autorizado por contrato e aceito pelo delegado de polícia, que poderá rejeitá-lo a qualquer tempo. O diploma, contudo, proíbe o detetive colaborador de participar diretamente das diligências policiais (art. 10, inc. IV), o que ocorreria, por exemplo, caso cumprisse um mandado de busca e apreensão.
Logo, se o detetive exercer atividades de investigação criminal fora dos casos de colaboração com a autoridade policial, ou agir sem contrato, ou, ainda, continuar atuando depois de rejeitado pela autoridade policial, incorrerá nas penas do art. 328 do Código Penal, que trata da usurpação de função pública. O delito se consuma com a efetiva prática de pelo menos um ato inerente ao ofício indevidamente desempenhado, não se exigindo reiteração de condutas ou consequências danosas para a administração. Aliás, no caso de reiteração de comportamentos "se forem praticados vários atos no exercício da função, a lesão típica se protrai e a consumação se desloca no tempo e no lugar em que for realizado o último ato (crime eventualmente permanente)", como explicam Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Jr1. No caso de o agente auferir, para si ou para terceiro, vantagem (não só as patrimoniais), a pena será majorada, nos termos do parágrafo único do art. 328 do CP.
Detetive particular apenas no inquérito policial ou em outros procedimentos investigativos?
Uma indagação que, decerto, surgirá, consiste em saber se a participação do detetive particular deve se restringir ao inquérito policial ou, ao contrário, poderá se estender a outros procedimentos investigatórios de caráter extrapolicial, como, por exemplo, aqueles comandados pelo Ministério Público ou oriundos de Comissão Parlamentar de Inquérito ou, ainda, o presidido pela autoridade fiscal a fim de apurar a prática de crimes tributários. Forma-se doutrina no sentido de admitir a figura do detetive particular também para as investigações levadas a cabo pelo MP. Nesse sentido, Eduardo Luiz Santos Cabette, para quem o legislador, ao empregar no caput do art. 5º, da lei 13.432/17, "a expressão ampla 'investigação criminal' e não a restrita 'Inquérito Policial', não parece restar dúvida de que também poderá atuar em Procedimentos Investigatórios Criminais (PIC) do Ministério Público"2.
Sucede que, ao contrário desse entendimento, o legislador, no caput do art. 5º da lei, utiliza a expressão "investigação policial" e não "investigação criminal", como equivocadamente pareceu ao citado pelo autor. Daí concluirmos, sem maior esforço, que a figura do detetive particular somente tem cabimento nas hipóteses de investigações policial, formalizadas por meio do respectivo inquérito policial. Para que não reste nenhuma dúvida, lembramos do teor do parágrafo único, do mencionado art. 5º da lei, ao determinar que o aceite da colaboração "ficará a critério do delegado de polícia, que poderá admiti-la ou rejeitá-la a qualquer tempo". Quisesse o legislador estender essa participação a outras investigações diversas das policiais e bastaria empregar a expressão genérica "investigações". Ao referir-se especificamente à "investigação policial" e ao condicionamento de seu aceite pelo delegado de polícia, deixou claro que somente nesses casos é de se tolerar o detetive profissional. A textualidade do diploma legal não permite outra conclusão, sintetizada no brocardo latino segundo o qual in claris cessat interpretatio.
Autorização judicial?
A lei não exige, para a efetivação da colaboração, prévia autorização judicial ou manifestação do Ministério Público. Parece-nos de bom alvitre, contudo, que o delegado de polícia comunique o juiz e o promotor de Justiça oficiante nos autos do inquérito, eventual autorização que tenha concedido ao detetive particular, a permitir, inclusive, alguma fiscalização sobre essa atuação.
Contratação pela vítima ou pelo suspeito
A lei não faz qualquer distinção entre a atuação do detetive particular em favor da vítima ou do suspeito da prática criminosa. Em seu art. 8º, com efeito, ao estipular os termos do contrato de prestação de serviços, faz menção apenas à "qualificação completa das partes contratantes", sem distinguir averiguado e ofendido. Ora, onde a lei não distinguiu não cabe ao intérprete fazê-lo (ubilex non distinguit, nec nos distinguere debemus).
Alcance da atuação
Parece evidente que a atuação do detetive particular é de natureza acessória, supletiva, de mera colaboração com a autoridade policial. Nesse sentido, o caput do art. 5º, da lei, ao dispor que "o detetive particular pode colaborar com a investigação policial em curso". A propósito, a lei 12.830/13 determina ser privativa do delegado de polícia a função de investigar mediante a instauração de inquérito policial. Tal colaboração, portanto, jamais poderá implicar na prática de atos inerentes e privativos da autoridade policial e seus agentes, como, aliás, veda expressamente o inc. IV, do art. 10, da lei. Poderá, assim, no interesse da investigação policial, indicar testemunhas, exibir documentos, sugerir, ainda que informalmente, rumos da persecução e só.
Aceitação pelo delegado de polícia
A colaboração de detetive depende da prévia aceitação do Delegado de Polícia, "que poderá admiti-la ou rejeitá-la a qualquer tempo", nos termos do parágrafo único, do art. 5º da lei. Trata-se, pois, de ato discricionário, a exigir, da autoridade policial, análise quanto à sua conveniência e oportunidade. Nem por isso se dispensa a respectiva motivação do ato. Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, "a motivação deve ser prévia ou contemporânea à expedição do ato. Em algumas hipóteses de atos vinculados, isto é, naqueles em que há aplicação quase automática da lei, por não existir campo para interferência de juízos subjetivos do administrador, a simples menção do fato e da regra de Direito aplicada pode ser suficiente, por estar implícita a motivação. Naqueloutros, todavia, em que existe discricionariedade administrativa ou em que a prática do ato vinculado depende de aturada apreciação e sopesamento dos fatos e das regras jurídicas em causa, é imprescindível motivação detalhada"3. É dizer: a não admissão do detetive não deve resultar de mero capricho da autoridade policial que, antes, deve elencar as razões que justificaram seu ato. Lembre-se que a profissão de detetive particular, antes mesmo da entrada em vigor da lei em análise, já se encontrava no rol da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO 3518-05), importando mesmo a negativa imotivada da autoridade policial em restrição do direito ao trabalho do detetive privado.
Eram estas as considerações que, em um primeiro momento, entendemos pertinentes a respeito do diploma novel.
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1 Dos crimes contra a Administração Pública, Ed. Malheiros, 1999 p. 186.
2 O detetive particular na investigação criminal.
3 Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 21ª ed., 2006, p. 108.
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*Ronaldo Batista Pinto é promotor de Justiça no Estado de SP.
*Rogério Sanches Cunha é promotor de Justiça no Estado de SP.