Migalhas de Peso

A litigância de má-fé. Direito de ação e dever de boa-fé. Breves considerações.

Resta, pois, aos operadores do Direito – partes e seus procuradores, peritos, auxiliares, Ministério Público e magistrados – terem em mente que a obediência ao dever geral de boa-fé, ética e moralidade outros resultados não trarão senão o respeito à lei e à credibilidade da Justiça.

22/3/2017

A Constituição Federal assegura em seu artigo 5º, inciso XXXV o direito de ação – "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" - e no inciso LV, o contraditório e a ampla defesa.

A análise pura e simples destas garantias constitucionais, máximo resguardo aos cidadãos brasileiros, permite inferir que todos aqueles que tenham negada a solução amigável – ou administrativa – aos seus impasses decorrentes da vida em sociedade, podem e devem recorrer ao Poder Judiciário para fazer valer seus direitos. Somada a esta análise uma visão equivocada e distante de outros institutos que gravitam em torno de referidas garantias, muitos entendem que em Juízo tudo se pode requerer, qualquer direito pode ser invocado ou mesmo criado, bastando contratar "um bom advogado" e claro, não se tratando de um processo de natureza trabalhista, valer-se dos benefícios da Justiça Gratuita, a fim de evitar que a disputa por qualquer pseudodireito possa trazer ônus de sucumbência e prejuízos ao demandante.

Ainda que tenhamos previstas (há muito) a sucumbência, a multa e até mesmo a indenização por perdas e danos decorrente de litigância de má-fé com a intenção de inibir litígios propostos com objetivo de contrariar texto expresso de lei, alterar a verdade dos fatos ou até mesmo para alcançar objetivo ilegal, a dificuldade de comprovação à parte contrária sobre os exatos termos do que realmente é litigância de má- fé, por vezes, determinou ou mesmo tem determinado aos magistrados a preferência pela interpretação simplória de que tudo se resume ao direito de ação e à ampla defesa, restando o reconhecimento de nociva litigância às questões de oposição de recursos meramente protelatórios ou à efetiva comprovação da parte sobre a ofensa e o dano sofrido, apesar do Código em nenhuma linha mencionar a necessidade de comprovação do dano nesta matéria. Os abusos são frequentes e a multa é comum, mas raras são as indenizações.

O CPC de 1939 previa condenação a quem abusava do direito, em qualquer dos polos da ação. Também mantinha resguardado o dever de lealdade, prevendo a responsabilidade por perdas e danos, sem muita precisão a respeito do termo.

O Código de 1973, trouxe como evolução a configuração da litigância de má-fé, suas hipóteses, as penalidades de multa e indenização. Recepcionado pela Constituição Cidadã de 1988, o Capítulo II – Dos Deveres das Partes e Seus Procuradores, Seção II – Da Responsabilidade das Partes por Dano Processual, passou a ser interpretado em consonância aos princípios constitucionais insculpidos no artigo 5º e sofreu alterações que incluíram a possibilidade de reconhecimento da nociva litigância ex officio.

Em momento não muito distante, ainda amparado neste instrumento processual, o STJ, apontando para o reconhecimento de indenização nos termos dos então vigentes artigos 17 e 18, reconheceu o direito à indenização mesmo sem que a parte afetada provasse o dano sofrido – Embargos de Divergência em RESP 1.133.262 – ES (2012/0091110-6). Bastou o reconhecimento do abuso, a contrariedade ao dispositivo processual. Um avanço e muito coerente, por sinal, ao reconhecimento ex officio, bem como o prestigio à magistratura, que representa o Estado e como tal tem o poder-dever de prevenir e reprimir qualquer ato contrário à dignidade de justiça, efetivando a prestação jurisdicional, conforme atual artigo 139, inciso III do diploma processual.

É um alento se considerarmos que, lamentavelmente, verificamos dia-a-dia as nossas "Justiças", qualquer delas (federal, estadual, cível, trabalhista), cada vez mais assoberbadas, lentas, por vezes dedicadas a questões já decididas em nossos superiores tribunais e a processos sem compromisso com a lealdade e boa-fé processual.

Baseados no dever geral de boa-fé, bem como na ética e na moralidade, que amparam certamente todas as hipóteses da norma processual – seja ela de 1973 ou de 2015 – alguns magistrados, felizmente, vêm demonstrando que a coerência há de prevalecer. Juízes trabalhistas, mais do que reconhecer a litigância de má-fé, têm determinado o encaminhamento de oficio à OAB para que inverdades e exageros constantes de petições firmadas por advogados sejam apurados, felizmente com a cautela de averiguar os excessos junto ao cliente (reclamante), livrando-o de injusta condenação por litigância de má-fé.

O novo CPC pouca mudança trouxe ao tema, tratando apenas de acrescentar hipóteses para a configuração da multa (sempre superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa) e indenização (fixado pelo juiz ou por arbitramento) da litigância de má-fé, facilitando a interpretação e aplicação da penalidade. Apesar das críticas de que o novo diploma processual tornou o processo civil brasileiro mais complexo, é certo que em matéria de litigância de má-fé as regras permanecem carentes de que a parte ofendida a argua e o magistrado reconheça em pequenos atos, o tumulto e o prejuízo causado ao processo e à Justiça, em última análise.

Merece destaque, finalmente, o momento no qual se inicia a vigência de uma nova lei, pois é o mais propício à mudança de comportamentos que podem trazer melhores resultados à sociedade. Sempre que uma nova lei passa a viger, a expectativa é de adequação aos tempos atuais, mudança e inovação. E considerando ser o nosso país acostumado à corrupção de todos os portes e em todos os níveis, um dispositivo procedimental que enaltece a ética e a lealdade, ainda que somente renovado, é muito bem-vindo. Resta, pois, aos operadores do Direito – partes e seus procuradores, peritos, auxiliares, Ministério Público e magistrados – terem em mente que a obediência ao dever geral de boa-fé, ética e moralidade outros resultados não trarão senão o respeito à lei e à credibilidade da Justiça.

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*Ana Lúcia Ceravolo Pikunas é advogada do escritório Comparato, Nunes, Federici & Pimentel Advogados.

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