Não é fácil ser formiga, pensou Angelita.
Num dia agitado, em que suas companheiras formigas estavam um tanto quanto irritadas consigo mesmas, Angelita teve de suportar as intempéries de carregar folhas mais pesadas com as gotículas do dia chuvoso, ver sua casa destruída quase por um desconhecido desastrado – e abestalhado, pensou Angelita – e, ao fim do dia, ter um encontro desagradável com Joaquim, o Tatu temido e tremido – tremido de medo da onça Mariana, quem lhe desejava ter como refeição, e temido pelas formigas, de quem gostava de se alimentar.
Ao fim do dia, já no seu casulo, estava só.
Teve consigo mesma, em reflexão.
Viu-se solitária, e disso não se queixou, pois ter passado o dia todo com as outras formigas tantas lhe fez pensar que a solidão é calma, calma é paz, e paz é felicidade.
Pensou na sua função no formigueiro. Viu-se sem ter nada de especial, pois carregava as folhas para alimentação de todo o formigueiro. E aí viu-se muito útil.
Marcela, moradora do formigueiro, bateu-lhe à porta.
- Pois não, Marcela?
Disse Angelita.
- Amiga, tenho uma novidade!
Disse Marcela.
- Diga-me!
Disse Angelita.
- Juliano me convidou para conhecer outro formigueiro! Fica atrás do monte. Lá não existem muitas árvores, o chão estará mais limpo de folhas. Os tatus lá não chegam, pois é campo aberto e as onças lhes vêem de longe, então eles preferem não arriscar. É um formigueiro novo, então há menos formigas, e vamos ter menos aborrecimentos. Ele me disse para chamar você também, Angelita
Disse Marcela.
- Mas Marcela, Juliano sabe bem o caminho até lá? E o nosso casulo? E se não tiver lugar para nós lá? E se Joaquim nos achar no caminho?
Retrucou Angelita, demonstrando toda a sua preocupação, que por toda sua vida lhe tirou de enrascadas, mas lhe evitou a novos horizontes.
- Amiga, eu vou. Você é muito careta, e medrosa! Se quiser ir, me procure amanhã.
Disse Marcela, virando-se e indo embora.
Angelita, então, como era de se esperar, ficou preocupada, aflita, ansiosa, esperançosa, medrosa, desejosa, o que lhe tirou o sono.
E tudo isso justo num dia em que já não foi fácil. Do conflito de desejos, primeiro a insônia, depois o novo dia, com tudo o que tem direito qualquer formiga.
Revelou-se para Angelita um dia novo, com esperança e medo, medo e esperança, tudo numa ordem sem ordem.
Não havia nenhum abestalhado, nem Joaquim temido ou tremido que lhe tirasse da ordem de desordem. Era um dia tipicamente atípico para ela.
O pensamento onipresente era o de se ver nova Angelita.
Mas aqui não está ruim?
Mas e se o novo formigueiro for realmente tudo que Marcela disse?
E se Joaquim nos achar pelo caminho? Aí será o nosso fim, e nosso formigueiro será seu estômago. Meu Deus!
Veio o fim do dia, sem o fim da indecisão ou da desordem.
Angelita foi até Marcela:
- Marcela, pensei no que me disse.
- E aí amiga, vamos?
- Marcela, eu prefiro ficar. As coisas por aqui não estão ruins, e o risco é muito grande. Não sei como é este novo formigueiro, e não quero ser engolida por Joaquim.
- Angelita, você é medrosa mesmo heim! Eu já imaginava isso. Eu te mando um cartão postal de lá, querida!
Foi o que disse Marcela, sorridente, mas não desdenhosa.
Pensava Angelita que naquela noite dormiria tranquila, já que a causa de sua insônia tinha sido resolvida com sua decisão.
O que sobrava em ansiedade, faltava em saber de si mesma, e Angelita teve-se por inteira em desordem.
Ligou o rádio, e tocava Caetano:
"Respeito muito minhas lágrimas. Mas ainda mais minha risada".
Angelita, que chorava, riu.
No outro dia, enquanto carregava as folhas no seu labor diário, teve-se com Morgana, a tigresa que ninguém ama, a quem disse:
Morgana, como vai? Que fazes por aqui, onde nem todos apreciam seu andar que julgam como soberba?
Então respondeu a tigresa:
Não posso estar somente onde todos me querem, Angelita. Tenho de estar onde é meu lugar. Seria egoísmo pensar que devo estar somente onde sou querida, pois não posso querer que todas sintam-se rodeados de estrelas cintilantes e como se levados por brisa suave das colinas onde plantam na primavera os eucaliptos com minha presença. Estou aqui por ser aqui o meu caminho.
Disse Angelita:
Pois é Morgana. As coisas estão difíceis.
Não sei se aqui é meu lugar.
Não me vejo carregando estas folhas para sempre, mas não é nada ruim. Estive em formigueiros onde nem isto eu poderia fazer, e um teto não era garantido.
Mas dia desses uma formiga amiga me convidou a um novo formigueiro.
Ela foi, e eu tive medo.
Tenho medo de mudar.
Então disse Morgana:
Angelita, como sabe, minha natureza felina assusta os outros bichos. E isto me obriga a estar sempre em lugares diferentes. Sempre me pergunto quando é que vou ficar num lugar e não ter de me mudar sempre.
Disso o que aprendi é que mudar é bom, e ter um lugar para ficar também é bom.
Tem horas que tudo que queremos é largar tudo e respirar um novo ar.
E tem aquele dia que queremos um colchão para dormir, para deitar abrir um livro, ver o sol se pondo na janela, esperar seus amigos lhe baterem na porta e ter onde recebê-los.
E tem horas que não podemos escolher.
O que não sabemos entender, Angelita, é que nem toda experiência nova deve vir seguida de grande renúncia.
Parte daquela coisa gostosa da expectativa da mudança é o medo, sim, eu sei.
Mas o medo sabe muito mais nos entravar que nos empurrar à frente nos nossos sonhos.
E quando não querer se ver carregando estas folhas, saiba que isto é a sua vaidade que lhe diz.
Saiba que a vaidade é como um cavalo selvagem, Angelita. É bonito de se ver, e de se exibir, mas quando tentas ir à algum lugar montado nele, ele lhe derruba no chão de pronto.
Angelita não sabia que responder.
Disse Morgana:
Angelita, tenho que ir pois a onça Mariana está chegando e não quero me indispor.
Angelita voltou ao trabalho.
No fim do dia, encontrou-se com Amanda, a aranha:
Amanda, como você está?
Respondeu Amanda:
Estou bem, Angelita! Há tempo que não lhe vejo!
Disse a formiga:
Pois é, Amanda. Tenho trabalhado por demais, e isto está me prejudicando em meu espírito. Não vou mais à lugar algum, e me vejo perturbada pelo que me rodeia e me entrava.
Queria ser como você, que pode subir em quase tudo, e a nada se prende.
Disse a Aranha:
Olha, Angelita, esta liberdade tem seu preço, acredite.
Mas quando quero recuperar minhas energias, meu ânimo, meu espírito, eu vou até uma árvore perto daqui, que é a mais alta de nosso campo. De lá, me sinto mais perto do céu, e sinto me livre demais.
Amanhã vou ter um tempo e vou lá, quer ir comigo, Angelita? Parece-me que é disso que você precisa!
Angelita pensou.
Pensou, primeiro, como de costume, em seu medo de cair do topo da árvore.
Mas também pensou no que lhe falara Mariana e Morgana, sobre o medo que entrava.
Angelita pensou mais um pouco, até que respondeu:
Eu vou sim, Amanda!
No outro dia, fugiu do trabalho e lá foi, Angelita.
Talvez a nova Angelita, ou a velha.
Nada disso importa.
O que importa é que Angelita lá foi.
E lá viu o sol, de perto.
Angelita viu longe, longe. Tão longe que sentia como se nada houvesse que não sentisse.
O vento, regular, lhe parecia como a brisa suave das planícies onde plantam o eucalipto na primavera de que Morgana lhe falara.
O sol, brilhava mais que todas as estrelas cintilantes poderiam brilhar em seus melhores dias.
Angelita viu-se nova, naquele minuto que esteve no topo da árvore.
Que é a descoberta do que não conhecemos senão o conhecer de nós mesmos, de um pedaço que não nos faltava, mas que não sabíamos?
Angelita só queria saber o que havia lá encima. Só queria ver o sol. O sol, e só.
Curiosa era Angelita. E agora, nova e velha, Angelita.
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*Mário Henrique da Luz do Prado é advogado.