Em comentário recentemente divulgado (Migalhas, 23/02/2017), a dra. Marinês Restelatto Dotti, advogada da União, apontou a omissão da lei 13.303/16, na indicação da competência para a condução do procedimento licitatório das empresas estatais. Depois de referir o que dispõem outros diplomas legais sobre o assunto (lei 10.520/02, lei 8.666/93 e lei 12.462/11) e o que está previsto no PLS 559/13, recentemente aprovado pelo Plenário do Senado, a articulista conclui que "Diante do silêncio da lei 13.303/16 caberá ao regulamento da empresa estatal definir a competência para a condução do procedimento licitatório quando adotado o rito previsto em seu at. 51, ou seja, se será conduzido por um único agente público, auxiliado por equipe de apoio, nos moldes do pregão e do PLS 559/13, ou por comissão, especial ou permanente, composta por número mínimo e agentes, no formato adotado pela lei 8.666/93 e pelo decreto 7.581/11, que regulamenta a lei 12.462/11". (Clique aqui e leia a íntegra da matéria).
O registro da articulista é procedente. De fato, não há, nas seções do Capítulo I do Título II do estatuto aprovado pela lei 13.303/16, que fixam as diretrizes para as licitações e contratos (Seção II) e regulam o procedimento da licitação (Seção VI), qualquer indicação sobre quem deverá conduzir o procedimento licitatório das empresas estatais. Se o silêncio do legislador foi intencional, deixou aberta a possibilidade de surgirem sistemas não uniformes, o que não favorece a segurança dos interessados em participar das licitações dessas entidades. Quanto à possibilidade de adoção do modelo previsto no PLS 559/13, deve-se observar, em primeiro lugar, que esse projeto não dispensa, por completo, a existência da comissão de licitação, de caráter permanente ou especial (confira-se o disposto no inciso XLVII do art. 5º). Em segundo lugar, a atribuição do julgamento das licitações a um órgão colegiado (comissão), que é da tradição do direito brasileiro, visa a restringir a arbitrariedade dos juízos subjetivos, além de dificultar (pelo menos em tese) a "influência" dos participantes do certame sobre o julgador. Bem por isso, o decreto 8.945/16, que regulamentou a lei 13.303, recomenda (§ 1º do art. 71) que o regulamento interno a ser editado pelas empresas estatais disponha sobre a tomada decisão "preferencialmente de forma colegiada".
Entretanto, não apenas no ponto indicado no comentário acima referido a lei 13.303 incide em omissão. Como tivemos oportunidade de destacar em sucinta análise encaminhada a Migalhas em 07/10/2016, em vários outros aspectos a disciplina dessa lei apresenta descompasso com o que se contém na legislação existente sobre licitações públicas, além de representar retrocesso em aspectos relevantes dessa matéria. Eis alguns exemplos:
1) Modalidades de licitação. Embora recomende (art. 32, inciso IV) a "ação preferencial" do pregão instituído pela lei 10.520/02, a lei 13.303 não indica quais as modalidades deverão ser utilizadas pelas empresas estatais no processamento das demais licitações, o que induz à suposição de que deixou para o regulamento interno de cada estatal dispor sobre o assunto. Adverte-se, porém, que modalidade de licitação constitui matéria de reserva legal, segundo o que estabelece o inciso XXVII do art. 22 da CF, na redação resultante da EC 19/98.
2) Requisitos da contratação direta de serviços especializados. Diferentemente do que prevê a Lei Geral de Licitações (lei 8.666/93), a Lei das Estatais permite a contratação direta de serviços especializados "com profissionais ou empresas de notória especialização" (art. 30, inciso II, letra "a"), mas não faz referência ao requisito da singularidade dos serviços a serem contratados. A simples alegação de notória especialização não parece ser suficiente para justificar a contratação direta desses serviços, dado que, em quase todos eles, é possível haver mais de um especialista qualificado para bem realizar os trabalhos pretendidos. Então, eliminar o requisito da singularidade significa deixar as estatais expostas aos questionamentos que hoje são levantados contra esse tipo de contratação.
3) Pré-qualificação e classificação de fornecedores. A lei 13.303 prevê a possibilidade de a empresa estatal "promover a pré-qualificação de seus fornecedores ou produtos" (art. 36) e estabelece que a pré-qualificação será permanente, definida como "procedimento anterior à licitação destinado a identificar ... fornecedores que reúnam condições de habilitação exigidos para o fornecimento de bem ou a execução de serviço ou obra nos prazos, locais e condições previamente estabelecidos" (art. 64, inciso I). No entanto, além de confundir a pré-qualificação com a classificação, a lei 13.303 empresta à pré-qualificação caráter de procedimento facultativo, o que significa que poderá ser adotado por algumas empresas estatais, e por outras não, permitindo, assim, sistemas díspares entre empresas públicas e sociedades de economia mista. Seria mais efetiva a disciplina, se estabelecesse a obrigatoriedade do prévio cadastramento e da classificação de todos quantos interessados em contratar com as estatais, como condição para participar das licitações por elas promovidas. A adoção dessa medida traria, dentre outas vantagens: (i) a celeridade no procedimento licitatório, porque dispensaria a apresentação, em cada caso, de documentos já existentes no cadastro; (ii) afastaria a participação de "aventureiros", não previamente cadastrados e classificados na especialidade do objeto licitado; (iii) propiciaria à entidade estatal segurança quanto ao êxito da contratação, pela certeza de que qualquer que fosse o vencedor do certame teria condições efetivas de bem realizar a obra, serviço ou fornecimento pretendidos.
4) Publicidade das licitações. Mais uma vez discrepando do que prevê a legislação existente, a lei 13.303 vincula os prazos de publicidade dos atos convocatórios das licitações ao critério que será adotado para o julgamento das propostas (art. 39), o que não encontra justificativa razoável. O que deve determinar o prazo para a apresentação de propostas é a maior ou menor complexidade da licitação, pela necessidade de coleta e análise de informações e dados necessários à formulação dos preços a serem propostos.
5) Processo judicial para apuração dos crimes em licitação. O estatuto jurídico aprovado pela lei 13.303 manda (art. 41) aplicar às licitações e contratos das estatais as normas de direito penal contidas nos arts. 89 a 99 da lei 8.666/93, que tipificam os crimes praticados na licitação. Esqueceu, porém, de disciplinar o processo judicial para aplicação das penas correspondentes aos delitos ali previstos. Essa omissão, que não poderá ser suprida pelo regulamento interno de cada estatal, porque processo penal constitui matéria de reserva legal, de competência privativa da União (CF, art. 22, inciso I), acarreta a incidência, plena e exclusiva, das normas do CPP.
6) Parâmetros de qualificação. Na indicação dos parâmetros para aferição da qualificação dos licitantes (art. 58), a lei 13.303 não prevê a comprovação da regularidade fiscal (que a CF exige para a contratação com o poder público – art. 195, § 3º), nem o registro da empresa e dos integrantes de sua equipe técnica no órgão fiscalizador da atividade profissional (que é imposto pelas leis específicas, especialmente na área de engenharia), tampouco a demonstração da capacidade operacional (indispensável, para prevenir risco de comprometimento da efetiva execução do objeto licitado);
7) Direito de impugnação. A lei 13.303 regula, de forma restritiva, o direito de impugnação assegurado ao cidadão não licitante. De fato, além de não prever a possibilidade de impugnar a contratação irregular, resultante de dispensa da licitação, não admite a impugnação, mediante recurso, contra ilegalidades cometidas no procedimento licitatório, o que se mostra ilógico e injustificável. Se o cidadão pode representar ao Tribunal de Contas e aos órgãos de controle interno "contra irregularidades na aplicação desta lei" (art. 87, §§ 1º e 2º); se pode "provocar" a anulação da licitação (art. 62); se pode promover ação judicial para anular atos ilegais da licitação, danosos ao interesse público (ação popular – lei 4.717/95); por que não pode recorrer contra decisão adotada no procedimento licitatório, quando houver cometimento de ilegalidade? O sistema jurídico assegura a todo cidadão o direito subjetivo a ver observadas as leis do país. De outra parte, mais importante do que representar conterá ato ilegal já consumado, ou tentar anulá-lo na Justiça, é poder impugná-lo, mediante recurso, para evitar a consumação da ilegalidade.
Esses e vários outros aspectos da disciplina estabelecida pela lei 13.303/16, estão abordados em nosso novo livro "A LICITAÇÃO E CONTRATAÇÃO NAS EMPRESAS ESTATAIS - Anotações críticas sobre a lei 13.303, de 2016", já pronto para publicação.
Dentre os aspectos apontados, a eliminação do requisito da singularidade (2) e a não exigência dos elementos comprobatórios de habilitação (6) representam mais que omissão: constituem retrocesso injustificável, na medida em que incidem sobre exigências já consagrados nas leis que atualmente regulam as licitações e contratações públicas. De outra parte, ao não fixar a exigência do cadastramento e da prévia classificação de fornecedores como condição para a participação nas licitações (3) e ao não assegurar ao cidadão não licitante o direito de recurso (7), a lei 13.303 revela timidez, que somente pode ser entendida como falta de vontade política de coibir as manobras e conchavos que ocorrem nesses procedimentos administrativos.
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*José Calasans Junior é sócio fundados do escritório Calasans Advogados.