Migalhas de Peso

Sobre a inconstitucionalidade da PEC 96/15

O que a PEC propõe é uma subversão do sistema de federalismo fiscal, que outorgou a riqueza de heranças e doações aos Estados e não à União.

15/2/2017

O imposto sobre heranças e doações, por anos esquecido em razão de se tratar de uma fonte de receitas de diminuta importância, voltou a ser uma possível realidade com a PEC 96/15. Com a recente recessão econômica, a busca por outras fontes de receitas mostrou-se necessária. Nesse contexto, o imposto sobre a herança passou a ser cortejado, apresentando-se como uma sedutora opção para o incremento da arrecadação tributária.

Trata-se de imposto de competência estadual e que, atualmente, tem uma alíquota média de 3,86% - um índice bem abaixo do praticado pela maioria dos países. A Suíça, por exemplo, tem uma taxa de 25%, enquanto nos Estados Unidos é de 29% e, na Inglaterra, a taxa é de 40%. Ante tal constatação, o governo apresentou em meados de 2015 uma proposta de emenda à Constituição Federal (PEC 96/15), com a intenção de mudar essa realidade. O objetivo é ampliar a arrecadação tributária, bem como aumentar a contribuição do chamado "andar de cima" sem regulamentar o imposto sobre grandes fortunas, também previsto na CF (art. 153, VII da CF/88).

A proposição é composta de três artigos. Por meio do primeiro dispositivo, inclui-se o art. 153-A na CF, de modo a outorgar competência à União para instituir o adicional do imposto sobre heranças e doações, nominado de Imposto sobre Grandes Heranças e Doações. O art. 1º da proposta ainda estabelece, entre outras normas, a destinação do produto da arrecadação ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), a progressividade de alíquotas em função da base de cálculo e a alíquota máxima, que não poderá ser superior à mais elevada do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF) – a qual atualmente é fixada em 27,5%. No que tange à essa última previsão (alíquota máxima), já fora elaborada emenda que propõe que o limite seja aquele estabelecido pelo Senado para os Estados-membros (hodiernamente fixado em 8%).

De início, o que chama a atenção é que, em que pese tratar-se de tributo de competência estadual, a proposta de emenda "outorga competência" à União para que institua o "adicional sobre o imposto" estadual. Ora, sabe-se que no sistema tributário brasileiro, o principal critério de repartição da competência tributária entre os entes federados é a materialidade da exação. Uma das características da competência tributária é ser privativa, o que significa que ao reservar determinada manifestação de riqueza (capacidade contributiva em sentido objetivo) à competência impositiva de um ente político, a Constituição rejeita, de modo implícito, tal competência para os demais.

Apertada síntese, a Constituição não admite a superposição de exações tributárias por entes políticos distintos: ao atribuir um possível fato gerador a um dos entes políticos, nega aos demais a possibilidade de instituírem tributação sobre esse mesmo fato gerador. As exceções são apenas aquelas expressamente consagradas pela Constituição, como, por exemplo, a superposição do IRPJ com a CSLL.

O ITCMD é tributo de competência estadual, cuja exação recai sobre a transferência mortis causa ou por doação de bens móveis e imóveis. Logo, está fora do âmbito de competência da União instituir imposto sobre referida materialidade. Isso porque a União detém competência residual para instituir, por intermédio de lei complementar, novos impostos (art. 154, I da CF/88). No entanto, limita-se tal competência ao se vedar que a exação recaia sobre "fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados" na CF.

O ITCMD é imposto cuja materialidade (fato gerador e base de cálculo) vem discriminada na Constituição, logo, encontra-se fora do âmbito da competência residual da União. Daí a "necessidade" da emenda à Constituição. Todavia, parece que os nobres congressistas – ou a maioria deles – esqueceram-se de que o poder constituinte derivado não é ilimitado – tal como o originário. Ou seja, toda proposta de emenda à Constituição tem de observar, para além do rito formal, constitucionalmente consagrado, as cláusulas pétreas, previstas no art. 60, § 4º.

Como foi bem observado pelo Senador Ronaldo Caiado, a "preservação das riquezas que cabe a cada ente tributar é tão cara ao federalismo brasileiro que a autorização conferida à União pelo inciso I do art. 154 da CF para instituir novos impostos afasta a possibilidade de que recaiam sobre os fatos econômicos já tributados por meio dos impostos previstos no Texto Constitucional".

Ora, é evidente que o adicional sobre o ITCMD é um novo imposto, devendo, portanto, sujeitar-se à vedação constitucional que obsta a criação de novos impostos que tenham fato gerador e base de cálculo idênticos aos de outro imposto já previsto na CF. Outrossim, há de se deixar claro que inexiste no ordenamento jurídico um adicional cuja competência para instituição não seja do mesmo ente competente para instituir a obrigação principal.

O que essa PEC propõe, para além de sua inadequação sob a ótica de legitimidade (afinal, o que se deveria buscar, em tempos de crise, era o "enxugamento" da máquina administrativa pari passu à uma diminuição da carga tributária), é uma subversão do sistema de federalismo fiscal, que outorgou a riqueza proveniente de heranças e doações aos Estados e não à União.

Não bastasse tal subversão, cumpre destacar que a proposta tal como formulada é obscura em pontos cruciais. Não se esclarece, por exemplo, qual seria o "fato gerador" de referida exação, ou o que seria considerado "grandes heranças e doações".

Atualmente a PEC 96/15 encontra-se na CCJ. No entanto, posto não ser novidade as aprovações relâmpagos de novos tributos, vale acompanhar o andamento da proposta a fim de eventualmente tomar-se as medidas cabíveis ante a criação de um novo tributo inconstitucional.
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*Cassius Lobo é advogado tributarista no escritório Küster Machado – Advogados Associados.

*Dayana Uhdre é Procuradora do Estado do Paraná.


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