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Quebra do sigilo médico

A relação médico-paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas.

12/2/2017

Repercutiu e muito pela mídia a notícia do vazamento de uma informação sigilosa a respeito do quadro clínico da paciente Marisa Letícia Lula da Silva, obtida junto ao seu prontuário médico, revelando a gravidade do seu estado de saúde, fato até então não comunicado pelos boletins médicos. O canal utilizado foi o compartilhamento via WhatsApp e se alastrou posteriormente com a espetacular velocidade da rede social.

A relação médico-paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas. Tamanho é o estreitamento da relação que todas as providências, procedimentos e informações relacionadas com o paciente, devem acompanhar o documento chamado prontuário médico, de característica sigilosa e científica, pelo qual o paciente é seguido pari passu pela equipe multiprofissional que o assiste. Na definição ofertada pelo Conselho Federal de Medicina, “o prontuário médico é documento valioso para o paciente, para o médico que o assiste e para as instituições de saúde, bem como para o ensino, a pesquisa e os serviços públicos de saúde, além de instrumento de defesa legal” (Resolução CFM nº 1.638/2002).

Assim, na realidade, o paciente passa a ser o proprietário dos dados constantes no prontuário e sua guarda fica sob a responsabilidade do médico ou da instituição de saúde, não podendo repassá-los para terceiros, salvo se por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente ou representante legal. A finalidade é exclusivamente para preservar a vida privada e a intimidade do paciente, expressões blindadas pela Constituição Federal e Código Civil para resguardar o foro íntimo como o asilo inviolável do cidadão, nos moldes do peace of mind do direito americano.

Ora, ocorrendo a divulgação do segredo, sem justificativa legal, quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada do paciente ou familiares. Tamanha é a importância do sigilo médico que, mesmo que o fato seja de conhecimento público ou até mesmo que o paciente tenha falecido, permanece vivo para sempre.

É necessário, no entanto, que o médico tenha conhecimento do fato em razão de sua profissão, quer dizer, que tenha atendido ou prestado qualquer tipo de assistência ou realizado exames no paciente. Se, por ventura, tomou conhecimento quando não se encontrava nesta condição, evidente que fica descaracterizada a infração ética prevista no artigo73 do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1931/2009). Mesmo que se trata de pessoa conhecida publicamente, como era o caso da paciente Marisa Letícia, a divulgação do quadro médico feita por boletins, somente poderia ocorrer se os familiares autorizassem e na medida da autorização. O vazamento da notícia causa a quebra de confiança nos profissionais da área de saúde e proporciona toda sorte de comentários a respeito do real estado de saúde da paciente.

O núcleo do tipo do Código de Deontologia Médica vem sintetizado no verbo revelar, dando a entender que basta a divulgação, a propagação, por qualquer meio que seja idôneo para levar ao conhecimento de terceiros um fato sigiloso, de conhecimento restrito às pessoas encarregadas da prestação do serviço de saúde. O fato de ter sido revelado por meio de uma rede particular não descaracteriza a potencialidade de atingir um imensurável universo de pessoas.

Já no enfoque do Código Penal, penal, em seu artigo 154, erigiu à categoria de crime a revelação, sem justa causa, de segredo de que o agente tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. É importante observar que a definição de segredo no Código Penal corresponde a todo fato cuja divulgação a terceiro possa produzir um dano para seu titular. A intenção da lei é fazer prevalecer a confiança pública depositada no profissional, justamente para que seu serviço possa ser executado com toda segurança, presteza, sem qualquer atropelo coativo. Assim, com a divulgação do segredo quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada do paciente acarretando não só a inconveniente persecução policial, que somente poderá ser iniciada mediante representação da vítima ou de seu representante legal, por se tratar de ação penal pública condicionada.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP. Mestre em direito público e pós-doutorado em ciências da saúde. Reitor da Unorp e Advogado.

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