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Tutela coletiva dos direitos individuais - Brasil e Portugal

Em razão da massificação de culturas e da necessidade cada vez maior de uma harmonização dos regimes jurídicos globais, há uma tendência mundial de uniformização dos procedimentos, que se manifestará através de adoção de normas comunitárias.

2/2/2017

A tutela dos interesses coletivos está ligada diretamente a uma ideia de que todos os cidadãos podem ter suas pretensões de direito analisadas pelo Poder Judiciário, sob a égide do princípio do livre acesso à justiça, que, por sua vez, necessita de eficácia e rapidez para combater a litigiosidade galopante que toma conta dos tribunais.

Na verdade, a necessidade de processos supra-individuais não é nova, desde ontem ocorrem lesões a direitos, que atingem coletividades, grupos ou certa quantidade de indivíduos, que poderiam fazer valer seus direitos de modo coletivo prevalecendo a eficácia jurisdicional. A propósito, a questão acerca dos interesses coletivos passou a ser tratada historicamente por normas de direito material, contudo, a discussão de como se efetivariam tais direitos e quais vias processuais seriam adequadas a defender esse tipo de interesses é contemporânea.

No Brasil, a defesa dos interesses coletivos tem fundamento na lei 7.347/85 – lei da ação civil pública, destinada à proteção dos interesses difusos e coletivos ligados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, dentre outros bens e direitos elencados no seu artigo 1º.

Posteriormente, a referida lei foi ratificada e reforçada pela CRFB de 1988 que dispôs sobre a legitimidade ativa das associações (art. 5º, XXI) e dos sindicatos (art. 8º, III), criou o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX ), ampliou a legitimação para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade (art. 103), atribuiu status constitucional à ação civil pública para a defesa de qualquer interesse difuso e coletivo, conferindo legitimidade ao Ministério Público (art; 129,III), sem prejuízo da legitimidade concorrente de terceiros (Art. 129, §1º).

O CDC (lei 8.078/90), por sua vez, desenvolveu consideravelmente a matéria, introduzindo importantes modificações à lei 7.347/85 (lei de ação civil pública), ampliando a abrangência da ação civil pública para "qualquer outro interesse difuso e coletivo".

Além disso, estipulou expressamente a aplicação do Título III do CDC às ações civis públicas da lei 7.347/85 (no que for cabível), estendendo a proteção coletiva aos interesses individuais homogêneos (art. 117º do CDC). Criou-se, assim, o denominado microssistema das ações coletivas.

Contudo, tal microssistema pode não atingir seu ideal quando, por exemplo, ainda se discute na doutrina e na jurisprudência questões formais acerca da possibilidade de utilização indistinta da Ação Civil Pública para tutela de direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos. Tal discussão é reflexo do desalinho processual no debate da defesa da tutela coletiva dos direitos indisponíveis em detrimento da tutela coletiva dos direitos disponíveis e ainda, por falta de interpretação teleológica, restringiu-se a utilização da Ação Civil Pública para tutela de direitos divisíveis.

Ocorre que, tal entendimento submete-se a verdadeiro retrocesso processual, tendo em vista que o CDC e a lei de ação civil pública são normas complementares integrantes do sistema processual coletivo e não devem ser interpretadas de forma restritiva, sob pena de comprometer a própria efetividade da tutela coletiva de direitos.

Nessa mesma linha, a utilização da tutela coletiva para proteção dos interesses individuais homogêneos é de extrema relevância, como destaca Sérgio Cruz Arenhart1 :

"A defesa coletiva de direitos individuais atende aos ditames da economia processual; representa medida necessária para desafogar o Poder Judiciário, para que possa cumprir com qualidade e em tempo hábil as suas funções; permite e amplia o acesso à justiça, principalmente para os conflitos em que o valor diminuto do benefício pretendido significa manifesto desestímulo para a formulação da demanda; e salvaguarda o princípio da igualdade da lei, ao resolver molecularmente as causas denominadas repetitivas, que estariam fadadas a julgamentos de teor variado, se apreciadas de modo singular"

Como dito, a lei da ação civil pública remete a aplicação, no que couber, dos dispositivos do CDC que, por sua vez, prevê a tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos, assim entendidos como aqueles que decorrem de origem comum.

Por outro lado, é sabido que os direitos individuais homogêneos são divisíveis e disponíveis, logo, por conclusão lógica, se o próprio dispositivo legal que dispõe sobre a ação civil pública prevê a aplicação da hipótese prevista no art. 81, III, do CDC, não se pode admitir restrições para tutela coletiva desses interesses em sede da via processual prevista na lei 7.347/85.

Além disso, no caso da Ação Civil Pública, a indivisibilidade ou não do direito torna-se irrelevante para efeitos processuais, uma vez que em caso de procedência da ação, a sentença produzirá efeitos erga omnes com intuito de obstar a propositura de outra ação civil coletiva, beneficiando todo o grupo ou a classe substituída, seja o direito difuso, coletivo ou individual homogêneo.

Ainda nessa linha, a doutrina contemporânea já considera que o direito coletivo nada mais é do que a soma dos direitos individuais homogêneos, superando essa discussão acerca da indivisibilidade como método determinante na definição da via processual adequada para a tutela de direitos supra-individuais.

Vale destacar, que a Ação Civil Pública para tutela de direitos individuais homogêneos é defendida quando na presença de relevância social objetiva do bem jurídico tutelado. É o caso do Ministério Público, na promoção da Ação Civil Pública prevista na lei 7.913/89, que tutela os direitos individuais homogêneos dos titulares de valores mobiliários e investidores do mercado.

Os interesses dos investidores de mercados de capitais por serem divisíveis e decorrentes de origem comum são direitos individuais homogêneos, e em razão da relevância socioeconômica da matéria são tutelados em sede de Ação Civil Pública, com legitimidade do Ministério Público, conforme prevê a lei mencionada acima.

Legitimidade esta que não é exclusiva, tendo em vista que o art. 1º da lei 7.913/89 não pode ser interpretado de forma restritiva e deve, por aplicação extensiva do art. 5º da lei 7.347/85 (o recurso a esse diploma é expressamente admitido pelo art. 3º da lei 7.913/89), ser a ação proposta por uma das pessoas relacionadas no citado.

Nesse caso, com o reconhecimento da legitimidade concorrente de terceiros para propositura da Ação Civil Pública prevista na lei 7.913/89, o Ministério Público deverá intervir no feito como custus legis (art. 5º, § 1º, da lei 7.347/85).

Já no outro lado do Oceano Atlântico, Portugal, de forma mais simples e objetiva, positivou a tutela dos direitos coletivos. Nesse País, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, bem como as associações e fundações, que incluam entre os seus objetivos estatutários a defesa dos seus interesses e direitos difusos, podem propor a chamada "acção popular" (art. 52, nº3 da Constituição de Portugal).

Por sua vez, a ação popular é regulamentada pela lei 83/95 e a legitimidade ativa é aferida através de elementos exclusivamente objetivos: basta ser supra-individual o interesse que se pretenda tutelar. Ou seja, a identificação subjetiva do autor com o direito material questionado é elemento acidental e não fundamental.

Ademais, o artigo 1º da referida lei abrange não só os interesses difusos como ainda inclui os interesses individuais homogêneos.

Outra questão relevante no sistema Português, diz respeito ao art. 14 da lei de ação popular, que prevê a representação do autor por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa de todos os titulares dos direitos que não tenham exercido o direito de "auto-exclusão".

Nota-se ainda, que a lei portuguesa não distingue as categorias dos interesses supra-individuais, valorizando a previsão constitucional do direito de qualquer cidadão propor a ação popular e evitando o desalinho processual existente no Brasil.

Porém, vale ressaltar, que legislação portuguesa reconhece que os titulares dos direitos podem ou não serem identificados, o que influencia na distinção quanto à modalidade da indenização, sendo ela fixada globalmente quando se tratar de titulares não individualmente identificados (art. 22º.2 da lei da ação popular), ou dividida entre os titulares de interesses identificados, nos termos da responsabilidade civil (art. 22º.3 da lei da ação popular).

Assim, pode-se afirmar que a lei portuguesa reconhece a existência de interesses indivisíveis e divisíveis quanto ao seu objeto, no entanto, de forma mais inteligente, em ambos os casos, a tutela do direito em sede de ação popular não é restringida.

Ademais, em defesa dos interesses individuais homogêneos ou coletivos dos investidores de valores mobiliários, o art. 31.º do Código dos Valores Mobiliários Português confere legitimidade para propositura de uma ação popular, aos investidores não institucionais, às associações de defesa dos investidores e às fundações que tenham, por objeto, a proteção dos investidores de instrumentos financeiros.

Desse modo, assim como prevê a lei brasileira 7.913/89, Portugal se preocupou em tutelar os direitos individuais ou coletivos dos investidores de valores mobiliários em sede de ação popular, em razão da sua relevância socioeconômica.

Pode-se concluir que a tutela coletiva em Portugal possui traços próprios, sendo o sistema Brasileiro, embora mais desenvolvido, muito mais complexo.

Talvez a tutela coletiva ainda não tenha despertado o devido interesse na doutrina lusa, ao contrário do que ocorre no Brasil, não há em Portugal literatura farta que se debruce no tema. Todavia, em razão da massificação de culturas e da necessidade cada vez maior de uma harmonização dos regimes jurídicos globais, há uma tendência mundial de uniformização dos procedimentos, que se manifestará através de adoção de normas comunitárias.

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1. ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela de direitos individuais homogêneos e as demandas ressarcitórias em pecúnia. Direito processual coletivo e o anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.216.

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*Luigi Terlizzi é advogado especialista em Direito Tributário. Mestrando em Direito das Empresas pelo Instituto Universitário de Lisboa. Membro da Associação Fiscal Portuguesa - AFP e da Internacional Fiscal Association - IFA.

 

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