Pena de morte, um tema para ser discutido agora
Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*
E por aí vai. Já nem me dou ao trabalho de interromper os ataques e contra-argumentar porque a explicação seria longa, e curta a paciência do ouvinte. Pessoas apaixonadas por suas opiniões tornam-se surdas a qualquer argumento. Enquanto você está falando percebe-se que elas estão apenas preparando novos argumentos. É a surdez ideológica, mais poderosa que a surdez física porque, nesta, o surdo pelo menos esforça-se para entender.
Não obstante o conteúdo sentimental e apaixonado da objeção de meus interlocutores — continuam meus amigos, afinal, “todo mundo tem direito a cinco minutos de tolice” — prossigo sugerindo que o Brasil poderia experimentar, por uns tempos, esse instrumento de intimidação máxima — a pena de morte —, contornando, com criatividade hermenêutica e alteração legislativa, a distorcidamente abundante “petrificação constitucional”.
Quando da discussão da Constituição de 1988 os representantes do povo, eufóricos, embriagados com a sensação recente de liberdade política, imaginaram que o que era “bom” naquele momento seria bom até o final dos tempos. Pensavam, parece, que seria a Constituição do Milênio. E se ela tinha um cheiro de eternidade, “vamos enchê-la de direitos e garantidas individuais; é melhor sobrar do que faltar”. Há quem sustente, com certa base — art. 228 da CF —, que a simples redução da menoridade penal de 18 para 16 anos seria insusceptível de reforma constitucional, porque “cláusulas pétreas” não são apenas aquelas explicitamente mencionadas como tais na Carta Magna. E “cláusulas pétreas” não são suscetíveis de emenda constitucional. Para alterá-las seria preciso pelo menos uma “revoluçãozinha de brincadeira”, com disparos de canhões sem bala e simulação de combates, seguindo-se a convocação de nova Assembléia Constituinte. Simples reforma, não.
As “cláusulas pétreas” constitucionais condenam-se pelo próprio nome. Pedras podem ser úteis, se vistas apenas pela sua imobilidade e dureza. Boas para calçadas, muros e edifícios. Ruins, ou de utilização muito limitada, quando utilizadas pelos seres vivos. Servem, nos vertebrados, apenas como esqueletos de sustentação. Em galinhas, localizam-se na moela, triturando, fazendo o papel de dentes. Fora disso são daninhas, como as pedras nos rins, bexiga e vesícula. Nos moluscos, servem apenas como cascas, ou conchas para carregar nas costas.
Como as sociedades humanas assemelham-se a organismos vivos, em constante adaptação ao meio ambiente, é aconselhável rigidez mínima. Daí a durabilidade da constituição americana — lá vem esse país de novo... “Esqueletos” e “cascas”, apenas aqueles estritamente necessários para evitar o desmoronamento do organismo social: separação de poderes, direito de defesa, proteção ao direito das minorias, eleições periódicas, federação e mais uns poucos direitos sem os quais o Estado de Direito ruiria. Como já disse alguém, a “cláusula pétrea” imobiliza as gerações seguintes. Tira-lhes a liberdade, torna-as escravas de gerações anteriores que pensavam saber tudo, sem saber. Condenam-se as ditaduras mas ninguém percebe que a um número excessivo de “cláusulas pétreas” é uma forma sutil de ditadura.
Os recentes atentados do PCC em São Paulo, matando policiais, queimando ônibus e impondo o fechamento do comércio, reforçam minha convicção, já antiga, de que o medo da prisão, em certos casos, é remédio penal que esgotou o prazo de validade.
A principal utilidade da pena é inspirar medo. E se o criminoso é um pobre-diabo, analfabeto, aproveitar sua presença no cárcere para que tenha o estudo que não teve antes — quase sempre por falha do Estado. Ao sair da prisão ele teria que estar, interiormente — no caráter e no intelecto — melhor do que estava quando entrou. Mas teria também que estar com receio de para ela voltar, compartilhando o medo normal de todo cidadão de ir para a cadeia. Ela é um vexame moral e um atraso de vida.
Quando se trata, porém, de chefões do crime organizado — geralmente o tráfico de drogas, o mais rendoso — condenados a penas de várias décadas, o medo de ser punido por novas infrações desapareceu. Quem já está condenado a mais de cem anos de cadeia tem medo de receber nova pena porque ordenou a morte de alguém, dentro ou fora da prisão? Não tem. Não há mais por que temer a legislação penal. Ele não tem nada a perder, e o revide dos parentes ou amigos da vítima não o alcança porque está protegido pelos próprios muros que o encarceram.
A pena de morte constitui verdadeiro tabu na imprensa bem comportada do Brasil. Experimente, o leitor, enviar a um jornal de grande reputação um artigo a favor da instituição da pena máxima. Há uma quase certeza de que não será publicado. Não é “politicamente correto”. A grande imprensa, vacinada contra qualquer tipo de censura, aceita discutir todos os temas — todos! —, mesmo os mais aberrantes. Com uma exceção: a pena de morte. A censura, aí, é interna, talvez inconsciente. — “Vale a pena discutir tal ignorância?” — parece indagar-se o diretor do jornal.
Qual a razão dessa repulsa moral, intelectual e quase física à pena capital?
A aversão foi introduzida na nossa alma pelo sentido da visão. Pouco a ver com a lógica fria, a justiça, a eficácia ou ineficácia desse castigo na diminuição da criminalidade. Os fundamentos racionais dessa aversão só são elaborados depois da emoção preparar o terreno.
Essa reação está, a nosso ver, associada à lembranças de cenas fortes de barbarismos, assistidas no cinema ou televisão, ligadas à pena capital: cabeças separadas pela lâmina da guilhotina; o enforcado estrebuchando na ponta da corda; a eletricidade literalmente fritando — diz-se que fica no ar um odor de carne assada — o condenado, que se sacode, impotente, na cadeira elétrica — os olhos vendados por uma tira de couro para que os globos oculares não saltem das órbitas; o réu chinês — duplamente amarelo, pela raça e pelo medo —, ajoelhado em um estádio esportivo lotado, esperando, indefeso, o tiro na nuca, talvez meditando sobre a ironia de sua família ter ainda que pagar o preço da bala como “custas processuais”; o condenado, amarrado a uma cadeira, na câmara de gás, retendo ao máximo a respiração porque se respirar, morre! Isso, sem mencionar os métodos mais antigos e deliberadamente dolorosos, como a crucificação, a inominável empalação, a quebra dos ossos dos membros, técnicas doentias que importavam em vários dias de suplício, aguardando a abençoada morte. É quase incompreensível, hoje, que a humanidade tenha chegado a tais requintes de crueldade, tentando, somente pelo horror, afastar o homem do crime.
As execuções, fotografadas ou filmadas, impressionavam terrivelmente. Amoldavam a opinião pública contra a pena de morte, o que é um sinal, muito bom, de que a humanidade, em sua vasta maioria, mantém vivo o sentimento da compaixão. Se, porém, — é triste mencionar, porque revela a superficialidade da reação — imediatamente antes de exibida a execução do réu pela televisão houvesse uma reconstituição, por artistas, da cena da morte da vítima — sendo ela, por exemplo, estuprada, esfaqueada, assassinada a marteladas, queimada com cigarros, humilhada antes do tiro no rosto, ou cenas semelhantes — principalmente sendo a vítima criança, velha ou indefesa —, as pessoas aprovariam, na hora, igualmente emocionadas, a cena de execução do condenado. Alguns até achariam que o castigo era pouco, porque rápido demais, em comparação com a mais prolongada agonia de sua vítima. Em suma, a imagem das vítimas, apavoradas e sangrando, mudaria completamente o enfoque moral no encarar a pena capital. Ocorre que as televisões só exibiam a cena da execução...
Não é de admirar, portanto, que a humanidade, exigindo respeito à sua elogiável sensibilidade, se voltasse para o extremo oposto à “barbárie”, abolindo a pena de morte, fosse qual fosse a forma de execução. — “Não!” — diziam. — “O homem que errou precisa é ser recuperado!”
Acontece que a cadeia acabou desmoralizada como instituição. Se curta demais, gera a idéia de impunidade. Se muito longa, é inútil para fins de “recuperação”, porque o condenado só é libertado quando velho, sem condições de trabalhar. Ele teria sido longamente “recuperado” apenas para gozar depois uma mísera aposentadoria? Se confortável demais — com celas individuais limpas, esportes, boa comida, televisão, estudo e “visitas íntimas” — é considerada “mordomia”. O pobre trabalhador, ganhando lá fora um mísero salário-mínimo, comendo talvez pior que o preso, pensa que sua honestidade só está dando prejuízo. Se superlotadas, as prisões, tornam-se a versão terrena do inferno de Dante. Se tratados os presos com muita delicadeza — dizem os funcionários dos presídios — eles tomam conta do local, passam a mandar e não aceitam um “não” como resposta. Se contrariados pelas autoridades, revoltam-se, queimam colchões, arquivos e carcereiros. Isso quando não voltam aos tempos da guilhotina, agora manual, exibindo cabeças decapitadas de colegas. Se o condenado é idoso e cumpre prisão domiciliar a reação popular é a de que “com os ricos é outra conversa, seus advogados sempre dão um jeitinho...”
Se a crítica às prisões já era acerba, porque não “recuperam” — o que é isso, recuperar? Significaria apenas arrependimento? Se assim for, certos homicidas nem deveriam ser presos porque arrependem-se no ato e, arrependidos, não há mais o que “recuperar” — a situação tornou-se muito pior com o advento e difusão do telefone celular. Com este, o condenado pode se comunicar com pessoas além dos muros carcerários e continuar sua atividade criminosa em nível profissional. De certo modo, a prisão, no seu caso, torna-se uma vantagem, porque a cadeia oferece proteção contra ataques de grupos criminosos rivais. Ele pode mandar matar seus concorrentes, ou policiais, e está protegido dos ataques deles. Um dos chefões disse isso por esses dias, referindo-se à matança de policiais, sem medo de se tornar vítima.
Pensou-se, em passado recente, em bloquear o uso dos celulares que entram clandestinamente nos presídios. Ocorre que alguém — alguém... — alguma pessoa física, de carne e osso, está encarregada de ligar e desligar o aparelho que controla o bloqueio e desbloqueio desse aparelho. E esse “alguém” — que ganha muito pouco — ou pode cair na tentação de receber um presente financeiramente “irrecusável” ou pode ser seriamente ameaçado de perder a vida ou se tornar viúvo precocemente; ou pai de futuros órfãos, caso não permita o desbloqueio durante, digamos, meia hora durante a madrugada. Sempre haverá meios do chefe do crime organizado localizar quem é a pessoa que cuida do bloqueio, esteja ela dentro ou fora da prisão.
Tal situação dá uma força enorme ao chefe do crime organizado. E a ausência de qualquer medo faz com que ele se sinta um deus. Imagino o quanto fica inflado o ego de um “chefão” saber o medo que inspira às autoridades encarregadas de combatê-lo. Se conduzido de um presídio para outro, sua escolta terá mais viaturas que aquela destinada a proteger chefes de estado. Uma simples frase — “Mate Fulano!” — torna-se realidade. Enfim, o medo da pena, do castigo, desaparece.
Impedir totalmente o ingresso de celulares é difícil. Todo mundo que entra em presídio teria que ser exaustivamente examinado, até nas partes íntimas, inclusive funcionários e advogados, o que gera problemas.
Talvez a única solução para inibir os totalmente desinibidos criminosos está em consultar a população sobre a aplicação da pena de morte quando o autor intelectual, mandante do crime, já está preso e condenado. Embora se diga que a pena de morte não intimida, isso não parece verdade, porque mesmo os “chefões” condenados não querem morrer. A luta dos inquilinos do corredor da morte nos EUA é geralmente tenaz. Gera até bons escritores. Quase todos pedem prorrogações, exames e mais exames, mesmo quando a morte vem na forma de injeção. Morte, por sinal, invejada — quando com injeção —por qualquer canceroso em fase terminal. Primeiro o sujeito dorme, depois morre. Morre dormindo. Se o corpo, eventualmente, reage, é só o corpo. O dono dele ainda está dormindo.
Não vamos transcrever aqui a batalha das estatísticas sobre aumento ou diminuição da criminalidade após a adoção, ou abolição, da pena de morte. Um humorista já definiu que estatístico é aquele homem que morre afogado em um rio que tem, em média, meio metro de profundidade. E um economista afirmou que os números, quando devidamente torturados, “confessam” qualquer coisa. Fiquemos com a observação observação comum de que o homem tem medo de morrer.
Deixemos a solução para um plebiscito. Sem a desculpa de que a emoção “viciaria” o julgamento popular. A se impedir a intervenção da emoção nas decisões populares, as próprias eleições majoritárias deveriam ser abolidas por algumas décadas, pois os candidatos ainda são escolhidos muito mais pela emoção — “carisma”, simpatia pessoal, aparência, “jeitão”, entusiasmo — do que pela análise fria de sua capacidade e programa de governo.
Como o presente texto foi redigido para ser publicado na Internet, não convém que seja extenso demais. Fiquemos por aqui. Li, hoje, que o Congresso elaborou, às pressas, várias modificações na Lei das Execuções Penais, “endurecendo” o tratamento dos líderes da criminalidade. Espero que dê certo e que torne dispensável um plebiscito sobre a pena de morte. Temo, porém, que será impossível evitar, de todo, no médio e longo prazo, que os reclusos com real poder de mando deixem de matar, “com controle remoto”, aqueles que os afrontam.
A tecnologia muda tudo. Na Itália, a Máfia já matou “via computador”. Querendo eliminar o irmão de um ex-mafioso “dedo duro”, “pentiti” — porque o ”traidor” estava longe, com nova identidade — a Máfia sentiu-se frustrada ao saber que a vítima, embora baleada várias vezes, ainda estava viva, na UTI de um hospital. Como completar o “serviço”? Fácil: contratou um “hacker”, na Suíça, que conseguiu penetrar no sistema de computação do hospital e chegou até os aparelhos que mantinham o paciente na UTI. Desligou os aparelhos e matou o cidadão. Tecnologia.
Não faço questão da instituição da pena de morte no nosso país, se se conseguir deter o império do crime organizado. Torço para que as recentes medidas produzam bons resultados. O ideal é que a mera cogitação sobre a pena capital se torne dispensável, mas não vejo nenhum obstáculo incontornável à sua adoção no Brasil, se não houver outro remédio. Se a grande maioria a desejar, será o cúmulo do amor à teoria impedir que a vontade geral prevaleça. Ou que tenhamos que simular uma revolução para convocar uma nova Assembléia Constituinte e mudar um único artigo da Constituição Federal.
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* Escritor, Desembargador aponsetado e Membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo
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