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A ação do PCC e a questão social à deriva!

Há muito venho tentando compreender como um país de extremas desigualdades estrutura-se sem uma verdadeira tensão social. Desde a época em que a legislação social foi implementada no Brasil, procura-se dizer que no Brasil não há uma questão social, pois as classes sociais convivem harmonicamente.

19/5/2006

 

A ação do PCC e a questão social à deriva !

 

Jorge Luiz Souto Maior*

 

Há muito venho tentando compreender como um país de extremas desigualdades estrutura-se sem uma verdadeira tensão social. Desde a época em que a legislação social foi implementada no Brasil, procura-se dizer que no Brasil não há uma questão social, pois as classes sociais convivem harmonicamente. Muitos, ademais, usaram esta visão para dizer que foi um equívoco estabelecer direitos trabalhistas, pois isto implicaria uma forma de incentivar um conflito onde de fato ele não existia. Claro, tudo isto era uma visão distorcida da realidade, comprometida, ademais, com a produção do resultado de manter uma exploração capitalista sem o mínimo de responsabilidade social. Além disso, um movimento reivindicatório por parte dos trabalhadores havia. Mas, deve-se reconhecer, não era assim tão organizado a ponto de poder gerar, por si só, uma ameaça ao sistema político e econômico. Isto, por óbvio, não pode se constituir argumento para, por outro lado, negar a importância da legislação social, como sendo ela a causadora da falta de uma maior consciência de classe entre os trabalhadores. Equivocam-se, portanto, tanto os que disseram que a legislação social incentivou um conflito onde não existia, quanto aqueles que a acusam de evitar a evolução da consciência de classe no Brasil. O papel do direito social é suprimir a injustiça. Reconhecendo-se que uma dada situação fática gera injustiça não há como possa o direito social ficar alheio à situação.

 

De todo modo, mesmo não desconsiderando a importância do movimento sindical havido nos idos de 80, no ABC paulista, sob o comando do atual Presidente da República, e a greve dos petroleiros em 94, o fato é que um movimento social organizado de caráter estrutural nunca se viu no Brasil. Mesmo a abolição, que foi precedida de revoltas, com a formação de quilombos, não se estruturou na forma de uma criação de uma sociedade economicamente mais justa. A abolição foi parte de um projeto da classe média em formação, que, em seguida, na instauração da República, deixou de lado os ex-escravos, e estruturou um poder de cunho liberal aliado à própria classe que detinha o poder econômico: os ex-senhores de escravos.

 

Também as reações de algumas classes de trabalhadores, na busca de maiores salários e melhores condições de trabalho, não se constituíram uma tentativa organizada de reestruturação do modelo de sociedade. A injustiça social provocada por razões fincadas no modo como o Estado brasileiro se constituiu nunca foi alvo de uma verdadeira indignação. A condução do PT ao poder representou a esperança de que algo neste sentido poderia haver, mas, sem entrar na discussão das razões, o fato é que isto acabou não ocorrendo.

 

Claro, a qualquer pessoa que se dê ao trabalho de estudar o direito social, o problema da injustiça social se põe como proposição necessária. Busca-se, por meio do direito, corrigir a realidade, mas esbarra-se sempre nas amarras burocráticas criadas pelo próprio sistema para impedir uma “revolução” das estruturas por meio do direito. Embora não seja irrelevante o efeito que se possa atingir com a imposição do direito social, o fato é que, diante das amarras criadas pelo sistema, a eficácia do próprio direito e de sua capacidade de mudança depende muito da consciência das classes às quais o direito social se volta: de não aceitarem as condições indignas que a estrutura econômica lhes impõe; de reagirem contra a opressão; de lutarem, enfim, por seus direitos. Mas, há nisto dois obstáculos de ordem cultural quase intransponíveis, primeiro o da informação completa sobre os direitos e, segundo, e mais relevante, o de que estas pessoas precisam acreditar no Judiciário, que, no entanto, faz parte da própria estrutura que os oprime.

 

Além disso, as experiências de insucessos nas ações intentadas, provocadas por diversos fatores que não vale a pena explorar, acabam causando uma sensação (injustificada, ou não, pouco importa), de que a Justiça é para ricos (ou, pior, de que só pobre vai para a cadeia).

 

Os próprios movimentos de trabalhadores são atingidos pela retórica de que tudo pode ser pior, diante da malsinada globalização econômica. O fatalismo impõe uma postura de conformismo com a situação atual.

 

Tem-se, pois, uma realidade marcada pela notória injustiça social, sem que haja, nesta mesma realidade, algum tipo de tensão, que pudesse constituir a força necessária para a sua mudança.

 

Assistindo as ações do PCC, iniciadas na semana passada, pensei: eis o início de uma revolta popular. Ledo engano.

 

Embora, claro, no fundo de tudo esteja a questão social (e se pensarmos em como evitar a ocorrência desses fatos, teremos que pensar na diminuição da injustiça social e não na ampliação da truculência da segurança pública, pois não há como prender 4/5 da população e deixar 1/5 solto), o fato é que a leitura dos eventos ocorridos nos conduz a uma conclusão de certo modo até surpreendente: o crime organizado não lutava contra o sistema. Não lhe impulsiona um projeto de mudança da sociedade. Na sua base não está uma indignação contra a injustiça social. No fundo, o que o crime organizado almeja é, simplesmente, estabelecer uma relação de simetria com o Estado. Mostrar-se forte o bastante para que o Estado o suporte, sob pena de sucumbir com ele. Isto porque o crime organizado se alimenta do próprio sistema. Bem ou mal, conduzidos por falta de opção, frutos de um desajuste sócio-econômico criado pela própria elite dominante, os que foram “marginalizados” da sociedade encontraram no narcotráfico a fonte de sua subsistência e também uma estrutura paralela de poder, que, paradoxalmente, se alimenta da própria elite e, mais ainda, da própria falência moral e ética do Estado e que, além disso, se organiza por meio de relações hierarquizadas, fincadas na exploração de uns sobre outros.

 

Neste sentido, quanto mais a corrupção se alastra pelas artérias do Estado, quanto mais a sociedade se desacredita da existência de um projeto de país, quanto mais pessoas se inserem na lógica de uma desesperança, quanto mais as estruturas do Estado e do direito estão descomprometidas com a solução da questão social, quanto mais um projeto econômico neoliberal alija pessoas do seio da sociedade, mais o narco-tráfico alimenta sua razão de ser, reproduzindo-se de forma cada vez mais organizada e, conseqüentemente, cada vez mais poderosa.

 

Todos os que se indignam com a injustiça social e que têm alguma ilusão quanto à solução da questão social no Brasil assistem atônitos a tudo isto. As relações de poder estão bem definidas: de um lado, um Estado, que se estruturou no correr de séculos (que mesmo um governo Lula não foi capaz de mudar), para sustentação dos interesses de uma classe econômica dominante (que faz parte, desse modo, da mesma estrutura de poder), de outro, o crime organizado. Ambos, no entanto, não querem a mudança do sistema e não têm como preocupação central acabar com a injustiça social no Brasil.

 

A sociedade civil, composta do que resta (uma classe média, que almeja ser um dia classe dominante, uma classe trabalhadora, que luta para manter seus empregos, uma classe de excluídos, acomodados com a própria sorte), não tem organização ou projeto.

 

Aliás, diante da verificação do que realmente ocorre, não há nesses seguimentos sociais sequer uma noção de classe. Impulsionados pelo medo da crise econômica, as pessoas, como é natural diga-se de passagem (não havendo aqui, portanto, nenhuma avaliação de ordem moral), voltam-se a projetos individuais.

 

Neste ponto uma indagação se impõe: queremos mudar esta realidade? Eis uma questão fundamental a ser respondida. Pois se não queremos, basta que continuemos assistindo tudo pela televisão, ao mesmo tempo em que nos trancafiamos em condomínios fechados, carros blindados e não deixamos nossos filhos andar pelas ruas, torcendo para que eles um dia não sejam vítimas da droga.

 

Mas, se queremos, é importante, primeiro, reconhecer que a idéia de maior repressão, de “truculência” contra a criminalidade, só faz aumentar ódios e, pior, não ataca a causa do problema, o qual, sem um enfrentamento verdadeiro, vai apenas, como demonstrado, continuar se reproduzindo.

 

Em segundo lugar, é preciso reconhecer que não há movimento social capaz de impulsionar esta mudança. Ou seja, não há como esperar uma revolta popular, pois esta não virá. É preciso, então, tomar o pulso da história. Ainda que por razões que possam ser diversas, uma parte da população, instruída e bem alimentada, precisa voltar-se contra o sistema como um todo, exigindo a reformulação completa do Estado e da própria sociedade brasileira, buscando dentre outras iniciativas: ensino público de qualidade; preservação e efetivação dos direitos sociais; tributação de grandes fortunas; tributação da especulação financeira; defesa da indústria nacional; autêntica e verdadeira reforma agrária; melhoria da estrutura do Judiciário; punição dos corruptos e corruptores; reforma do sistema prisional brasileiro, mantendo-se inabalável a defesa dos direitos humanos; política de integração social; democratização das instituições que estruturam a sociedade etc.

 

Por fim, necessário ter a consciência de que esses efeitos não se produzem nos debates acadêmicos. A discussão teórica da reformulação da sociedade brasileira tem sido apenas alimento da abstração da intelectualidade e fonte de renda para muitos. É preciso que se apóie em um movimento verdadeiramente social. Não podemos, como vem sendo apregoado, continuar trabalhando como se nada estivesse acontecendo (neste momento muitos “suspeitos” estão sendo mortos, para o acalanto da sociedade). É preciso colocar a questão social na bandeira de uma ação concreta, de um movimento que ganhe, literalmente, as ruas.

 

Reconheço, evidentemente, as dificuldades disso. Não tenho, ademais, a fórmula mágica para isto e nem me considero apto a encabeçar tal movimento. Fica aqui, de todo modo, como sugestão às organizações sociais (associações e instituições de todos os níveis), que se unam para a formação deste movimento. Só não se esqueçam de me dizer dia e hora em que terá início, para que eu possa estar lá, engrossando as fileiras de uma multidão que constituirá a verdadeira força de mudança dessa realidade.

 

Mas, se isto for só uma ilusão, no mínimo, não se deve recusar, no âmbito do alcance das iniciativas de cada um, a fazer tudo o que se possa, para combater a injustiça do caso concreto. Não se omitir diante da injustiça, pelo menos para os que são ligados ao direito social, já se constitui um grande passo.

 

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Juiz do trabalho, titular da 3a Vara de Jundiaí. Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP

 




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