Nos dias atuais, vive-se, sob o ponto de vista legal, em uma égide normativa pautada por um modelo garantista de direito (GaJ), cuja concepção passa pela ideia nuclear de democracia juridicamente determinada a partir de uma CF. Limites jurídico-constitucionais a poderes, públicos ou privados; teoria da validade material da norma (acompanhado de controle de constitucionalidade, do mesmo calibre); fundamentos político-filosóficos laicos e republicanos são intrínsecos a esse modelo.
Entretanto, cada vez mais o ideal jurídico-democrático garantista vem assolado, face a conjuntura global atual, por um movimento economicista chamado Law and Economics (LaE), desenvolvido na University of Chicago, que pretende gradativamente, e de forma silenciosa, romper com próprios fundamentos do Estado de Direito Contemporâneo, que vão desde a rigidez constitucional, passando pelas garantias individuais, até chegar ao controle material de constitucionalidade. Em relação a este último aspecto, basta ver a confusão espistêmico-teórica que se instaurou no Brasil a partir da vigência da leis 6.882 e 6.898, ambas de 1999, que estabeleceram a modulação dos efeitos das decisões que declaram a inconstitucionalidade de uma lei. Ora, se uma lei é declarada inconstitucional, portanto nula, como podem ser mantidos seus efeitos, inclusive para o futuro? A resposta abarca o óbvio, e está pautada no pragmatismo econômico da decisão, pondo à prova quase um século de estudos acerca do controle de constitucionalidade. Isso para ficar no controle concentrado, somente. Em nova oportunidade será possível tratar dessa questão. A ideia, neste ensaio, é outra.
O movimento LaE se julga sólido epistemologicamente, pleiteia seu fundamento inicial no Utilitarismo do século XIX, mas dele se distancia veementemente, por conta, sobretudo, das reformulações pelas quais passaram as teorias econômicas, a partir dos marginalistas neoclássicos, que de modo gradativo, abandonaram qualquer discurso de bem-estar social geral em prol de conceitos pretensamente neutros, como eficiência econômica e maximização da riqueza.
Por outro lado, o GaJ é a antítese do LaE. O leitor poderá, de imediato, nos questionar: "como antítese, se o garantismo jurídico é uma doutrina penalista (sic.) que pretende abolir o direito penal e, em alguma medida, também, salvaguardar e absolver bandidos (sic.)? Qual relação diretamente antitética existiria entre o LaE e o GaJ?"
Para que tal antítese seja compreendida, antes de mais nada, é pertinente desmistificar a leitura deficitária, proposta, em alguma medida, à brasileira, do garantismo jurídico. Com efeito, é de fundamental importância esclarecer, não somente o equívoco jurídico acadêmico estabelecido acerca do caráter eminentemente penalista do GaJ, porém, e inclusive, a concepção frágil acerca desse caráter desenvolvido no Brasil.
Na verdade, é importante dizer que o garantismo se assume como a outra face do constitucionalismo e, nesse sentido, o fundamento jurídico da democracia constitucional, voltado à efetivação dos direitos fundamentais. O exemplo dessa afirmativa é o objeto da presente análise: expor o garantismo jurídico, a partir do seu modelo de direito, do seu nível teórico e da sua consistência prática, para aponta-lo na direção de uma precisa (ou pretensa) teoria jus-econômica, que vem há muitas décadas, paulatinamente, fragilizando o paradigma do Estado de Direito. Portanto, o GaJ, acima de tudo, por sua força teórico-analítica, bem com pela sua exposição democrático-pragmática, cumpre plenamente este mestiere.
O leitor, insatisfeito, poderá questionar ainda mais, dando um passo adiante em seu raciocínio: "então, qual seria o horizonte de sentido da antítese dos modelos?” Possível vislumbrar-se inúmeros sentidos, mas vamos elencar dois, capazes de se contraporem aos dois amálgamas escolhidos pelo movimento economicista LaE, quais sejam: a eficiência econômica e a maximização da riqueza.
Na perspectiva do GaJ, a eficiência econômica, entendida, grosso modo, como modelo de livre realocação de recursos, não pode ser contraposta, ou adentrar, a valer-se do termo do GaJ, à esfera do indecidível, que vem determinada constitucionalmente. Em outras palavras, a antítese entre GaJ e LaE ocorre na premissa daquele, segundo a qual os direitos fundamentais são inegociáveis pelo fato de haver uma esfera de indecidibilidade que impede a aplicação do princípio da eficiência econômica. Por outro lado, havendo a relativização, ou contenção da eficiência econômica, tornando-a não plenamente aplicável a qualquer caso jurídico, por conta da esfera do indecídível, ela se torna inócua ao LaE.
Desse modo, em uma de suas tentativas de reestruturação, o LaE, a partir de um de seus mais eloquentes representantes, o Justice Richard Posner, pretendeu alçar a ideia de maximização da riqueza como um valor social genuíno, como se fosse o objetivo primordial a ser arranjado pelo Estado de Direito. Mais uma vez é necessário valer-se dos conceitos avocados pelo GaJ, como, por exemplo, o de Estado de Direito como Limite ao Poder (público ou privado), bem como adentrar no âmbito específico da normatividade constitucional acerca dos fundamentos e objetivos que tal conceito impõe a uma República, como no caso da brasileira, que estabelece em seus artigos 1º e 3º os fundamentos e os vieses a serem alcançados em seu projeto social. Nem de longe pode-se encaixar a proposta fundamental da LaE de maximização da riqueza como objetivo ou projeto do Estado de Direito, sem, contudo, confundir, inviabilizar, e deslegitimar seu prolegômenos.
Sendo assim, é salutar ao LaE se adequar aos ditames estabelecidos pelo paradigma do Estado de Direito em sentido forte, aos seus limites substanciais e democráticos e à sua validade jurídica.
Ademais, não é ilegítima a compreensão econômica do direito, uma vez que o Estado de Direito, com seu fortalecimento garantista, aceita, dentro de sua perspectiva histórico-teórica, o LaE. Parece relevante verificar, no entanto, a aparência de que, talvez, seja o LaE que não aceite o Estado de Direito. Aliás, como disse Vinícius de Moraes: você tem que vir comigo em meu caminho e talvez o meu caminho seja triste pra você!
Para os críticos eventualmente afoitos, duas notas salutares:
Ps1- Obviamente, é importante mencionar, está-se a dialogar com um movimento protagonizado pelos mais eloquentes economistas e juseconomistas da segunda metade do século XX. E, sem sombra de dúvidas, algo que o LaE avocou foi o pioneirismo no trato da relação entre as disciplinas de Direito e de Economia. Contudo, a nosso ver, faz-se necessário restabelecer historicamente as articulações envolvendo ambas as disciplinas. Levando-se a história a sério, torna-se evidente que a economia sempre mereceu papel nas relações jurídicas, muitas vezes com enfoque progressista e, mais do que isso, nem sempre buscou deslegitimar, estruturalmente, o sistema jurídico vigente, tal qual algumas vertentes mais conservadoras do movimento pretendem.
Ps2- Em que pese as mutações internas, tentativas de readaptação e correção, entende-se que o LaE é ideologicamente homogêneo e mantém um núcleo ortodoxo, que forma o que se pode caracterizar de Chicago Trend1. A diagramação da Chicago Trend tem início na própria University of Chicago, em 1958, com a criação do Journal of Law and Economics, cujo primeiro editor foi Aaron Director, seguido por Ronald Coase, que nele publicou seu texto emblemático em 1960: The Problem of Social Cost, no qual continha o famoso The Coase Theorem, para não deixar em vão as palavras de Harold Demsetz. Concomitantemente, em 1961, foi publicado por Guido Calabresio o texto Some Thoughts on Risk Distribution and the Law of Torts, outro ícone da corrente. A expansão dessa proposta se deu com a fundação, em 1972, do Journal of Legal Studies, bem com o lançamento da obra clássica do movimento: Economic Analysis of Law, de Richard Posner. Embora seja imprescindível referir à importância de cada uma das vertentes do LaE, a análise aqui promovida buscou se direcionar e discutir a respeito do mais robusto caminho da Chicago Trend, que foi aquele tomado por Posner na sua reformulação pragmática do movimento Law and Economics à maximização da riqueza.
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1 Obra fundamental a essa compreensão é: MORAIS DA ROSA, Alexandre; AROSO LINHARES, José Manuel. Diálogos com a Law and Economics. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009.
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*Alfredo Copetti Neto é pós-doutor em Direito pela UNISINOS, Doutor em Direito pela Università degli Studi Roma Tre e Mestre em Direito pela UNISINOS, Lider do Grupo Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade e Membro Pesquisador do Grupo Estado e Constituição, ambos do Cnpq, Professor e Advogado.
*Alexandre Barbosa da Silva é doutor em Direito pela UFPR, Mestre em Direito pela Universidade Paranaense. Bolsista CAPES no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior nº 9808-12-4, com Estudos Doutorais na Universidade de Coimbra. Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direito Civil-Constitucional "Virada de Copérnico" da UFPR. Professor e Procurador do Estado do Paraná.