Migalhas de Peso

A desaposentação e o supertrunfo da solidariedade

A desaposentação foi rejeitada, em apertada síntese, pela observância da solidariedade em nosso sistema de proteção social e, também, pela vinculação das contribuições sociais a seguridade social.

8/11/2016

Após recente e emblemático decisório do STF, a desaposentação foi rejeitada. Em contrariedade às manifestações anteriores do STJ, entendeu-se, por maioria, pela impossibilidade de incremento da renda mensal de aposentadoria mediante renúncia da prestação anterior (RE 381.367, rel. min. Marco Aurélio; RE 661.256 e 827.833, rel. min Luís Roberto Barroso).

Minha posição pessoal favorável a desaposentação já é conhecida. Ao elaborar a primeira monografia sobre o tema, tive a glória de verificar como um assunto incomum e de denominação peculiar foi capaz de conquistar o interesse de segurados e as manchetes dos noticiários. A desaposentação superou todas as expectativas. Aqui, não pretendo remoer o tema. Preocupa-me, sobretudo, as premissas utilizadas pelo STF, especialmente para as querelas futuras, as quais, seguramente, virão.

No recente debate judicial, a desaposentação foi rejeitada, em apertada síntese, pela observância da solidariedade em nosso sistema de proteção social e, também, pela vinculação das contribuições sociais a seguridade social, a qual, normativamente, vai além da previdência social (art. 194, CF/88). Ademais, ainda havia o art. 18, § 2º da lei 8.213/911.

De início, fazendo referência ao preceito legal supracitado como potencial impedimento normativo à desaposentação, sempre me pareceu tentar o Governo Federal extrair da lei mais do que é dito. Basicamente, pretende o legislador – corretamente – afirmar ser inadmissível a dupla aposentadoria no RGPS. Justamente por isso, almejava a desaposentação trazer renúncia condicionada à primeira prestação, a qual, por meio do uso de tempo de contribuição pretérito, subsidiaria a totalização em novo benefício. O preceito legal seria atendido em conformidade com as diretrizes constitucionais e legais do sistema contributivo previdenciário brasileiro.

Adicionalmente, o argumento da possível contribuição previdenciária sem contraprestação, como derivada da necessidade de financiamento da seguridade social, e não somente a previdência social, implica desconsiderar o art. 167, XI da CF/88, o qual, didaticamente, vincula as receitas da previdência social à manutenção do seu plano de benefícios.

Ademais – e aqui reside o aspecto derradeiro – não podemos continuar a adotar modelo interpretativo bipolar no sistema previdenciário brasileiro. Sempre que o sistema estatal entende que alguma demanda é inadequada, por inexistir previsão expressa de contraprestação no plano de benefícios, a tese é pela impossibilidade de atendimento, tendo em vista a realidade de nosso sistema previdenciário, calcado no arcabouço do seguro social, o qual, ontologicamente, demanda custeio específico para a concessão de benefício (art. 195, § 5º, CF/88).

Já quando as posições se invertem, e a Administração passa a exigir contribuição sem qualquer contraprestação, as premissas bismarckianas de nosso modelo previdenciário são magicamente esquecidas, adotando-se, agora, topos argumentativo calcado nos modelos universalistas do Pós-Guerra, os quais, financiados por impostos, admitem maior grau de solidariedade em seus sistemas protetivos.

Em suma, quando o Estado brasileiro deseja denegar pretensões de segurados e dependentes, nosso modelo previdenciário é reconhecidamente qualificado como derivado dos antigos sistemas de seguro social, os quais, não obstante providos de custeio solidário – como qualquer seguro – comportam menor grau de rateio dos riscos da existência entre os participantes. Já quando há a necessidade de viabilizar encargo fiscal sem qualquer contraprestação, o fundamento muda, com um grau de solidariedade máximo, típico de modelos universalistas, em total ausência de sincronia com nossa realidade normativa.

Afirmar que nosso modelo previdenciário é solidário implica evidente tautologia. Qualquer seguro, mesmo privado, é dotado de algum grau de solidariedade. A questão, novamente, é a amplitude. A solidariedade é requisito existente em qualquer sociedade, tendo em vista esta ser oriunda de um projeto cooperativo de vida em comum. No âmbito protetivo, a solidariedade variará de acordo com os modelos protetivos adotados, normativamente.

Sempre me posicionei, nos últimos 20 anos, sobre a necessidade de uma reforma estrutural no modelo previdenciário brasileiro. Não obstante as diversas mazelas de nossa sociedade, especialmente as econômicas, é inegável que as variantes demográficas impõem algum tipo de ajuste em nosso sistema. Todavia, o regramento previdenciário deve ser não somente coerente e equilibrado, mas honesto.

Historicamente, temos, nos últimos decênios, diversos exemplos, como as tabelas de contribuição vinculadas a salários mínimos que, magicamente, foram ignoradas, apesar das promessas estatais do passado. Temos aqueles que, no momento da aposentadoria, foram prejudicados pela ausência de correção monetária nos salários que compunham seus períodos de cálculo. Temos os índices de correção escolhidos propositadamente para viabilizar reajuste insuficiente. Tudo isso com o histórico beneplácito do STF.

Mais recentemente (2003), criou-se a contribuição de servidores inativos, os quais, sob alegação do supertrunfo da solidariedade, foram validamente considerados contribuintes do sistema, em evidente burla à regra da irredutibilidade dos benefícios. Temos, agora, pelo mesmo placar (7x4), a denegação da desaposentação e – o que me parece pior – a ausência de qualquer limite às imposições previdenciárias sem contraprestação, sob argumento, novamente, da solidariedade.

Em suma, vivemos tempos estranhos. As contribuições previdenciárias, as quais, ao contrário dos impostos, seriam dotadas de vinculação e contraprestação, se tornam desprovidas de liame com qualquer benesse, em contrariedade às premissas da CF/88. Com isso, o que ganhamos? Temos, unicamente, o incremento do descrédito do sistema protetivo brasileiro e, ainda, a potencial acomodação do Governo Federal, pois se as promessas do passado e as regras do sistema podem ser ignoradas a qualquer tempo, para que enfrentar o custo político de uma reforma previdenciária? O supertrunfo será sempre a solução.
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1 O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social – RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado.
__________

*Fábio Zambitte Ibrahim é advogado do escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados. Professor adjunto de Direito Financeiro e Tributário da UERJ. Professor de Direito Previdenciário do IBMEC RJ. Doutor em Direito Público pela UERJ. Mestre em Direito Previdenciário pela PUC/SP.


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