A nova regulamentação da Lei Rouanet
Fabio de Sá Cesnik*
José Maurício Fittipaldi**
Da leitura de seu texto depreende-se, de imediato, que o novo Decreto objetiva ajustar a realidade da utilização dos incentivos fiscais à política cultural do Governo Federal e, ao mesmo tempo, corrigir algumas das distorções verificadas – e amplamente difundidas – no manejo da legislação nestes quase 15 anos de existência.
Antes de qualquer consideração cabe adiantar que, como não poderia deixar de ser, a edição do Decreto não altera o conteúdo da Lei naquilo que há de essencial, relativo aos aspectos fiscais atinentes ao benefício fruível pelos contribuintes do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza e às atividades de cunho cultural e artístico apoiadas pelo PRONAC (Programa Nacional de Apoio à Cultura, também instituído pela Lei Rouanet).
Nessa linha, pode-se dizer que, tendo em vista o tripé Estado / Produtores Culturais / Patrocinadores (contribuintes de IR) sobre o qual se estrutura o mecanismo de incentivos fiscais para o financiamento da cultura, as alterações promovidas pelo Decreto voltam-se primordialmente aos produtores culturais, aos quais impôs-se exigências de ordem técnica que visam à adequação dos projetos submetidos ao crivo do MinC à política cultural por este estabelecida.
São exemplos destas exigências os critérios de acessibilidade previstos pelo art. 27 e respectivos incisos do novo Decreto. De acordo com tais disposições, passa haver previsão regulamentar expressa de que “dos programas, projetos e ações realizados com recursos incentivados, total ou parcialmente, deverá constar formas para a democratização do acesso aos bens e serviços resultantes” (art. 27, caput). Referida democratização, nos termos dos incisos do mesmo art. 27, revelar-se-á mediante diminuição dos preços e ampliação das condições de acessibilidade a deficientes físicos, dentre outras possibilidades, nos eventos produzidos com recursos oriundos de renúncia fiscal pelo Poder Público.
Com efeito, trata-se de inovação interessante, e que em nosso entendimento não ultrapassa os limites do Poder Regulamentar de competência do Poder Executivo: ao contrário, a própria Constituição Federal, em seu art. 215, estabelece que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Dessa forma, as imposições do Decreto apenas vêm para dar concreção à disposição constitucional, restando inequívoca sua legalidade e, a bem da verdade, sua oportunidade – em vista de grandes distorções evidenciadas pela utilização de recursos sem qualquer tipo de ampliação do acesso da sociedade aos resultados gerados.
Mas há pontos de menor tranqüilidade. Com efeito, o PRONAC estrutura-se sobre três mecanismos distintos: Fundo Nacional de Cultura – FNC, Mecenato (incentivos fiscais) e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico – FICART, sendo certo que, no tocante à natureza destes mecanismos, verifica-se importante gradação da participação pública em cada um deles, visando ao estímulo da sociedade para que participe ativamente dos processos de financiamento da cultura. Sob este prisma, o FNC é um fundo de natureza pública por excelência, enquanto os FICART, na outra ponta, são geridos com recursos 100% privados (sem qualquer incentivo fiscal, diferentemente de outros fundos atualmente existentes, como os FUNCINE).
Contudo, o novo Decreto, ao regulamentar os FICART, traz em seu bojo disposição que abre espaço para grande discussão, em seu art. 21, segundo o qual “o Ministério da Cultura, em articulação com a CVM, definirá regras e procedimentos para acompanhamento e fiscalização da execução dos programas, projetos e ações culturais beneficiados com recursos do FICART”.
Em nosso entendimento, referida fiscalização revela-se descabida, e afirmamos isso na medida em que tal disposição contraria as disposições da Lei Rouanet, se não um artigo ou dispositivo específicos, com certeza a sistemática estabelecida por ela para o financiamento da cultura.
Com efeito, a Lei Rouanet, em seus arts. 8º a 17, institui os FICART e estabelece as diretrizes fundamentais para seu funcionamento, realçando a participação privada no sistema de financiamento da cultura; em seu art. 10 encontra-se previsão que ajudará a elucidar a questão: “compete à Comissão de Valores Mobiliários, ouvida a SEC/PR, disciplinar a constituição, funcionamento e administração dos Ficart, observadas as disposições desta lei e as normas gerais aplicáveis aos fundos de investimento”.
Atente-se, no particular, para dois aspectos: compete à CVM a disciplina da constituição, funcionamento e administração dos FICART, ouvida a SEC/PR (atual Ministério da Cultura, extinto durante o governo Collor). Quer parecer, in casu, que o texto do novo Decreto subverteu a regra de competência estabelecida pela Lei (deixando a CVM em plano efetivamente secundário); a par disso, tem-se que a competência instituída por Lei é para definição de regras para constituição, funcionamento e administração dos Fundos, e não das iniciativas econômicas (privadas, diga-se) que serão objeto de investimento.
Em outras palavras: não há que se falar em fiscalização dos projetos beneficiados com recursos dos FICART, a uma porque se está a tratar de recursos privados, em um mecanismo que visa a privilegiar a atuação privada no âmbito do PRONAC, e a duas porque a via do regulamento é ineficaz para impor obrigações que tenham por escopo limitar ou restringir a atuação privada, sujeitando-a ao crivo estatal. Trata-se do vital princípio da legalidade, o qual nos parece atingido pelo art. 21 do novo Decreto.
Ao lado das alterações já comentadas, as quais permitem supor que o novo Decreto traz consigo uma “aura” de ampliação do papel fiscalizador do Estado sobre os projetos culturais incentivados, merece destaque também a criação de ferramentas para ampliar a canalização de recursos do Mecenato (de longe, dentre os mecanismos do PRONAC aquele que mais recursos agrega) para as políticas do Ministério da Cultura.
Dentre tais ferramentas, destaca-se a menção expressa feita pelo novo Decreto à possibilidade de constituição de Editais – “processos públicos de seleção”, na dicção do Decreto –, sejam coordenados pelo próprio MinC, sejam formulados por empresas patrocinadoras, de forma independente.
De acordo com o novo texto (art. 5º, §2º), “as empresas patrocinadoras interessadas em aderir aos processos seletivos promovidos pelo Ministério da Cultura deverão informar, previamente, o volume de recursos que pretendem investir, bem como sua área de interesse, respeitados o montante e a distribuição dos recursos definidos pelo Ministério da Cultura”.
É bem verdade que referidos processos públicos de seleção já vinham sendo executados pelo MinC desde 2005, com forte adesão das empresas estatais (em regra, os maiores patrocinadores via Lei Rouanet). O novo Decreto, neste passo, institucionaliza o procedimento e confere supedâneo às empresas que desejarem promover seus próprios editais.
Trata-se de inovação que preserva os interesses de empresas e produtores, sobretudo destes últimos, que por meio dos editais terão acesso mais transparente às empresas, com critérios de seleção para apoio previamente definidos. Resta indagar se o MinC, no silêncio do ato regulamentar, procurará impor restrições e/ou exigências às empresas que optarem por apresentar ao MinC seus processos de seleção pública de projetos: note-se, no particular, que o §3º do mesmo art. 5º apenas obriga tais empresas a “informar” ao MinC tais iniciativas, não havendo, a princípio, qualquer exigência adicional senão aquelas já impostas à generalidade dos projetos comumente submetidos (individualmente) à apreciação do MinC.
Outra alteração, e que surge para desmistificar algumas das questões que atormentam os gestores de empresas e entidades que se valem da Lei Rouanet, é aquela contida no art. 26 do novo texto, regulamentando a questão das despesas administrativas.
Desnecessário afirmar quantos problemas tal indefinição ocasionava, ora aprovando-se despesas de natureza administrativa e ora rejeitando-se tais despesas (muitas vezes, até quando não se tratavam de custos puramente administrativos, como ocorre no caso de pagamento de empregados que atuarão diretamente para a realização do projeto). Nesse sentido, o art. 26 do novo Decreto busca solução para questão ao estabelecer que “para efeito deste Decreto, entende-se por despesas administrativas aquelas executadas na atividade-meio dos programas, projetos e ações culturais, excluídos os gastos com pagamento de pessoal indispensáveis à execução das atividades-fim e seus respectivos encargos sociais, desde que previstas na planilha de custos”.
No particular, o Decreto agiu com prudência na definição adotada, ao mesmo tempo em que, no pleno exercício do poder regulamentar, estabeleceu o limite de 15%, sobre o valor total do projeto proposto ao MinC, para as despesas classificadas como administrativas. Dessa forma, entendemos, atingiu-se o duplo objetivo de estimular o funcionamento dos proponentes (sobretudo aqueles sem finalidade lucrativa), sem contudo ampliar demasiadamente o valor dos projetos culturais com despesas sem vinculação direta ao objeto dos projetos.
É de se mencionar, ainda, que o Decreto tocou em temas de grande aplicabilidade prática, como o percentual, sobre o produto resultante dos projetos executados com incentivos fiscais, passível de destinação aos respectivos patrocinadores, diminuindo-o dos antigos 25% para 10%. Além disso, ampliou-se o número de exemplares dos produtos realizados que devem ser destinados ao Ministério da Cultura para comprovação da efetivação das metas previstas, de 1 para 6 cópias do produto cultural ou do registro da ação realizada pelo projeto.
Ainda quanto aos detalhes, acentuou-se a visibilidade que deve ser dada à participação do Ministério da Cultura nos projetos financiados pelos recursos oriundos da renúncia fiscal, com disposição que obriga aos produtores a exibição da logomarca do Ministério da Cultura com, no mínimo, a mesma exposição da marca do patrocinador majoritário. Além disso, a marca do Ministério deve aparecer nas peças promocionais e campanhas institucionais dos patrocinadores que façam referência a programas, projetos e ações culturais beneficiados com incentivos fiscais.
Por fim – o que deve ser considerado um ponto fraco do Decreto, pela insegurança jurídica que ocasiona –, vários dos temas que foram objeto de (às vezes intensos) debates voltados à discussão das alterações da Lei Rouanet, embora referidos pelo novo Decreto, ficaram para regulamentação posterior, por meio de ato a ser expedido pelo Ministro da Cultura em até cento e vinte dias contados da publicação do Edital.
É o caso, propriamente, das regras aplicáveis às instituições vinculadas a patrocinadores, limite de percentual para pagamento de agenciadores (captadores) de recursos, regras para prorrogação de projetos e outras tantas, as quais, até que se editem os respectivos atos, ficarão sem normatização própria. Em função disso, uma real opinião sobre a dimensão das alterações promovidas pelo novo regulamento da lei de incentivo somente poderá ser emitida com precisão após a edição das referidas portarias e instrumentos normativos específicos.
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*Advogados do escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados
*Fabio de Sá Cesnik
**José Maurício Fittipaldi
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