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A nova regulamentação da Lei Rouanet

A partir de 28 de abril de 2006 a Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91) passa a ter nova regulamentação. Trata-se do decreto nº 5.761/06, formulado no âmbito do Ministério da Cultura e que visa a conferir nova roupagem para um sistema que, desde a promulgação da Lei em 1991, tem se revelado o mais importante para o financiamento da atividade cultural no Brasil.

16/5/2006

 

A nova regulamentação da Lei Rouanet

 

Fabio de Sá Cesnik*

 

José Maurício Fittipaldi**

 

A partir de 28 de abril de <_st13a_metricconverter productid="2006 a" w:st="on">2006 a Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91 - clique aqui) passa a ter nova regulamentação. Trata-se do decreto nº 5.761/06 (clique aqui), formulado no âmbito do Ministério da Cultura e que visa a conferir nova roupagem para um sistema que, desde a promulgação da Lei em 1991, tem se revelado o mais importante para o financiamento da atividade cultural no Brasil.

 

Da leitura de seu texto depreende-se, de imediato, que o novo Decreto objetiva ajustar a realidade da utilização dos incentivos fiscais à política cultural do Governo Federal e, ao mesmo tempo, corrigir algumas das distorções verificadas – e amplamente difundidas – no manejo da legislação nestes quase 15 anos de existência.

 

Antes de qualquer consideração cabe adiantar que, como não poderia deixar de ser, a edição do Decreto não altera o conteúdo da Lei naquilo que há de essencial, relativo aos aspectos fiscais atinentes ao benefício fruível pelos contribuintes do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza e às atividades de cunho cultural e artístico apoiadas pelo PRONAC (Programa Nacional de Apoio à Cultura, também instituído pela Lei Rouanet).

 

Nessa linha, pode-se dizer que, tendo em vista o tripé Estado / Produtores Culturais / Patrocinadores (contribuintes de IR) sobre o qual se estrutura o mecanismo de incentivos fiscais para o financiamento da cultura, as alterações promovidas pelo Decreto voltam-se primordialmente aos produtores culturais, aos quais impôs-se exigências de ordem técnica que visam à adequação dos projetos submetidos ao crivo do MinC à política cultural por este estabelecida.

 

São exemplos destas exigências os critérios de acessibilidade previstos pelo art. 27 e respectivos incisos do novo Decreto. De acordo com tais disposições, passa haver previsão regulamentar expressa de que “dos programas, projetos e ações realizados com recursos incentivados, total ou parcialmente, deverá constar formas para a democratização do acesso aos bens e serviços resultantes” (art. 27, caput). Referida democratização, nos termos dos incisos do mesmo art. 27, revelar-se-á mediante diminuição dos preços e ampliação das condições de acessibilidade a deficientes físicos, dentre outras possibilidades, nos eventos produzidos com recursos oriundos de renúncia fiscal pelo Poder Público.

 

Com efeito, trata-se de inovação interessante, e que em nosso entendimento não ultrapassa os limites do Poder Regulamentar de competência do Poder Executivo: ao contrário, a própria Constituição Federal, em seu art. 215, estabelece que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Dessa forma, as imposições do Decreto apenas vêm para dar concreção à disposição constitucional, restando inequívoca sua legalidade e, a bem da verdade, sua oportunidade – em vista de grandes distorções evidenciadas pela utilização de recursos sem qualquer tipo de ampliação do acesso da sociedade aos resultados gerados.

 

Mas há pontos de menor tranqüilidade. Com efeito, o PRONAC estrutura-se sobre três mecanismos distintos: Fundo Nacional de Cultura – FNC, Mecenato (incentivos fiscais) e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico – FICART, sendo certo que, no tocante à natureza destes mecanismos, verifica-se importante gradação da participação pública em cada um deles, visando ao estímulo da sociedade para que participe ativamente dos processos de financiamento da cultura. Sob este prisma, o FNC é um fundo de natureza pública por excelência, enquanto os FICART, na outra ponta, são geridos com recursos 100% privados (sem qualquer incentivo fiscal, diferentemente de outros fundos atualmente existentes, como os FUNCINE).

 

Contudo, o novo Decreto, ao regulamentar os FICART, traz em seu bojo disposição que abre espaço para grande discussão, em seu art. 21, segundo o qual “o Ministério da Cultura, em articulação com a CVM, definirá regras e procedimentos para acompanhamento e fiscalização da execução dos programas, projetos e ações culturais beneficiados com recursos do FICART”.

 

A questão que se impõe, aqui, é saber se o MinC teria competência para promover qualquer fiscalização em relação à atuação de um fundo de investimentos exclusivamente privado, constituído e regulamentado segundo normas específicas. Mais que isso, resta indagar quais os efeitos que um dispositivo desse tipo pode ter sobre a atuação dos agentes privados, em vista da insegurança gerada por um comando normativo que, abrindo a possibilidade de ulterior fiscalização, sequer aponta os critérios, limites ou orientação que tal fiscalização deverá observar.

 

Em nosso entendimento, referida fiscalização revela-se descabida, e afirmamos isso na medida em que tal disposição contraria as disposições da Lei Rouanet, se não um artigo ou dispositivo específicos, com certeza a sistemática estabelecida por ela para o financiamento da cultura.

 

Com efeito, a Lei Rouanet, em seus arts. 8º a 17, institui os FICART e estabelece as diretrizes fundamentais para seu funcionamento, realçando a participação privada no sistema de financiamento da cultura; em seu art. 10 encontra-se previsão que ajudará a elucidar a questão: “compete à Comissão de Valores Mobiliários, ouvida a SEC/PR, disciplinar a constituição, funcionamento e administração dos Ficart, observadas as disposições desta lei e as normas gerais aplicáveis aos fundos de investimento”.

 

Atente-se, no particular, para dois aspectos: compete à CVM a disciplina da constituição, funcionamento e administração dos FICART, ouvida a SEC/PR (atual Ministério da Cultura, extinto durante o governo Collor). Quer parecer, in casu, que o texto do novo Decreto subverteu a regra de competência estabelecida pela Lei (deixando a CVM em plano efetivamente secundário); a par disso, tem-se que a competência instituída por Lei é para definição de regras para constituição, funcionamento e administração dos Fundos, e não das iniciativas econômicas (privadas, diga-se) que serão objeto de investimento.

 

Em outras palavras: não há que se falar em fiscalização dos projetos beneficiados com recursos dos FICART, a uma porque se está a tratar de recursos privados, em um mecanismo que visa a privilegiar a atuação privada no âmbito do PRONAC, e a duas porque a via do regulamento é ineficaz para impor obrigações que tenham por escopo limitar ou restringir a atuação privada, sujeitando-a ao crivo estatal. Trata-se do vital princípio da legalidade, o qual nos parece atingido pelo art. 21 do novo Decreto.

 

Ao lado das alterações já comentadas, as quais permitem supor que o novo Decreto traz consigo uma “aura” de ampliação do papel fiscalizador do Estado sobre os projetos culturais incentivados, merece destaque também a criação de ferramentas para ampliar a canalização de recursos do Mecenato (de longe, dentre os mecanismos do PRONAC aquele que mais recursos agrega) para as políticas do Ministério da Cultura.

 

Dentre tais ferramentas, destaca-se a menção expressa feita pelo novo Decreto à possibilidade de constituição de Editais – “processos públicos de seleção”, na dicção do Decreto –, sejam coordenados pelo próprio MinC, sejam formulados por empresas patrocinadoras, de forma independente.

 

De acordo com o novo texto (art. 5º, §2º), “as empresas patrocinadoras interessadas em aderir aos processos seletivos promovidos pelo Ministério da Cultura deverão informar, previamente, o volume de recursos que pretendem investir, bem como sua área de interesse, respeitados o montante e a distribuição dos recursos definidos pelo Ministério da Cultura”.

 

É bem verdade que referidos processos públicos de seleção já vinham sendo executados pelo MinC desde 2005, com forte adesão das empresas estatais (em regra, os maiores patrocinadores via Lei Rouanet). O novo Decreto, neste passo, institucionaliza o procedimento e confere supedâneo às empresas que desejarem promover seus próprios editais.

 

Trata-se de inovação que preserva os interesses de empresas e produtores, sobretudo destes últimos, que por meio dos editais terão acesso mais transparente às empresas, com critérios de seleção para apoio previamente definidos. Resta indagar se o MinC, no silêncio do ato regulamentar, procurará impor restrições e/ou exigências às empresas que optarem por apresentar ao MinC seus processos de seleção pública de projetos: note-se, no particular, que o §3º do mesmo art. 5º apenas obriga tais empresas a “informar” ao MinC tais iniciativas, não havendo, a princípio, qualquer exigência adicional senão aquelas já impostas à generalidade dos projetos comumente submetidos (individualmente) à apreciação do MinC.

 

Outra alteração, e que surge para desmistificar algumas das questões que atormentam os gestores de empresas e entidades que se valem da Lei Rouanet, é aquela contida no art. 26 do novo texto, regulamentando a questão das despesas administrativas.

 

Problema bastante recorrente referia-se à classificação das ‘despesas administrativas’, isto é, aquelas que, embora não diretamente relacionadas ao objeto do projeto cultural proposto, conferiam aos seus proponentes a garantia de funcionamento necessária a realização do próprio projeto (tais como pagamento de despesas com saneamento e esgoto, energia elétrica, folha de pagamento e afins). Em suma, a problemática residia no fato de que nem sempre o MinC classificava as despesas administrativas sob um mesmo (e único) critério, e muitas vezes negava às entidades a inclusão, nos projetos, de determinadas despesas (administrativas), sob o argumento de que não se referiam diretamente ao objeto do projeto proposto.

 

Desnecessário afirmar quantos problemas tal indefinição ocasionava, ora aprovando-se despesas de natureza administrativa e ora rejeitando-se tais despesas (muitas vezes, até quando não se tratavam de custos puramente administrativos, como ocorre no caso de pagamento de empregados que atuarão diretamente para a realização do projeto). Nesse sentido, o art. 26 do novo Decreto busca solução para questão ao estabelecer que “para efeito deste Decreto, entende-se por despesas administrativas aquelas executadas na atividade-meio dos programas, projetos e ações culturais, excluídos os gastos com pagamento de pessoal indispensáveis à execução das atividades-fim e seus respectivos encargos sociais, desde que previstas na planilha de custos”.

 

No particular, o Decreto agiu com prudência na definição adotada, ao mesmo tempo em que, no pleno exercício do poder regulamentar, estabeleceu o limite de 15%, sobre o valor total do projeto proposto ao MinC, para as despesas classificadas como administrativas. Dessa forma, entendemos, atingiu-se o duplo objetivo de estimular o funcionamento dos proponentes (sobretudo aqueles sem finalidade lucrativa), sem contudo ampliar demasiadamente o valor dos projetos culturais com despesas sem vinculação direta ao objeto dos projetos.

 

É de se mencionar, ainda, que o Decreto tocou em temas de grande aplicabilidade prática, como o percentual, sobre o produto resultante dos projetos executados com incentivos fiscais, passível de destinação aos respectivos patrocinadores, diminuindo-o dos antigos 25% para 10%. Além disso, ampliou-se o número de exemplares dos produtos realizados que devem ser destinados ao Ministério da Cultura para comprovação da efetivação das metas previstas, de 1 para 6 cópias do produto cultural ou do registro da ação realizada pelo projeto.

 

Ainda quanto aos detalhes, acentuou-se a visibilidade que deve ser dada à participação do Ministério da Cultura nos projetos financiados pelos recursos oriundos da renúncia fiscal, com disposição que obriga aos produtores a exibição da logomarca do Ministério da Cultura com, no mínimo, a mesma exposição da marca do patrocinador majoritário. Além disso, a marca do Ministério deve aparecer nas peças promocionais e campanhas institucionais dos patrocinadores que façam referência a programas, projetos e ações culturais beneficiados com incentivos fiscais.

 

Por fim – o que deve ser considerado um ponto fraco do Decreto, pela insegurança jurídica que ocasiona –, vários dos temas que foram objeto de (às vezes intensos) debates voltados à discussão das alterações da Lei Rouanet, embora referidos pelo novo Decreto, ficaram para regulamentação posterior, por meio de ato a ser expedido pelo Ministro da Cultura em até cento e vinte dias contados da publicação do Edital.

 

É o caso, propriamente, das regras aplicáveis às instituições vinculadas a patrocinadores, limite de percentual para pagamento de agenciadores (captadores) de recursos, regras para prorrogação de projetos e outras tantas, as quais, até que se editem os respectivos atos, ficarão sem normatização própria. Em função disso, uma real opinião sobre a dimensão das alterações promovidas pelo novo regulamento da lei de incentivo somente poderá ser emitida com precisão após a edição das referidas portarias e instrumentos normativos específicos.

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*Advogados do escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados

 

 

 

 

 

*Fabio de Sá Cesnik

 

 

 

 

 

 

 

 

 

**José Maurício Fittipaldi

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 


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