Migalhas de Peso

O futuro de Hugo Chavez

Toda futurologia é precária, porque depende de mil variáveis. Um economista, ganhador do Prêmio Nobel, chegou a afirmar — já disse isso antes, em outro artigo — que a própria expressão “ciências humanas” é uma contradição de termos, tão imprevisível lhe parecia o comportamento do homem. E ciência é previsibilidade.

16/5/2006

  

O futuro de Hugo Chavez

 

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*

 

Toda futurologia é precária, porque depende de mil variáveis. Um economista, ganhador do Prêmio Nobel, chegou a afirmar — já disse isso antes, em outro artigo — que a própria expressão “ciências humanas” é uma contradição de termos, tão imprevisível lhe parecia o comportamento do homem. E ciência é previsibilidade.

 

Mesmo que o comportamento de um determinado ser humano, quando isolado —          como que num tubo de ensaio —, seja razoavelmente previsível — afinal, ele é produto do meio em que foi criado e da herança genética, com órgãos e glândulas estáveis (em termos, em termos, porque doenças afetam tecidos e sentimentos...) — o ambiente em torno dele varia, e cada variação é um novo complicador na tarefa de prever. Isso explica a conhecida — e injustamente recriminada — frase de Fernando Henrique Cardoso, ao pedir que “esquecessem” o que ele escreveu. Quando ele escrevia, o ambiente era diferente daquele que depois o rodeou quando no cargo de presidente da república.

 

Não obstante, o exercício da previsão tem sido uma constante e mesmo imperiosa necessidade na condução dos negócios humanos. Nenhum governo pode trabalhar eficientemente sem algum exercício de futurologia. A própria existência dos orçamentos públicos confirma isso, embora em escala mais corriqueira. Se tivesse havido mais preocupação com o comportamento futuro de alguns rios, no sul dos Estados Unidos, providências teriam sido tomadas, impedindo inundações causadas por furacões de violência inusitada.

 

A CIA praticamente vive disso, de previsões. Nem sempre acertadas, basta ver o apoio imenso que deu a Saddam Hussein, contra o Irã. Não previu que um dia a criatura se voltaria contra o criador. George W. Bush “previu” que as forças americanas, invadindo o Iraque, seriam recebidas de braços abertos porque, afinal, Saddam era um ditador perverso. Aquilo que seria um “passeio” tornou-se um inferno, do qual não sabe como sair sem vexame. “Felizmente”, agora, o conflito maior é entre xiitas e adeptos do ex-ditador, o que facilitará uma saída menos desonrosa, com a desculpa de que “esse pessoal selvagem não tem mesmo juízo; o que estamos fazendo aqui?”

 

Hugo Chávez é um patriota, no sentido de amar o seu país. Obviamente, também ama muito a si próprio, o que é perfeitamente natural, não vindo a propósito, aqui, quantificar se ama mais ele mesmo ou o povo da Venezuela. Isso, só quem sabe é ele. E sabe com certa imprecisão, porque diz o velho refrão que ninguém é bom juiz em causa própria. As passagens secretas da mente são múltiplas e camufláveis. “Juiz” (super-ego) e “réu” (mente consciente) morando juntos na mesma caixa craniana tornam-se íntimos, viciando a qualidade do julgamento. Daí a preferência de gente de fora para julgar pessoas e condutas. Nenhum tribunal, no mundo, atribui ao próprio acusado a função de julgar seu crime. As absolvições seriam superiores a 99%.

 

Na minha desvaliosa  profissão de profeta amador, Hugo Chavez sente mesmo, na alma, revolta contra o estado de pobreza da grande maioria de seu povo. Quer, “com coragem”, “no muque”, “com todo o sentimento”, reverter, essa situação. Ocorre que, em razão de uma precária visão global das causas da miséria comporta-se como um emotivo e estabanado jogador de xadrez. Iniciante, mas inscrevendo-se para competir em torneio de grandes mestres, faz lances errados. E a falta do “olho clínico” é agravada pela riqueza fácil do petróleo, impelindo-o a impulsivos negócios milionários — vide gasoduto atravessando toda a América Latina.

 

A riqueza fácil traz essa conseqüência, tanto nos governos quanto nos indivíduos. O próprio W. Bush é um exemplo disso. Criado na riqueza e na facilidade, não lhe é difícil, ser “durão”, “decidido”, dispensando-se de sequer ouvir argumentos de conselheiros que diriam o que ele não quer ouvir. Se a Venezuela não fosse tão rica em petróleo, Chávez seria forçado a pensar melhor, a medir bem como gastar o que arrecada com dificuldade. E mediria as conseqüências no uso das palavras. Não insultaria, com termos pesados, desnecessariamente, outros presidentes. Estes não esquecem a ofensa e um dia, no momento certo, dão o troco; se não com palavras, com ações, o que é muito mais grave.

 

A euforia oriunda da riqueza fácil — o petróleo brota, com ou sem eficiência governamental — foi, no caso, estimulado pela leitura de estimulantes biografias de Simon Bolívar, um visionário que deu certo. O leitor em questão ficou entusiasmado com a idéia de se tornar uma segunda edição, melhorada, do grande biografado. Mas a luta de Bolívar vingou porque não havia contra-indicações no médio e longo prazo. Só era prejudicial à Espanha, não às colônias, e não havia porque pensar na metrópole, que só as explorava. Os tempos eram outros, menos complexos. E isso não ocorre agora.

 

O “socialismo para o século XXI”, idéia de Chávez, no fundo inspira-se na reação justa contra alguns efeitos colaterais — maus, maus... — da globalização. A indústria nacional de fraca tecnologia é esmagada, por não poder competir com o produto importado, melhor e mais barato. E o esmagamento das empresas nacionais acarreta desemprego. A globalização foi invenção de países mais poderosos, que sabiam — sempre a astuta previsão... — que seus produtos de exportação derrotariam a produção dos países periféricos, se não na qualidade, pelo menos no preço, vide China.

 

A solução para o impasse — como conciliar a inevitável globalização com a melhora tecnológica do produtor local? — estaria em usar um freio gradual e provisório na facilidade de entrada do produto estrangeiro, acoplada com o financiamento da indústria local, para que possa logo crescer e competir com o produto importado. Ajuda, claro, por tempo limitado, desestimulando a acomodação. “Ou melhora, ou fecha!”, diria o BNDS.

 

Uma coisa é irrefutável: o consumidor nacional jamais deixará de comprar um produto estrangeiro — melhor e relativamente mais barato que o nacional —, apenas pensando em ajudar o produtor de seu país. Todo cidadão quer extrair do seu dinheiro o maior lucro possível. Não aceita ter prejuízo em nome de uma vaga solidariedade. E se o governo resolve fechar as portas ao produto estrangeiro o povo coopera na aceitação do contrabando. Alguns anos atrás, gente boa, de respeito, não hesitava em comprar, sem nota fiscal, computadores vindos de fora. Mesmo os jovens que hoje protestam contra a globalização não recusarão o produto estrangeiro, melhor e mais barato, apenas por solidariedade ao produtor nacional. Revoltam-se contra o visível empobrecimento e desemprego, mas não aceitarão ser forçados a renunciar aos seus sofisticados e confortáveis hábitos de consumo.

 

Chávez quer instalar um regime socialista todo especial, todo dele, na Venezuela e possivelmente em toda a América Latina. Um sistema que será inimigo declarado do sistema capitalista. Mas tal projeto é extremamente arriscado e certamente só trará conflitos, talvez até armados, para eles e seus vizinhos. É bom que o Brasil afaste-se dele enquanto é tempo. O gasoduto tem algo de megalomaníaco. O mundo, hoje, é um único e imenso tabuleiro de xadrez. Antes era também um tabuleiro, mas não tão amplo, mundial. O jogo era de damas.

 

O socialismo puro é uma bela e generosa intenção, mas tem um defeito: não corresponde à verdadeira natureza humana, muito mais egoísta que altruísta. Por isso não deu certo. Cuba esperneia, impaciente, aguardando a morte de Fidel, um homem inteligente mas obcecado com uma ilusão: continua achando que o homem tem a obrigação de pensar mais no Estado do que nele mesmo e sua família. E como isso não corresponde a dura realidade humana, a ditadura é imprescindível. No tempo de Stálin, discordantes políticos importantes eram internados como loucos em sanatórios porque, segundo os stalinistas, “só um louco não vê que o comunismo é muito superior ao capitalismo. Camisa de força nele!”

 

O caminho certo para a humanidade, hoje, pode ser resumido na imagem de um barco em que o motor é capitalista e o leme, socialista, ou um tanto socialista. O bom sentimento, o elogiável impulso de solidariedade, inerente ao socialismo, só terá utilidade se “grudado’ — essa a palavra, embora deselegante — no capitalismo. Os “egoístas” mas inventivos empresários, mesmo “obcecados pelo lucro”, é que sabem gerar a riqueza. Pensam neles mesmo e nas suas famílias, claro, mas para terem lucro são obrigados a criar empresas e contratar pessoas. E com isso, mesmo não querendo, pagam impostos, que ajudarão os mais fracos. Melhor isso do que o país ficar no marasmo, aguardando, para tudo, a ordem do ditador. Há, neste sistema, um grande desperdício de inteligências, imobilizadas, dependentes da burocracia.

 

Milhares de cabeça pensam melhor que a cabeça única do ditador, por mais inteligente que ele seja. E ele, geralmente, não é um pensador excepcional. É apenas astuto, determinado e impiedoso — vide Stálin.

 

Quem for, hoje, adepto do socialismo — uma tendência das naturezas mais nobres e idealistas —, deve encará-lo como dentro do governo de todos os países. Em todas as nações capitalistas há uma boa parte do eleitorado que tem tendências socialistas. Numa eleição livre ora prevalece a direita, ora a esquerda. E essa é a fórmula ideal porque mesmo a esquerda pode exagerar na virada do leme, referido na metáfora do barco da humanidade.

 

Enfim, socialismo e comunismo não podem mais conviver em países separados. O resultado é guerra; fria ou quente, mas guerra. E por não saber disso é que Chávez perecerá a médio prazo. Podem escrever. Ele está agora em evidência porque seus discursos tocaram no nervo exposto do lado mau da globalização, o que provoca aplausos. Mas quando aparecerem os resultados mais sérios e concretos da política de ofensas e desafios, e as desgraças começarem a pingar, como gotas de chumbo derretido, sobre a cabeça dos que agora o apóiam, passará a ser vaiado. E ele, perplexo, não compreenderá sinceramente tanta ingratidão.

 

O mundo não comporta nova edição, piorada, de uma separação rígida entre países socialistas e capitalistas. A unificação global gerou a necessidade do capitalismo conviver com o socialismo dentro de todos os países, o eleitorado puxando ora para um lado, ora para o outro. O socialismo não morreu, propriamente. Migrou, passando a viver dentro da mesma casa, construída pelo capitalismo. E pelas palavras de Chávez, não se sabe como ele vai dosar essa inevitável convivência. Ele mesmo não sabe.

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* Membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo







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