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Licitação no serviço de transporte rodoviário de passageiros: A inconstitucionalidade do art. 3º da lei 12.996/14

Sobre o setor de transportes no Brasil paira uma irregularidade que remonta há décadas e continua a ser alimentada com a complacência do Estado.

13/9/2016

Resumo: O presente artigo pretende demonstrar a situação de inconstitucionalidade do atual sistema de outorga da prestação de serviço de transporte rodoviário interestadual de passageiros no Brasil.

Palavras-chave: Autorização. Transporte. Passageiros. Inconstitucionalidade.

1. Introdução

Sobre o setor de transportes no Brasil paira uma irregularidade que remonta há décadas e continua a ser alimentada com a complacência do Estado e apesar dos esforços pontuais de agentes que já se aperceberam da gravidade da situação.

No país, nunca se concluiu licitação de âmbito nacional para a outorga do serviço público de transporte coletivo rodoviário interestadual de passageiros. E sob essa tolerância, empresas que foram ungidas sem o respeito à isonomia, muitas há vários anos, continuam prestando o serviço à margem do modelo desenhado e desejado pela CF de 1988.

A sucessão de fatos – especialmente de inovações legislativas inconstitucionais - que conduziu a esse cenário ajuda a evidenciar a teimosia do setor que resiste em se adequar ao sistema instituído já agora há quase 30 anos, desde 1988, denunciando muito mais que simples permissividade, mas um nefasto pacto entre o Estado e as empresas para que nada se altere.

Ainda quando a notícia alvissareira de realização da licitação pública em 2014 parecia sinalizar o fim dessa era, a mão invisível que obstaculiza todas as tentativas nesse sentido mais uma vez manobrou para restringir indevidamente a competitividade no certame; em seguida, para impedir a veiculação do próprio edital e, finalmente, para sacar nova norma inconstitucional e sepultar o natimorto projeto de conserto dessa iniquidade.

Como será tratado nesse estudo, as soluções apresentadas pela via legislativa, em vez de impor a correção da irregularidade, vieram a enfrentar o texto constitucional e oferecer caminho livre para a perpetuação da irregularidade.

2. Histórico legislativo: As prorrogações indefinidas

Nenhuma Constituição brasileira, antes da Carta de 1967, conheceu nelas disposição sobre a outorga do serviço público de transporte rodoviário de passageiros, embora a Constituição de 1934 já previsse competir à União “explorar ou dar em concessão os serviços de telégrafos, radiocomunicação e navegação aérea, inclusive as instalações de pouso, bem como as vias-férreas que liguem diretamente portos marítimos a fronteiras nacionais, ou transponham os limites de um Estado” (art. 5º, VIII)1.

A partir de 1967, a Constituição afastou a restrição no texto ao transporte por vias-férreas, substituindo o termo na alínea “d” do inciso XV do art. 8º daquela Constituição simplesmente por “vias de transporte” que “transponham os limites de um Estado”, passando a abranger, desde então, o transporte rodoviário interestadual de passageiros, a ser explorado diretamente ou mediante concessão.

No âmbito infraconstitucional, desde 1945, o decreto-lei 8.463 já previa competir ao DNER propor ao Governo “concessões de transporte coletivo de passageiros2

E em 1969 se editou o decreto-lei 512, de 21 de março, autorizando o Poder Executivo a criar “órgão federal que terá a seu cargo a concessão, permissão e fiscalização dos serviços rodoviários interestaduais e internacionais de transporte coletivo de passageiros e cargas”, estatuindo que “enquanto não for criado tal órgão, os serviços de concessão, permissão e fiscalização do transporte de passageiros e de cargas continuarão a cargo do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem”.

O decreto 68.961/71 já passou a prever a necessidade de licitação para a “concessão” do serviço, mas a excepcionava para os casos de “autorização” previstos na norma. O decreto 90.958/85 reiterou a necessidade de licitação para a concessão, mas igualmente a afastou no caso de permissão, admitindo para essa modalidade uma espécie de seleção sumária, o que se repetiu no decreto 92.353/86 e não foi alterado pelo decreto 96.756/88.

Com o advento da CF, afastou-se qualquer dúvida de que a outorga desse serviço público de competência da União somente poderia ser feita mediante prévia licitação pública (art. 175), o que resultou na edição do decreto 99.072/90 que estipulou prazo – até razoável – de 90 dias para que o Ministério dos Transportes revisasse o regulamento aprovado pelo decreto 92.353/86, adaptando-o à Constituição.

Nesse momento, inicia-se a sucessão de normas que pretendiam – como já não se pode negar – a perpetuar as então prestadoras desse serviço, evitando a realização da benfazeja licitação.

Assim é que em vez de realizar o certame, sobreveio o art. 94 do decreto 952/93, concedendo, já na vigência da Constituição de 1988, prazo de 15 anos para que a União licitasse todo o sistema, ao prorrogar indevidamente as permissões vigentes das empresas que já exploravam o serviço.

Em 1998, dez anos antes de se expirar o prazo fixado, o decreto 2.521/98 (art. 98) confirmou a outorga seletiva prevista no decreto 952/93, mas ao menos tentou colocar fim à prática lesiva ao interesse público, prevendo que os referidos contratos seriam improrrogáveis, ou seja, até 2008 (vinte anos depois da Constituição!) a União deveria ter concluído processo para outorga das linhas.

Em 2008, como o Poder econômico impediu o avanço de qualquer tentativa de se conduzir processo licitatório no setor, a ANTT passou a se valer da figura da autorização prevista no art. 13, V3 c/c art. 494 da lei 10.233/01 para continuar prorrogando, indevidamente e contrariando a regra do 94 do decreto 2.521/98, a outorga do serviço público às empresas que já o prestavam há vários anos sem terem participado de licitação pública.

Assim o fez mediante a edição da resolução 2.868/08, de 5 de setembro de 2008, que concedeu AUTORIZAÇÃO ESPECIAL para operar os serviços então existentes “até 31/12/2009 ou até que o processo licitatório fosse concluído”:

A ANTT nunca promoveu a licitação ou a concluiu, fazendo sucessivas alterações na resolução 2.868/08, prorrogando o prazo das Autorizações Especiais exclusivamente para as empresas que há décadas prestavam o serviço, de acordo com os seguintes atos, dentre outros: resolução 3.272/09, de 24/9/09; resolução 3.320/09, de 18/11/09; resolução 3.654/11, de 14/4/11; resolução 751/11, de 20/12/11 e resolução 3.975/12, de 19/12/12.

Assim se forjava o panorama normativo que impedia por tantos anos – e até hoje – a realização da licitação pública no setor, o qual veio a ganhar novos e sutis contornos ainda mais recentemente.

3. As autorizações especiais: Permeabilidade do sistema

As sucessivas prorrogações – que obviamente agradavam aos prestadores do serviço – já estavam contaminadas de absoluta inconstitucionalidade por violar o princípio da isonomia e a regra da licitação pública. Mas a situação conseguiu avançar ainda mais no caminho da ilicitude.

É que a ANTT, após recusar vários pedidos de AUTORIZAÇÃO ESPECIAL para empresas que ainda não estavam inseridas no sistema, concedeu a aludida autorização, sem licitação pública e sem prévia prestação do serviço, à Viação Apuí (em 23/11/09). Essa aberração se verificou, posteriormente, em inúmeros processos de empresas específicas, ungidas pela ANTT para receberem as autorizações e iniciarem a prestação do serviço sem se submeter a processo licitatório.

O detalhe, porém, despertou o interesse de diversas empresas no país que, diante do descalabro praticado, passaram a buscar no Poder Judiciário o direito de explorar linhas que estavam sem operador específico, logrando a proteção judicial para o exercício de atividade econômica legítima e atendendo a populações abandonadas pela ANTT e pelo caos instalado com a quebra recorrente da regra constitucional.

Significativa nesse contexto foi a decisão proferida na STA 357, pelo STF, em janeiro de 2010, na qual o Excelso Pretório reconhece a situação inaceitável do setor:

“Não obstante a complexidade que caracteriza o referido programa de licitações - haja vista a quantidade de linhas a serem licitadas e a necessidade de se conferir racionalidade ao sistema -, entendo restar caracterizado, na espécie, quadro de flagrante omissão administrativa, pois, em verdade, passados mais de vinte anos da edição da Constituição de 1998, que, seu art. 175, expressamente exige que toda e qualquer permissão ou concessão de serviço público seja precedida de licitação, permanecem em vigor concessões, permissões e autorizações outorgadas sob a realidade constitucional pretérita e não precedidas de licitação”.

4. Licitação pública: O último suspiro da legalidade

Quando já não mais podia ignorar a pressão advinda das liminares, de ações específicas no Poder Judiciário e dos órgãos de controle, a ANTT veiculou o Edital de Licitação 1/13, cujo objeto foi a outorga de permissão para prestação de serviço público regular de transporte rodoviário interestadual de passageiros operado por ônibus do tipo rodoviário.

Neste edital foi previsto que poderiam participar da licitação (item 16) pessoas jurídicas de direito privado nacionais isoladas, ou reunidas em Consórcio inclusive com Entidade de Previdência Complementar – EPC, Fundo de Investimento em Participação – FIP e pessoas jurídicas estrangeiras.

Também exigiu, como requisito para se aferir a capacidade técnico-operacional, a comprovação de “que a Proponente operou no Transporte Rodoviário Coletivo de Passageiros por no mínimo 3 (três) anos consecutivos nos últimos 5 (cinco) anos, contados da data de publicação deste Edital, com uma frota mínima de 30 (trinta) ônibus, à exceção dos Lotes do Grupo 2 cuja comprovação dar-se-á com uma frota mínima de 5 (cinco) ônibus” (item 104.2).

A redação do edital assim proposta atendia à competitividade, pois abria o mercado a novas empresas que – embora alijadas do clube das que exploravam sem licitação o transporte rodoviário regular de passageiros – o faziam de modo assemelhado pelo sistema de fretamento.

Entretanto, no curso do prazo entre a publicação e a apresentação de propostas, a ANTT resolveu suspender o edital, realizar outra audiência pública e alterar o instrumento convocatório para enxertar exigência que, na prática, impunha a participação obrigatória dos atuais prestadores do serviço em qualquer consórcio vencedor, passando o mesmo dispositivo (item 16) a exigir a experiência em “serviço público regular” de transporte rodoviário de passageiros.

Também passou a prever que a experiência no transporte coletivo de passageiros se fizesse à base do volume anual de passageiro x quilômetro transportado correspondente a no mínimo 50% do número anual de passageiro x quilômetro do menor Lote do Grupo em que participar.

E mais: apesar de todas essas profundas modificações no edital (publicadas no dia 13 de dezembro de 2013, às vésperas do recesso de final de ano), aptas por si a romper os acordos de Consórcio que já estavam em estágio avançado ou até concluídos e, por consequência, forçando uma readaptação da proposta econômica que seria apresentada no certame, a ANTT manteve o cronograma inicial, com a previsão de entrega dos envelopes com os documentos de habilitação e propostas econômicas para 20 e 21 de janeiro de 2014, pouco mais de 30 dias contados da republicação.

Essa aberração foi corrigida por decisão da Justiça Federal do DF5, confirmada pelo TRF da 1ª região6, mas a ANTT, não podendo lançar o edital com as ilegais restrições à competitividade, adotou a cômoda posição de não retomar a licitação pública, mantendo a situação inconstitucional das atuais prestadoras do serviço, exatamente como pretendeu fazer por intermédio da licitação.

Intimada a cumprir a determinação judicial e realizar a licitação, a autarquia chegou ao acinte de informar que não faria a licitação na forma determinada pela decisão judicial por entender não ser adequada. Diante da postura judicial em determinar o cumprimento da decisão em 5 dias, eis que a ANTT resolveu revogar o edital da licitação, alegando o advento da lei Federal 12.996/14.

5. Lei 12.996/14. Inconstitucionalidade.

Após a confirmação das decisões desfavoráveis à ANTT, os interessados em manter o mercado restrito, lograram incluir na MP 638/14, que estava em trâmite no Congresso Nacional e que tratava do incentivo ao setor automobilístico, alterações na lei 10.233/01.

Essa “emenda-jabuti” que inseriu o art. 3º na MP convertida na lei 12.996/14, que tratava de assunto absolutamente diverso da concessão do serviço de transporte, conseguiu subtrair da referida lei 10.233/01 a obrigatoriedade de licitação para a outorga do serviço de transporte rodoviário interestadual, e o fez com o seguinte mecanismo:

a) modificou a forma de outorga do serviço, alterando a “permissão” para “autorização”;

b) manteve a licitação apenas para a “permissão”, fazendo supor que na hipótese de autorização, a licitação não seria obrigatória.

Ainda, promoveu sutil, mas importante alteração na lei 10.233/01, evidenciando sua pretensão de resguardar o setor para os grandes operadores que já o exploravam:

“Art. 5º A ANTT deverá extinguir as autorizações especiais vigentes para os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, no prazo de até 1 (um) ano, contado da publicação desta Lei, podendo esse prazo ser prorrogado, a critério do Ministro de Estado dos Transportes, mediante proposta da ANTT.”

O modelo propugnando pela lei (autorização para exploração das linhas, sem limite de operadores e sem prévia licitação), é inconstitucional e tecnicamente inapropriado, mas com a inserção do artigo 5º, a ANTT passou a estar amparada para prorrogar a situação então vivenciada por mais 1 ano e, depois, desde que mediante autorização do Ministro de Estado dos Transportes, por prazo indeterminado.

Vale dizer, depois de 25 anos da promulgação da CF, mais uma lei veicula nova prorrogação – dessa vez por prazo indefinido – da irregular situação do sistema, que é mantida por quem exatamente deveria corrigi-la: a ANTT.

Impressiona o fato de que já nos idos de 2008 (há mais de 8 anos), o STF, pela pena da e. Ministra Ellen Gracie, já se mostrava ciente do quadro calamitoso do sistema e dos entraves sucessivamente criados para impedir a licitação, como se observa do seguinte trecho do voto de Sua Excelência no MS 27.516/DF:

“O quadro atual do transporte interestadual e internacional de passageiros revela gritante contraste com o que vai estabelecido no Texto Maior. Milhares de ligações rodoviárias permanecem, passados 20 anos de promulgação da Constituição Federal, em regime de virtual monopólio.

A própria impetrante esclarece que apenas 114 empresas respondem por 88% do total de passageiros transportados por via rodoviária neste país-continente. O resultado da ausência de competição no setor reflete-se na péssima qualidade de serviço prestada aos usuários e no acrescido poder de barganha de tais empresas nas negociações para fixação do preço das passagens.

O poder de barganha e a força política do setor fez malograr até hoje todas as tentativas de adequação aos moldes constitucionais. Por outro lado, a imperiosa necessidade de manutenção da continuidade da prestação do serviço militou no sentido de perenizar o status quo. Por força dessa conjugação de fatores foi obstaculizado o acesso de novos empreendedores no setor, com evidente prejuízo ao usuário-consumidor. É especialmente este o alvo das preocupações consolidadas nas normas constitucionais antes referidas e que determinaram a inclusão desse serviços no PND, por meio do Decreto impugnado.”

Nesse contexto, a nova legislação, ao afastar a obrigatoriedade de licitação para a outorga do serviço de transporte rodoviário interestadual de passageiros, seja na modalidade de autorização ou de permissão, bem assim a regra (art. 5º) que permite a prorrogação da situação, contraria flagrantemente o art. 175 da Carta Política7.

A força do advérbio “sempre” inserido no dispositivo constitucional foi bem percebida pelo Supremo Tribunal Federal, já nos idos de 1993, em voto do então Ministro Octávio Gallotti, relator do RE 140.989:

“Podem os serviços públicos, ser prestados, segundo a Constituição, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, na forma da lei, mas 'sempre através de licitação'. Este advérbio ('sempre'), enfaticamente utilizado no art. 175 da Lei Fundamental, não dá margem alguma de dúvida sobre a eficácia plena, imediata e automática do preceito, que está a obrigar, tanto o legislador e o poder regulamentar, quanto a vincular o ato concreto de concessão (como o ora impugnado pela impetrante, ora Recorrente), à prévia licitação, toda vez que não se trate de exploração direta do serviço público pelo Poder Público. Configurou, pois, requintada desobediência, à Constituição, a conduta da Municipalidade de Itaboraí, que, dispondo de regulamento de transportes coletivos, onde se prescrevia a realização de concorrência, antes da Carta de 1988, veio a editar, já depois desta, novo decreto, onde se prescindiu dessa exigência constitucional” (Primeira Turma, DJ 27/8/93).

E em julgado mais recente, o STF voltou a recusar validade a qualquer norma que afastasse a licitação na outorga do serviço público de transporte de passageiros, repisando que ela deve “sempre” ser precedida de licitação (STF – RE 603.530 AgR/MT, Rel. Min. Marco Aurélio, 1ª turma, DJ 11/10/13).

Nem o expediente – maliciosamente engenhoso – de nominar o instrumento como “autorização”, para lhe blindar da exigência constitucional, é suficiente no propósito de escamotear a verdade de incompatibilidade vertical da nova legislação com o texto da Carta.

É que embora o art. 21, XII, “e” da Constituição aparentemente preceitue a possibilidade de se utilizar da “autorização” como um dos instrumentos hábeis para a exploração do serviço de transporte rodoviário interestadual de passageiros – virtualmente imune à licitação – seu espectro de abrangência é extremamente reduzido e avesso à solução proposta no art. 3º da lei 12.996/14.

Para a maioria dos autores, sequer é cabível a outorga de serviço público por meio de autorização8, já que a inserção dessa figura no artigo 21 da CF se daria para os serviços que são prestados no interesse do autorizatário, como os serviços de radiodifusão sonora, de sons e imagens, não para os serviços públicos propriamente ditos, como o de transporte coletivo de passageiros.

Segundo Marçal Justen Filho, por exemplo, a “expressão autorização é incompatível com a existência de um serviço público. Não se outorga autorização de serviço público – fórmula verbal destituída de sentido lógico-jurídico. Somente se cogita de autorização para certas atividades econômicas em sentido restrito, cuja relevância subordina seu desempenho à fiscalização mais ampla e rigorosa do Estado. Sendo outorgada autorização, não existirá serviço público”9.

E ainda que se admitisse o cabimento da autorização também para os serviços públicos, nem por isso ela perderia a característica que a doutrina administrativista sempre a esse ato, ou seja, unilateral, discricionário e precário, destinado a satisfazer situação transitória, sem necessidade de maiores investimentos e de estabilidade contratual.

Não à toa que o inciso V do art. 13 da lei 10.233/01, com a redação que lhe dava a MP 2.217/01, reservava a autorização quando se tratava de “prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros”, ou seja, ao menos nesse aspecto, serviço de interesse privado complementar ao serviço público regular.

Diferentemente foi a solução advinda da lei 12.996/14 que, afrontando o texto constitucional, previu a autorização como regra para a “prestação regular de serviços de transporte terrestre coletivo interestadual e internacional de passageiros desvinculados da exploração da infraestrutura”, caso típico de concessão ou de permissão reguladas pela Constituição Federal e tendo como regra basilar infraconstitucional a Lei n. 8987/95, sempre precedidas de licitação.

Por fundamentos semelhantes, isso, o Procurador-Geral da República ajuizou recentemente (jun/16) a ADIn 5.549-DF perante o STF, sob a relatoria do ministro Luiz Fux, impugnando a lesiva alteração legislativa empreendida para fraudar os ditames constitucionais e perenizar situação que lesa a concorrência, a moralidade e, principalmente, o consumidor.

Ressaltou Sua Excelência na petição inicial que: “Há potencial evidente de favorecimento de empresas que já explorem tais serviços e daquelas que se dispuserem até a oferecer vantagens ilícitas a gestores competentes para expedir as autorizações”.

Melhor teria feito o chefe do MP, porém, se, em vez de providenciar esse ajuizamento, que força a repetição de etapas, tivesse agilizado a emissão de parecer na ADIn 5.372 ajuizada pela CONUT10 no STF com o mesmo propósito e que dormita na PGR desde 9/10/15, aguardando apenas essa manifestação conclusiva para ser levada a julgamento, já que lhe foi atribuído o rito especial previsto no art. 12 da lei 9.868/99.

6. Conclusão

Desde a promulgação da CF de 1988 não há dúvidas – se é que algum dia elas foram razoáveis – sobre a inconstitucionalidade que permeia a exploração do serviço público de transporte rodoviário interestadual de passageiros sem prévia licitação, deixando evidente que as empresas que executam essa atividade à margem da regra constitucional o fazem de forma ilegítima.

Essa situação de estridente inconstitucionalidade já foi atestada pelos diversos órgãos responsáveis por sua correção, inclusive o Poder Judiciário, sem que nenhum deles, até então, tenha logrado êxito em concretamente viabilizar o desfazimento dessa realidade.

A ANTT, maior responsável pela perpetuação da irregularidade, chegou a lançar instrumento convocatório para a licitação, com regras que permitiam a efetiva competitividade no setor, mas cedeu à pressão dos interessados e alterou o edital para restringir os participantes exatamente às empresas que já prestam o mesmo serviço, sem licitação, há várias décadas.

Premida por decisão judicial que retomava a legalidade do certame, a ANTT cancelou a licitação respaldada no advento de inusitada legislação – evidentemente encomendada pelos interessados e embutida em Medida Provisória que tratava de assunto diverso - que alterou as regras para afastar a exigência de licitação, além de permitir a prorrogação indefinida da situação precária experimentada pelos então prestadores do serviço, fraudando a regra constitucional prevista no art. 175 da Carta Política de 1988.

O STF já foi acionado para corrigir essa discrepância jurídico-constitucional, que já perdura há quase 30 anos, mas é incerto que a declaração de inconstitucionalidade da lei 12.996/14 seja, por si, solução para a questão, a qual reside também na omissão dos responsáveis por realizar licitação em curto espaço de tempo, eficiente e competitiva, como decorre das regras da lei 8.666/93, da lei 8.987/95 e, principalmente, do art. 37 da CF.

___________________

1 Idêntica previsão se repetiu no art. 15, VII da Constituição de 1937. O inciso XII do art. 5º da Constituição de 1946 já trazia em si a figura da autorização: “XII - explorar, diretamente ou mediante autorização ou concessão, os serviços de telégrafos, de radiocomunicação, de radiodifusão, de telefones interestaduais e internacionais, de navegação aérea e de vias férreas que liguem portos marítimos a fronteiras nacionais ou transponham os limites de um Estado”. 

2 Art. 2º, l. 

3 Art. 13.  Ressalvado o disposto em legislação específica, as outorgas a que se refere o inciso I do caput do art. 12 serão realizadas sob a forma de:[...]  V - autorização, quando se tratar de:  a) prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros;

4 Art. 49. É facultado à Agência autorizar a prestação de serviços de transporte sujeitos a outras formas de outorga, em caráter especial e de emergência.

5 Processo n. 0007749-97.2014.4.01.3400, que teve curso na 9a Vara Federal do DF

6 Agravo de Instrumento n. 0017473-43.2014.4.01.0000

7 Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. 

8 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 408

9 JUSTEN FILHO, Marçal.  Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Dialética, 2005. p.485

10 Confederação Nacional dos Usuários de Transportes Coletivos Rodoviários, Ferroviário, Hidroviário e Aéreo
___________________

*Wesley Bento é sócio do escritório Bento, Muniz & Monteiro Advocacia, em Brasília. Procurador do DF. Vice-presidente da Comissão de Assuntos Regulatórios da OAB/DF.


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