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Improbidade administrativa: o abismo entre o "mal administrar" e a "desonestidade"

A improbidade administrativa e o requisito ignorado nas pretensões acusatórias: necessidade de demonstração de "dolo" ou "culpa grave" como elemento subjetivo na conduta do agente público.

19/8/2016

A aplicação de sanções a atos ímprobos foi prevista, inicialmente, no § 4º do art. 37 da Constituição Federal, segundo o qual “[o]s atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

A Lei que veio a cumprir o comando constitucional é a de nº 8.429, de 2 de junho de 1992, cujos dispositivos delimitam, detalhadamente, a apuração e a apenação dos agentes públicos que pratiquem os atos ali caracterizados como de improbidade administrativa (arts. 9º, 10 e 11).

Do ordenamento traçado, compreende-se a diretriz jurídica de apenação dos agentes que atuem contra a Administração Pública de forma conscientemente desonesta, entendimento esse reconhecido pelos tribunais e doutrinadores brasileiros, notadamente em razão da própria essência do termo improbidade.

Nesse sentido, EMERSON GARCIA e ROGÉRIO PACHECO ALVES afirmam que “[i]nexistindo um vínculo subjetivo unindo o agente à conduta, e esta ao resultado, não será possível demonstrar ‘o menosprezo ou descaso pela ordem jurídica e, portanto, a censurabilidade que justifica a punição (malum passionais ob malum actionis)’”1.

Na esteira do posicionamento doutrinário, o colendo Superior Tribunal de Justiça sedimentou que “[a] improbidade é a ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Assim, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92 é indispensável, para a caracterização de improbidade, que o agente tenha agido dolosamente e, ao menos, culposamente [refere-se, aqui, à culpa grave], nas hipóteses do artigo 10 [atos que causem prejuízo ao erário]”2.

Lamentavelmente, porém, os órgãos persecutórios têm simplesmente esquecido da necessidade de demonstração do elemento subjetivo da conduta do agente, pois são inúmeras as ações de improbidade administrativa ajuizadas sem qualquer indicação de agir doloso ou, ao menos, de culpa grave.

Trata-se de um elemento categoricamente ignorado nas pretensões acusatórias, o que se percebe da miríade de julgados constantes do repertório jurisprudencial dos tribunais pátrios, que, analisando detidamente os fatos, afastam a aplicação das sanções da Lei de Improbidade Administrativa.

Nos últimos meses, viu-se no STJ uma série de julgamentos dessa espécie, destacando-se, aqui, os dois casos abaixo, referentes (i) à contratação de servidores públicos sem concurso com fundamento em legislação local e (ii) à celebração de termos de parceria e convênios entre um município e uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (instituição privada), para implementação de programas federais em saúde pública: em ambos os casos, a Corte Superior destacou a inexistência de elemento subjetivo hábil a acoimar como ímprobos os atos apurados:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PREFEITA MUNICIPAL. CONTRATAÇÃO DE SERVIDORES TEMPORÁRIOS SEM CONCURSO PÚBLICO. AMPARO EM LEGISLAÇÃO MUNICIPAL. AUSÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO (DOLO). ART. 11 DA LEI 8.429/92.
1. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, a contratação de servidores públicos sem concurso público baseada em legislação local não configura improbidade administrativa prevista no art. 11 da Lei 8.429/92, por estar ausente o elemento subjetivo (dolo), necessário para a configuração do ato de improbidade violador dos princípios da administração pública. A propósito: AgRg no REsp 1358567/MG, desta relatoria, Primeira Turma, DJe 09/06/2015; REsp 1.248.529/MG, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 18/09/2013.3

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVOS REGIMENTAIS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR SUPOSTO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. IMPUTAÇÃO PELO ART. 10 DA LEI 8.429/92. (...). MÉRITO. TERMOS DE PARCERIA ENTRE MUNICÍPIO E OSCIP PARA IMPLEMENTAÇÃO DE PROGRAMAS FEDERAIS EM AÇÕES DE SAÚDE PÚBLICA. AUSÊNCIA DE DOLO OU CULPA ENSEJADORA DE ATO ÍMPROBO. AGRAVOS REGIMENTAIS DO MPF E DO MP/PR DESPROVIDOS. (...)
2. Cinge-se a controvérsia em saber se resulta em ato de improbidade administrativa a conduta do ex-Prefeito do Município de Palotina/PR ao firmar termos de parceria e convênios entre o Município e o IBIDEC, qualificado como OSCIP, para implementação de programas federais em saúde pública.
3. A conduta do agente, nos casos dos arts. 9º e 11 da Lei 8.429/92, há de ser sempre dolosa, por mais complexa que seja a demonstração desse elemento subjetivo; nas hipóteses do art. 10 da Lei 8.429/92, cogita-se que possa ser culposa, mas em nenhuma das hipóteses legais se diz que possa a conduta do agente ser considerada apenas do ponto de vista objetivo, gerando a responsabilidade objetiva.
(...)
6. Efetivamente, não se mostrou vedado ao administrador público municipal firmar convênios com OSCIP na área de saúde pública, pelos seguintes motivos: (a) a própria Constituição Federal afirma que as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, o que significa um claro nihil obstat ao ingresso de entidades do Terceiro Setor no âmbito das ações em saúde pública como área-fim; (b) partiu-se da premissa de que o Estado não é capaz de cumprir sua missão constitucional e precisa convocar os cidadãos ao auxílio na prestação dos serviços sociais; (c) a utilização das formas jurídicas de participação de Organizações Sociais, surgidas em cenário nacional na década de 1990, poderia ser vista como o modelo ideal de colaboração do particular com o Estado, numa perspectiva moderna de eficiência dos serviços públicos; e (d) é admissível a compreensão do Prefeito segundo a qual, para a execução dos programas federais, haveria a necessidade de contratação de agentes específicos e possivelmente temporários, sobretudo considerando a especificidade do profissional em Saúde da Família.
7. Referida análise está sujeita a aspectos que estão sob o discrímen do administrador público, dentro de um ambiente político-democrático para a concepção de ideal intervenção do Estado nos domínios sociais. Na hipótese, entendeu o então Prefeito de Palotina/PR que, para o alcance dos objetivos sociais, a execução mais eficiente se daria por uma entidade parceira, pois, em sua esfera de atuação como Chefe do Executivo local, as disponibilidades municipais não seriam suficientes para, em determinado momento, prestar a política pública advinda de programas federais em saúde.
8. Ausente ato doloso ou em culpa grave causador de prejuízo ao Erário na realização de convênio entre Município e OSCIP, não há falar em ato de improbidade administrativa, até porque os serviços em saúde pública foram efetivamente prestados aos munícipes.4

Nesse passo, conclui-se que, não demonstrado o elemento subjetivo da desonestidade na conduta do agente público, torna-se inaplicável a Lei de Improbidade Administrativa, que não se assenta na responsabilidade objetiva. Não são apenáveis pela Lei 8.429/1992, portanto, atos administrativos irregulares ou ilegais destituídos da consciência ou vontade de lesão à coisa pública.

Assim, a adoção de políticas públicas eventualmente equivocadas ou meras falhas administrativas não podem ser caracterizadas como atos ímprobos, uma vez que o intento da Constituição Federal e da Lei 8.429/1992 não é o de banalizar a atividade pública, sobretudo porque os erros são parte da natureza humana.

Tenta-se, com o aqui exposto, destacar a leviandade da perseguição da condenação de simples erros administrativos a partir da Lei de Improbidade Administrativa, o que gera inúmeras ações que, por sua própria natureza, já são absolutamente danosas aos agentes públicos.

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1 GARCIA, Emerson. PACHECO ALVES, Rogério. Improbidade administrativa. 8 ed., São Paulo: Saraiva, 2014. P. 432.

2 AgRg no REsp 1500812/SE, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, Julgado em 21/05/2015, DJe 28/05/2015.

3 REsp 1529530/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/06/2016, DJe 27/06/2016.

4 AgRg no AREsp 567.988/PR, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/05/2016, DJe 13/05/2016.

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*Ticiano Figueiredo é sócio do escritório Figueiredo & Velloso Advogados Associados.





*Alberto Malta é sócio do escritório Malta Valle Advogados.

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