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O voto obrigatório constitui uma flagrante contradição jurídica

Como pode, no âmbito do processo democrático, ser o povo soberano e o indivíduo obrigado a votar?

26/7/2016

A iminência das eleições municipais, assim como o cenário político-institucional atual tornam a pauta da reforma política ainda mais atrativa, de modo que temas como voto, mandato político, financiamento de campanhas, dentre muitos outros, ocupam espaço nos debates entre familiares, amigos e nos meios de comunicação social.

Sem desconsiderar a importância dos demais temas relacionados à reforma política, vale perguntar algo que ainda causa espécie a muitos cidadãos: por que o voto continua obrigatório?1

Aludida questão já foi objeto de diversas pautas legislativas (algo em torno de 45 Propostas de Emendas à Constituição)2, no sentido de tornar o voto facultativo. Infelizmente, tais iniciativas não prosperaram. E o voto obrigatório remanesce como uma flagrante contradição de nosso ordenamento jurídico! Vejamos.

O regime brasileiro estatuído pela CF em seu preâmbulo e no artigo 1º, enuncia de modo irrefragável a democracia, cujos pilares se solidificam no princípio da soberania popular3. O significado original do termo “democracia” vem do grego demokratia e preceitua “governo do povo”, cunhado pela teoria política da Grécia antiga (demos = povo, kratos = poder), cujo significado literal é “poder do povo”4.

Mesmo que o conceito de democracia não seja preciso, qualquer definição que seja atribuída ao conceito de democracia remeterá à ideia de que se trata de algo positivo para o povo, uma vez que “aceitando-a como filosofia, ideal, crença, processo, o importante é que se refira à participação do cidadão na criação normativa e na gerência da coisa pública.”5

José Afonso da Silva assevera que “democracia não é um mero conceito político abstrato e estático, mas é um processo de afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da história.”6 E continua, reforçando que a democracia “não teme, antes requer a participação ampla do povo e de suas organizações de base no processo político e na nação governamental. Nela as restrições a essa participação hão de limitar-se tão-só às situações de possível influência antidemocrática, como as irreelegibilidades e inelegibilidades por exercício de funções, empregos ou cargos, ou de atividades econômicas, que possam impedir a liberdade do voto, a normalidade e a legitimidade das eleições.7 Corroboramos integralmente as considerações do supracitado autor.

Noutras palavras, deve o povo participar na formação da vontade do governo e no processo político, por meio do exercício do direito de sufrágio, qual seja, o voto.

Porém, a regra do artigo 14, parágrafo primeiro, inciso I da CF8, ao estatuir o voto como obrigatório para os maiores de dezoito anos, parece romper com a essência do princípio democrático.

Explica-se: os cidadãos que se sujeitam à regra em apreço detêm a titularidade do direito de sufrágio ativo9. Sufragium, do latim, denota apoio ou aprovação, tratando-se de um direito público subjetivo de natureza política, tal como uma atividade política que materializa o poder eleitoral.10

O voto enquadra-se como o ato essencial de exercício do sufrágio. Ou seja, na medida em que o sufrágio figura-se como direito político fundamental nos regimes democráticos, o voto é a sua manifestação pragmática, o seu efetivo exercício.

Ora, reconhecer o voto como este valioso instrumento de participação do povo na eleição de seus representantes importa em reconhecer também que o indivíduo pode optar por usufruir ou não desta prerrogativa, isto é, gozar deste direito público subjetivo.

Nota-se que a doutrina possui um apreço especial quando trata da soberania popular (do ponto de vista teórico e coletivo), mas, quando analisa a liberdade de escolha do indivíduo de exercer ou não o voto (do ponto de vista pragmático e individual), relativiza a sua importância, argumentando que: (i) é imprescindível a participação do cidadão, sob pena de se dissolver o regime democrático; (ii) a democracia brasileira é imatura; (iii) trata-se de um dever cívico e moral; (iv) o voto obrigatório tem um poder pedagógico sobre a sociedade brasileira; (v) os valores das multas pelo não comparecimento injustificado são baixos; e assim por diante.

Referidos fundamentos soam desmoderados, principalmente, porque desafiam a lógica elementar, isto é, a própria natureza da participação popular: no Brasil, o voto é um direito que o cidadão é obrigado a exercer. Tratá-lo como obrigação importa em olvidar a liberdade individual do cidadão. Afinal, como pode, no âmbito do processo democrático, ser o povo soberano e o indivíduo obrigado a votar? Soa contraditório. Enquadrá-lo como mera obrigação desnatura o seu valor, a liberdade (ínsita ao poder de escolha) do cidadão deve ser resguardada pelo ordenamento jurídico.

Numa democracia, cabe ao Estado, no âmbito do processo eleitoral, garantir a liberdade dos cidadãos de votarem, e não obrigá-los a exercer o direito ao voto. Reside aí um relevante paradoxo de nosso sistema jurídico/político, que há quase um século mantém o voto obrigatório e que precisa ser superado.

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1 O artigo 7º do Código Eleitoral (Lei 4.737, de 15 de julho de 1965) determina ainda que: “O eleitor que deixar de votar e não se justificar perante o Juiz Eleitoral até trinta dias após a realização da eleição incorrerá na multa de três a dez por cento sobre o salário-mínimo da região, imposta pelo Juiz Eleitoral e cobrada na forma prevista no artigo 367.”

2 A obrigatoriedade do exercício do sufrágio não afigura-se como cláusula pétrea constitucional. Segundo o artigo 60, parágrafo quarto, inciso II da Constituição Federal, são cláusulas pétreas o voto direto, secreto, universal e periódico, inadmitindo-se qualquer proposta de emenda à Constituição tendente a aboli-los. Isso posto, pode o caráter obrigatório do voto ser questionado em sede de proposta de emenda à Constituição cujo propósito seja tornar facultativo o exercício do sufrágio. Ressalta-se, não o direito de sufrágio, mas a obrigatoriedade ou não do exercício do sufrágio.

3 Consoante o parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, in verbis: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

4 DARNTON, Robert; DUHAMEL, Olivier. Trad. Clóvis Marques. Democracia, Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 191.

5 FERRARI, Regina Maria Macedo Nery, Participação Democrática: Audiências Públicas, in Estudos de Direito Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva, São Paulo: Malheiros, p. 326.

6 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 126.

7 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 136.

8 “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular. Parágrafo primeiro. O alistamento eleitoral e o voto são: I – obrigatório para os maiores de dezoito anos; II – facultativo para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Parágrafo segundo. Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos.” (Grifos nossos)

9 Cf. Ministro Celso de Mello “a cláusula tutelar inscrita no art. 14, caput, da Constituição tem por destinatário específico e exclusivo o eleitor comum, no exercício das prerrogativas inerentes ao status activae civitatis” (ADI 1.057-MC, Rel. Min. Celso de Mello, j. 20.04.94, DJ de 06.04.2001).

10 Cf. FAYT, Carlos S. Sufragio, Representación y Telepolítica, 2. ed. Buenos Aires: La Ley, 2008, p. 1.
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*Marco Antônio M. da Costa é sócio do escritório Da Costa & Nosé Advogados. Professor de Direito Constitucional e doutorando em Direito (PUC-SP).




*Rodrigo M. da Costa é advogado, consultor do escritório Da Costa & Nosé Advogados. Mestrando em Direito (PUC-SP).

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