Migalhas de Peso

Lei de introdução à atividade empresarial – I (Projeto de Código Comercial, “go home!”)

Temos de pensar em uma solução moderna, que trate das diversas áreas desse ramo do direito partindo de um conjunto de regras gerais indispensáveis para o exercício da atividade mercantil.

26/7/2016

De início o primeiro dos autores pede perdão aos leitores porque no último texto por ele escrito neste “Migalhas” sobre o tema do infeliz projeto de código comercial utilizou em parte uma versão desatualizada. Sem maiores observações, temos que a sociedade simples desaparece, passando todas as sociedades nele reguladas à condição de empresárias. Além disto as Eirelis são transformadas em sociedades limitadas unipessoais. Mas no fundo isto não muda a falta de oportunidade desse projeto, que continua carregando uma série imensa de confusões que criarão problemas no atacado e no varejo.

Assim sendo, com um pé e um olho no presente, mas com o outro pé e o outro olho no futuro, a nossa proposta para que o Brasil tenha uma legislação mercantil verdadeiramente eficiente, clara e, sobretudo dinâmica, flexível, temos de pensar em uma solução moderna, que trate das diversas áreas desse ramo do direito partindo de um conjunto de regras gerais indispensáveis para o exercício da atividade mercantil, que estabeleça princípios gerais e remeta, instituto por instituto, aos microssistemas correspondentes. Essa lei geral seria muito mais do que a chamada “lei de introdução ao Código Civil”, notadamente a que precedia o Código de 1916.

I. O conceito de atividade mercantil ou empresária

O primeiro ponto dessa lei geral deverá ser, precisamente, a delimitação do campo do Direito Comercial, fundado no conceito de atividade mercantil, ou seja, a atividade profissional voltada para a produção e circulação de mercadorias, ao que se associam todas as demais atividades que tornem mais eficiente, ofereçam garantias, ao resultado almejado, isto é, integrar mercados. Pensando em uma lei moderna, esse conceito deve evoluir segundo a maneira pela qual os agentes econômicos têm atuado, tendo a empresa como o instrumento mediante o qual exercem a atividade. Cabe aqui, mais do que os conhecidos perfis de Asquini, aquele relativo à visão de Ronald Coase, segundo a qual a empresa é um feixe de contratos que visa a reduzir custos de transação (expressão utilizada no sentido econômico).

Assim sendo, deve ser reconhecido que a área de atuação do Direito Comercial se alargou substancialmente nas últimas décadas, tendo a empresa (tomada como atividade organizada para a produção de bens e serviços, por meio de um feixe ou nexo de contratos) se tornado instrumento para outras atividades que historicamente não eram consideradas próprias daquele ramo do direito. Esta visão contrasta completamente com a posição conservadora e até mesmo retrógrada do projeto de Código Comercial que, na última versão, trata de especificar algumas atividades que estariam sujeitas às regras especiais.

No sentido acima, como já temos afirmado algumas vezes, passará a ser residualmente considerada como inerente ao direito civil a atuação do agente econômico que não recorra à empresa na sua atuação como profissional. Trata-se de um grande salto conceitual que certamente assustará os operadores do direito que não têm observado a evolução dos mecanismos presentes no exercício da atividade econômica privada no direito comparado. Tal estranheza certamente se dará quando se pensar na atividade profissional liberal como sacrossanta, revestida de uma aura de pureza sacerdotal, tomada como vocação na qual, quase que por acaso se busca ganhar dinheiro.

Nos Estados Unidos da América não se dá tal tipo de hipocrisia (como, no fundo, deve ser chamada), pois segundo uma análise feita pelo nosso prisma secular, não poderiam médicos, advogados e outros profissionais liberais serem equiparados a comerciantes objetivando a sua tutela jurídica e a defesa dos seus clientes. Ainda que sujeitos a regras profissionais conforme o tipo de atividade (diploma, avaliação por pares, por exemplo), são agentes econômicos que atuam em mercados.

Já há muito tempo que aqui no Brasil a forma de empresa é utilizada pelos profissionais liberais de maneira indiscriminada a ponto de haver juízes que consideram a atividade de auditoria, exercida por sociedades, uma espécie de empresa. Pensemos nos grandes escritórios de advocacia, engenharia, arquitetura, contabilidade, etc.; voltemos os olhos para a prática da medicina em clínicas especializadas e em hospitais (estes, aliás, desde há muito considerados empresas mercantis). Qual a diferença ontológica entre tais atividades e as de uma fábrica, de uma rede de supermercados ou de lojas que oferecem produtos ou serviços no varejo ou no atacado?

Veja-se que nas profissões liberais o fundador de um escritório de advocacia ou de uma clínica médica pode ter morrido há décadas e seu nome ainda aparece seja no título de estabelecimento ou em algum outro sinal que identifique sua participação originária. Isto objetiva caracterizar um conceito particular criado ao longo do tempo, mas que, aos poucos vai se tornando objetivo e adquirindo o caráter de marca de serviços, desligada de quem a originou. O fundador já morreu, como dissemos, seus sucessores também morreram ou estão aposentados e desligados do dia-a-dia daquela empresa. Aquele escritório já se encontra nas mãos de uma terceira ou quarta geração, mas os serviços continuam sendo vendidos porque sua “marca” inspira confiança.

Enquanto atividade econômica organizada, a diferença entre o escritório A ou B é a mesma que entre o supermercado C ou D. Está na qualidade dos serviços/produtos e no preço, no atendimento. Mais nada. E por que não considerar essa igualdade (que decorre do fenômeno da adoção da empresa como meio de se obter resultados econômico-financeiros, lucro) para dar-lhes o mesmo tratamento jurídico?

Ah, mas o profissional liberal tem uma responsabilidade específica fundada no dever do exercício ético de sua profissão. Essa responsabilidade profissional não difere da ética inerente ao comércio, criando-se um plus em favor dos clientes, que teriam como garantia além do capital financeiro destinado ao exercício da atividade o capital pessoal do profissional liberal que atendeu o cliente.

Neste sentido, inverter-se-ia a regra atual do Código Civil, concernente ao art. 966 do Código Civil, simplesmente eliminando-se o seu parágrafo único. A logica é meridiana ao suprimir uma distinção que não tem, na atualidade, nenhuma razão de ser.

Que revolução, não é mesmo? Revolução meramente declaratória porque essa realidade já existe e está afastada pelo pudor jurídico de pensadores que temporalmente estão no século XXI, mas cuja cabeça permanece associada à vigente no período dos neandertais.

Outro exemplo do pragmatismo realista do direito norte-americano está no instituto da falência à qual pode recorrer qualquer pessoa natural ou empresa, nos termos dos capítulos 7, 11 e 13 da lei própria. Isto inclui a auto-falência da pessoa natural. Mas do lado de cá do equador, fazer assim seria uma completa heresia. Dois procedimentos liquidatários solutórios e, para piorar a discussão, o projeto destrói a regra da par conditio creditorum, para, supostamente, privilegiar os nacionais. Algum estrangeiro ofereceria crédito (empréstimo, venda a prazo) a uma empresa se, na hipótese de falência, fosse considerado credor subordinado?

Por enquanto ficamos por aqui.

Nossa proposta continuará nos seus desdobramentos pertinentes.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da USP e sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados.

**Rachel Sztajn é professora de Direito Comercial da USP e advogada.

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