1. Introdução
A tramitação do Projeto de Código Comercial (PL 1.572/11), de autoria do deputado Vicente Cândido, está num momento de crucial importância: a Comissão Especial encarregada de dar parecer relativamente ao Projeto, presidida pelo deputado Laércio de Oliveira, deve votar proximamente o substitutivo apresentado pelo relator geral, deputado Paes Landim.
Naturalmente, isto gerou uma mobilização mais intensa, por parte dos setores acadêmicos contrários à edição de um novo Código Comercial, ou mesmo à oportunidade do Projeto em tramitação. Várias críticas foram suscitadas ou simplesmente renovadas.
Aqui, apresento meu contraponto às críticas. Os dispositivos mencionados são os do Voto Complementar divulgado no dia 13 de julho de 2016, no site da Câmara dos Deputados.
2. “O direito comercial não é compatível com a codificação”
Esta crítica é incorreta porque o Direito Comercial brasileiro é e sempre foi objeto de codificação. O Código Comercial de 1850 ainda está em vigor, em sua segunda parte, que disciplina o direito marítimo; e a matéria que era objeto da primeira parte está, desde 2002, codificada no Código Civil.
O Direito Comercial está codificado na maioria dos países, em Códigos próprios (Portugal, Espanha, França, Alemanha, Estados Unidos, etc) ou em Códigos unificados (Itália e Argentina).
3. “O projeto não contempla nenhuma novidade”
Não é verdade. Entre as inovações propostas, destacam-se:
(1) Alterações na disciplina da sociedade limitada, com a supressão de exigências burocráticas injustificáveis, admissão da unipessoalidade, eliminação da complexidade dos quoruns deliberativos, legalização das quotas preferenciais sem direito a voto, autorização para a emissão privada de debêntures e sistematização da liquidação da quota e apuração de haveres (artigos 132 a 203).
(2) Modernização do regime societário com a supressão de tipos societários em desuso (sociedades em comandita) e da bifurcação entre sociedades simples e empresárias.
(3) Extensão a todas as sociedades da neutralidade tributária da convergência das normas contábeis aos padrões internacionais (artigo 70, § 1º).
(4) Disciplina da escrituração, dos negócios jurídicos, atos societários, contratos e títulos de crédito em suporte eletrônico (artigos 53, 58, § 4º, 81, parágrafo único, 116, 273, 367, 372 e 374).
(5) Disciplina do comércio eletrônico (artigos 101 a 105).
(6) Atualização da regência das Duplicatas (artigos 415 a 429) e dos títulos armazeneiros (artigos 430 a 445).
(7) Supressão da diversidade de disciplina do contrato de compra e venda, uniformizando as regras aplicáveis às operações realizadas no comércio interno e externo (Convenção de Viena) (artigos 289 a 310).
(8) Disciplina dos contratos de fomento mercantil (artigos 363 a 366), venda direta (artigo 334), fornecimento de mercadorias (artigo 311) e do contrato fiduciário (trust) (artigos 353 a 362).
(9) Modernização da disciplina do direito marítimo (Livro IV da Parte Especial).
(10) Sistematização da disciplina do direito do agronegócio, dispondo sobre a proteção da rede de negócios (Livro III da Parte Especial).
(11) Redução dos prazos de prescrição (artigos 95 e 96).
(12) Supressão da necessidade de decreto presidencial para empresa estrangeira poder funcionar no país (artigo 128).
(13) Disciplina da falência transnacional (artigo 777, § 3º).
(14) Detalhamento da disciplina de direito material da desconsideração da personalidade jurídica, explicitando a impossibilidade de sua decretação sem os respectivos pressupostos (art. 121) e proibição da extensão dos efeitos da falência nas hipóteses em que não couber a desconsideração (introdução do art. 82-A na lei 11.101/05, pelo art. 777, § 2º).
(15) Previsão de que somente em caso de expressa previsão legal, caberá a responsabilidade civil objetiva do empresário (artigo 269, II).
(16) Previsão expressa de que as relações entre os empresários, relativas à exploração das respectivas empresas, não se sujeita ao Código de Defesa do Consumidor (artigos 264, § 3º, e 272, § 3º).
(17) Instituição da figura do empresário individual de responsabilidade limitada, por meio da exploração da empresa em regime fiduciário (artigos 31 a 34).
(18) Extensão da proteção do nome empresarial para todo o território nacional (artigo 39).
(19) Proteção da empresa contra abusos na fiscalização administrativa (artigos 73 a 79).
(20) Correção das imperfeições do CC relativamente à natureza do nome empresarial (elemento de empresa e não projeção da personalidade do empresário), aos contratos empresariais (em especial a agência, distribuição e prestação de serviços) e ao regime cambiário, bem como as pertinentes às operações societárias e grupos de sociedade (harmonizando as normas codificadas com as da LSA) e acerca dos prazos prescricionais de direito marítimo (que foram indevidamente ampliados).
4. As sociedades anônimas
O projeto original contemplava algumas disposições sobre as sociedades anônimas, mas um dos primeiros consensos construídos em torno dele assentou-se na convicção de que não se deveria mudar a LSA.
Refletindo este consenso, tanto o Projeto do Senado (2013) como os Relatórios Parciais na Câmara dos Deputados (2015) eliminaram as mudanças nas sociedades anônimas previstas originalmente. O Substitutivo em apreciação na Câmara reproduz rigorosamente as mesmas normas hoje em vigor (o artigo 213 e seu parágrafo único são idênticos aos artigos 1.088 e 1.089 do CC).
Não há, portanto, o menor risco de o novo Código Comercial aumentar a insegurança jurídica para as sociedades anônimas, como temem alguns críticos.
5. A falência transnacional
Critica-se a redação do art. 188-L, III, a ser introduzido na lei 11.101/05, por prever que o credor estrangeiro só será pago após os quirografários, na falência transnacional. Alega-se que isto afugentaria investimentos estrangeiros do Brasil.
Esta crítica não procede, porque a falência transnacional não é, nem poderia ser, a criação de uma jurisdição falimentar internacional. Trata-se de um sistema de organização e troca de informações entre juízos falimentares de diferentes jurisdições, bem como de viabilização da colaboração recíproca independentemente das formalidades das cartas rogatórias. Nada mais. A falência transnacional não torna qualquer crédito executável indistintamente em qualquer jurisdição. O universalismo continuará a ser uma teoria acadêmica, enquanto os direitos positivos permanecerem aferrados ao territorialismo.
A questão é menos de direito falimentar e mais de direito constitucional. Como deve proceder o titular de um crédito não executável no Brasil, ao vislumbrar a chance de recuperá-lo, em todo ou em parte, na falência do devedor aqui instalada? Hoje, ele deve inicialmente tornar seu crédito executável no Brasil. Para tanto, precisa obter a condenação judicial no devedor na jurisdição competente e, depois, levar à homologação do Superior Tribunal de Justiça a sentença estrangeira que lhe garante o crédito (CF, art. 105, I, i).
Esta sistemática não pode ser alterada por nenhuma lei ordinária, porque isto implicaria a sua inconstitucionalidade. Quer dizer, nenhuma regra de lei ordinária sobre a falência transnacional poderia validamente suprimir a competência do STJ para homologar sentenças estrangeiras, como medida necessária para tornar executável no Brasil qualquer obrigação cumprida no exterior.
O que a lei ordinária pode fazer para facilitar a recuperação do crédito ao titular de obrigação não executável no Brasil é apenas o que prevê o art. 188-L, III: depois de todos os créditos executáveis no Brasil serem satisfeitos, se ainda restaram recursos na massa, eles podem ser utilizados para satisfazer os créditos não executáveis no Brasil. Isto poupará o credor estrangeiro de obter a prévia condenação judicial estrangeira e a respectiva homologação no STJ.
Claro, se, mesmo depois da introdução da falência transnacional na lei brasileira, aquele credor titular de crédito não executável no Brasil entender que somente conseguirá recuperá-lo concorrendo com os demais quirografários (se ele tiver uma garantia real no Brasil, este crédito será, por definição, aqui executável e a questão não se põe), não lhe restará outra alternativa senão a que hoje ele já possui, isto é, ir buscar a condenação judicial no exterior e a subsequente homologação da sentença estrangeira no STJ.
Ademais, além de ser a única disposição admissível no direito constitucional brasileiro, o art. 188-L, III, está em plena harmonia com a lei modelo da UNCITRAL sobre falência transnacional. Esta lei modelo estabelece que o estrangeiro deve ser tratado em igualdade de condições com o nacional quanto à instauração e acompanhamento da falência transnacional. Mas excepciona expressamente a “ordem de pagamento” do tratamento igualitário (art. 13, alínea 2). E esta exceção decorre exatamente da impossibilidade de um processo de falência transnacional servir como uma execução concursal internacional, acima das jurisdições e soberanias nacionais.
6. “Em tempos de crise, não se deve aprovar um novo Código Comercial”
Em 2011, quando teve início o debate sobre um novo Código Comercial, este já se mostrava necessário para simplificar e modernizar a legislação empresarial, aumentar a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões judiciais. Vivíamos, então, uma economia mais sustentável. Hoje, infelizmente atravessamos uma inegável crise econômica.
Ao contrário dos que dizem alguns críticos do projeto, a crise econômica torna, na verdade, mais urgente ainda a necessidade do Código Comercial. O enfrentamento de qualquer crise demanda a disposição para se realizarem as mudanças necessárias. Recomendar uma atitude passiva diante da crise, na esperança de que ela se resolva por si mesma, é ineficiente.
7. A alteração do Código de Processo Civil
A lei processual deve estar plenamente harmonizada com a lei material. Todos concordam que se houver incompatibilidade entre elas, isto só geraria confusão e insegurança jurídica.
O CPC/15 disciplina a ação de dissolução de sociedade (arts. 599 a 609), tomando por pressuposto a vigência das regras sobre resolução da sociedade constantes do CC (arts. 1.028 a 1.032).
Como o projeto prevê a mudança substancial das regras sobre a liquidação da quota e apuração de haveres (artigos 166 a 185), se não se proceder às alterações correspondentes no CPC/15, sobrevirão sérias e indesejáveis discrepâncias entre as disposições materiais e processuais atinentes ao mesmo tema.
É imprescindível, portanto, que o CPC-15, malgrado sua recente edição, seja alterado na disciplina da ação de dissolução de sociedades.
8. O princípio da vinculação plena dos contratos comerciais
A teoria da imprevisão foi construída para tratar de interesses conflitantes em decorrência de situações verdadeiramente excepcionais: as duas Guerras Mundiais que sacudiram o planeta na primeira metade do século passado.
Mas, embora nada de minimamente parecido com estas situações realmente excepcionais esteja acontecendo no Brasil há várias décadas, avolumam-se as decisões judiciais e reflexões doutrinárias que implicam verdadeira distorção do instituto, quando se têm em mira os contratos entre empresários. Por exemplo: variações cambiais, ainda que acentuadas, não são imprevisíveis num regime de flutuação de câmbio, principalmente se o sujeito, enquanto empresário, dispôs-se a assumir riscos econômicos.
Como ensina a melhor doutrina de direito comercial, a lei não pode poupar os empresários dos erros em que incorre na exploração da empresa (Paula Andrea Forgioni, A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil Brasileiro. Em RDM 130/7-38). Como o Judiciário nem sempre tem clareza das diferenças entre imprevisibilidade e riscos empresariais, da lei comercial espera-se uma determinação mais incisiva, que defina como absolutamente excepcional a revisão dos contratos comerciais. É o que prevê o Projeto nos artigos 6º, III, §§ 2º e 3º, e 288.
9. “A aprovação do projeto gerará custos extraordinários para as empresas”
Um estudo, feito em maio de 2014, denominado Medindo os impactos do PL 1572/11 da Câmara dos Deputados ou do PL 487/13 do Senado Federal, que propõem o Novo Código Comercial Brasileiro, calculou que o impacto da inovação legislativa seria da ordem de dezenas de bilhões de reais.
Este estudo não merece nenhuma credibilidade. Em primeiro lugar porque, pretendendo medir o impacto de uma nova lei, ocupou-se apenas dos “custos”, ignorando completamente os “benefícios”. É indiscutível que qualquer lei nova gera custos, mas a mensuração dos seus impactos deve necessariamente avaliar também os seus benefícios.
Mas não é somente isto que desacredita o estudo por completo. Mesmo ao mensurar os custos, ele mostrou-se falho, por adotar metodologia de cálculo absolutamente inconsistente. O estudo em questão considera que o impacto de uma lei nova pode ser mensurado a partir do seu número de artigos. Para ele, quanto maior for o número de artigos, maior será o impacto econômico.
Isso mesmo. Uma questão altamente complexa que tem demandado esforços intelectuais sérios no mundo todo, em torno de problemas metodológicos estatísticos e jurimétricos altamente complexos (e, ressalte-se, ainda sem respostas) é resolvida, pelo estudo, do seguinte modo precário e simplista: fixando-se apenas no número de artigos de uma lei em vigor (ignorando a quantidade de incisos, parágrafos e alíneas) e no dos projetos de Código Comercial, e se valendo de cálculo aritmético aprendido no ensino fundamental (a “regra de três”), o estudo chega aos bilhões de reais.
Para se constatar a absoluta inconsistência desta metodologia, basta a observação feita pelos professores Marcelo Guedes Nunes (PUC-SP e Presidente da Associação Brasileira de Jurimetria) e Adilson Simonis (USP e Chefe do Departamento de Estatística do IME): “um projeto de dez artigos que proibisse a criação de câmaras especializadas em direito empresarial teria o mesmo impacto de outro, que também com dez artigos tornasse obrigatória a implantação da justiça especializada. Um óbvio contrassenso” (Em Novas Reflexões sobre o Projeto de Código Comercial. São Paulo: Saraiva, 2015, pg. 126). Ou: uma lei com um único artigo extinguindo o mercado de valores mobiliários impactaria, por esta mesma metodologia inconsistente, a economia na mesma dimensão que outra lei, também com um único artigo, que suprimisse a sociedade em nome coletivo.
10. Conclusão
Uma das muitas virtudes da democracia é a garantia de maior eficiência na tomada de decisões que afetam a toda a sociedade. As liberdades democráticas garantem o pleno confronto das ideias, com todos tendo o direito de opinar e contribuir com o constante aperfeiçoamento de governos, instituições e leis.
O novo Código Comercial brasileiro tem-se beneficiado muito do amplo debate democrático que o cerca. Quem examina o texto de partida e cada um dos diversos documentos em que foi se aperfeiçoando (Projeto da Câmara, Emendas na Câmara, Projeto do Senado, Relatórios Parciais na Câmara, o Substitutivo do Relator Geral, de 29/02/16, e os Votos Complementares de 14/6/16 e 13/7/16) pode perceber que muitas críticas foram bem recebidas, entendidas e incorporadas, com as correspondentes alterações no texto da lei projetada. A forma como tem se desenvolvido este ingente processo de construção de consenso é motivo de justo orgulho para todos os que estão envolvidos no esforço de aprimorar e modernizar o direito comercial brasileiro.
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