Em dois outros artigos, procurei abordar alguns aspectos essenciais referentes ao impeachment da presidente da República.
O primeiro deles diz respeito à sua disciplina na Constituição, especialmente, em seu art. 86. Diante da sistemática adotada, em sede constitucional cabe à Câmara dos Deputados receber a denúncia e, uma vez recebida, o processo continua com o julgamento perante o Senado Federal. O seu rito vem fixado na lei 1079, de 1950. Colhe-se do art. 19 da referida lei, toda tramitação a ser seguida na Câmara dos Deputados, culminando com a regra legal da exigência de maioria absoluta de 2/3 de votos para que seja admitida a acusação. Nesse momento cessa a atuação da Câmara dos Deputados e se dá início à segunda etapa do processo de impeachment, qual seja o seu julgamento pelo Senado Federal.
Outro ponto por mim focalizado diz respeito à natureza do impeachment no regime presidencialista de governo. Com efeito, conforme anotado pelo ilustre constitucionalista González Calderón, forte em exposição feita pelo senador Summer, quando do pedido de impeachment do Presidente Johnson, na segunda metade do século XIX nos Estados Unidos da América, trata-se de um juízo político, com propósitos políticos, cuja apreciação incumbe a um corpo político e subordinado a um julgamento político tão somente. Daí porque é instaurado e se desenvolve no âmbito do Poder Legislativo.
Eis porque, total razão assiste ao saudoso e notável Ministro Paulo Brossard ao pontificar, como está em voto que proferiu no Mandado de Segurança, em que se tratou do impeachment do ex-Presidente Collor: é um SACRILÉGIO a interferência do Poder Judiciário na esfera própria de outro Poder – no caso o Legislativo – para ditar o que ele pode dizer, em suma o que ele pode fazer e como deve atuar.
A partir de dezembro de 2015, quando foi dado início ao impeachment, na Câmara dos Deputados, resolveu-se dar início à sua judicialização, perante o Supremo Tribunal Federal, com a prática de diversos SACRILÉGIOS, tão temidos pelo inesquecível Ministro e Senador da República.
Na primeira oportunidade, a maioria dos Ministros resolveu dar, sob o pretexto de tratar do rito do procedimento do impeachment no Congresso Nacional, ao art. 86 da Constituição Federal, disposição clara e objetiva, a interpretação de que onde está escrito "acusação", leia-se simples "autorização". Quer dizer o sufrágio exigido de dois terços da Câmara dos Deputados para admitir a acusação não vale, absolutamente, nada, pois pelo rito imposto, tudo recomeça no Senado Federal e uma deliberação por maioria simples, os senhores Senadores poderão arquivar o impeachment. Ademais, é outorgada ao Senado Federal a possibilidade de julgar a Câmara dos Deputados, isto é, examinar se a admissão da acusação por ela feita deve ser, ou não, recebida, pois para o Supremo, a Câmara apenas autoriza.
Em suma, em um abominável ativismo judicial o Supremo resolveu assumir o papel de legislador constituinte e não de intérprete maior da Constituição. E o fez, sem cerimônia alguma, pois a Corte, de tempos a esta parte, em diversas decisões, não interpreta a Constituição, ao contrário, cria direito novo. Seus Ministros abandonam a toga e passam a vestir os ternos de constituinte e legislador. Amoldam a Constituição ao pensamento individual de cada um deles. Esquecem-se da segura advertência feita pelo eminente professor da Faculdade de Direito de Lisboa e emérito constitucionalista Jorge Miranda: os Juízes devem observar a Constituição que temos e não aquela que desejariam ter. A primeira tem assento na realidade, a segunda permanece reclusa ao campo das ideias. Aliás, a objeção maior que ao chamado ativismo judicial se levanta – e até hoje sem resposta capaz de contrariá-la – diz respeito a colocar, como princípio, o subjetivismo do juiz, lançando às urtigas todo o esforço realizado, séculos a fio, para fazer do Direito, um instrumento de segurança, Não pode o Supremo Tribunal Federal – órgão máximo do Poder Judiciário nacional - colocar-se, por seus ilustres Ministros, em constante revolta com o legislador constituinte e assumir, em razão disso, o papel – que não lhe cabe – de legislador constituinte.
A Lógica ensina há séculos, e continua a ensinar, que todo raciocínio impõe coerência na busca da verdade formal e dentro desse processo mental, se deve refugar, sempre, o absurdo. Enfim, se por força de uma interpretação da norma jurídica¸ se chega ao absurdo, tal interpretação deve ser abandonada por completo, porquanto não se pode supor, como diz Rui Barbosa, "que a lei ordinária, quanto mais a lei constitucional, caduque e delire". Logo, diante desse raciocínio, não se pode aceitar que uma deliberação referendada por dois terços da Câmara dos Deputados – que encarna a soberania popular – possa ser revista pelo Senado Federal, por maioria simples de votos de seus senadores.
O acórdão, então proferido, com a devida vênia, outro sacrilégio praticou quando, por maioria, resolveu anular eleição secreta dos membros da Comissão processante do impeachment, invadindo sem qualquer cerimônia, esfera própria do Poder Legislativo, para que nova eleição fosse feita por escrutínio aberto, desprezando por completo o art. 188, n. III do Regimento Interno da Câmara, que autoriza a eleição por voto secreto das diversas Comissões no âmbito da Câmara dos Deputados.
Enfim, passo a passo, a independência e autonomia do Poder Legislativo sofreu rude golpe. Os votos que formaram a maioria deram enorme importância ao "princípio republicano da transparência", mas nenhum realce foi dado ao princípio estrutural do Estado brasileiro, qual seja o da divisão e harmonia dos Poderes (art. 2º, da CF).
Já agora, a judicialização do impeachment adquire proporções ainda mais sérias, se por acaso prevalecer dois entendimentos externados pelo ilustre Ministro Marco Aurélio.
O primeiro foi exposto em entrevista jornalística e no programa "Roda Viva". Trata-se da afirmativa de que o julgamento final do impeachment a ser realizado pelo Senado Federal em sessão presidida pelo presidente do STF poderá ser revisto pelo Poder Judiciário, inclusive, como lembrado pelo ilustre Ministro, se não estiver comprovada a "materialidade" do crime de responsabilidade, por exemplo.
Trata-se, com todo o respeito, de opinião não só de afronta ao princípio fundamental da divisão e harmonia dos Poderes, como também de desrespeito à natureza político-judicial daquele julgamento. Em pesquisa que se faça a respeito do tema, possível concluir-se a prevalência do entendimento de Duguit, De Tocquiville e de Menzel no sentido de que "a decisão do Senado poderá ser tida como judiciária pela forma e pelos motivos sobre que se fundará". Para o saudoso e notável Ministro Orosimbo Nonato, o julgamento por parte do Poder Legislativo "é político e sobranceiro à revisão do poder judicial". Sempre foi esta a tradição de nosso Direito Constitucional. Com efeito, Rui Barbosa cita Chambrun, para quem o Senado, no processo de impeachment, funciona "como alto Tribunal de Justiça", enquanto Burgess denomina o Senado "como tribunal do impeachment", para concluir que o Senado exerce "a jurisdição da magistratura política", sendo uma "judicatura tão alta" quanto à do STF.
O segundo entendimento do honrado Ministro, diz respeito à medida liminar por ele concedida, no sentido de obrigar a Câmara dos Deputados a eleger Comissão Especial para proceder à abertura de impeachment contra o Vice-Presidente da República e para tanto anulou ato da Presidência daquela Casa Legislativa que havia arquivado a denúncia. Em primeira abordagem, recorda-se que o art. 85 fala em crimes de responsabilidade praticados pelo Presidente da República. Referência alguma faz ao Vice-Presidente da República, abrindo-se a possibilidade de se "reescrever" o dispositivo constitucional pela pena de um ministro do STF, para que nele se leia ser possível o impeachment por crimes de responsabilidade do presidente e do vice-presidente da República...
Ademais, ao anular ato privativo e próprio do presidente da Câmara dos Deputados e ao determinar a prática de outro ato em substituição, adentrou campo próprio, exclusivo e especifico do Poder Legislativo, lançando às urtigas o princípio estrutural do Estado brasileiro, qual seja o da independência dos Poderes da República.
Triste realidade.
Termino este artigo, recordando mais uma vez, a magistral lição do notável Pimenta Bueno – o maior publicista brasileiro do século XIX: "A divisão dos Poderes não é certamente instituída para gerar o choque e o conflito; não se distinguem para que sejam rivais ou hostis, sim para melhor garantirem o destino e o fim social, para que em justo equilíbrio trabalhem e cooperem, auxiliem-se e conspirem pelo modo mais esclarecido em prol do bem comum".
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