Migalhas de Peso

Última oportunidade para a regularização de capitais não declarados ao Fisco brasileiro

No último dia 11 de março, a RF editou Instrução Normativa que regulamenta o regime de regularização cambial criado pela lei de repatriação.

29/3/2016

No último dia 11 de março, a RF do Brasil editou a Instrução Normativa 1.627 ("IN 1627/16"), que regulamenta o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), criado pela lei 13.254 de 13 de janeiro de 2016 ("lei 13.254/16").

Surpreendentemente, muitas das sugestões propostas por advogados, contabilistas, associações profissionais, empresariais e por instituições financeiras em resposta à Consulta Pública ("Consulta") não foram recebidas na versão final da instrução normativa, deixando algumas lacunas normativas. Perdeu-se assim a oportunidade de aperfeiçoar uma legislação que foi muito criticada por deixar espaço a incertezas, gerando insegurança jurídica.

Evidentemente, a necessidade de caixa do Erário brasileiro falou mais alto que a necessidade de criar um instrumento legislativo adequado, eficaz e confiável, tanto para o contribuinte como para o Fisco.

Se, por um lado, as lacunas normativas geram insegurança quanto ao procedimento a ser adotado para fins de regularização, por outro, deixa-se espaço à interpretação, deixando-se amplo espaço para defesa do contribuinte em caso de futuro contencioso a respeito da adesão ao RERCT e do conteúdo das informações prestadas no âmbito do programa.

Passando-se à análise da regulamentação, o primeiro ponto a destacar é que foi confirmado o rol de bens e direitos que podem ser regularizados através do programa. Permanece excluída do RERCT a possibilidade de se regularizar joias, metais preciosos, obras de artes, antiguidades e material genético de produção animal, dada a dificuldade de comprovação da titularidade e do valor de mercado de tais bens, o que poderia abrir uma brecha para a regularização de recursos decorrentes de origem ilícita. Se por um lado o veto limita a utilização indevida da lei, por outro desestimula a adesão ao regime por parte de contribuintes que queiram regularizar seu patrimônio como um todo, mas que tenham parte de seus investimentos em ativos não cobertos pelo programa.

Esse poderia ser o caso de pessoas com ativos distribuídos em ouro, fundos, ações e imóveis. Mesmo que quisessem, contribuintes com esse perfil estariam impedidos de regularizar a totalidade de seu patrimônio. Caso optassem por uma regularização parcial (cobrindo apenas os fundos, ações e imóveis), continuariam sujeitos a sanções em relação aos ativos não regularizados. Parece claro que esse impedimento vai na contramão dos objetivos da lei popularmente chamada de Lei de Repatriação.

O dispositivo também gera incerteza quanto à possibilidade de se regularizar investimentos lastreados em metais preciosos, como certificados representativos de depósitos em ouro junto a instituições financeiras, que estão sujeitas à regulamentação de combate à lavagem de dinheiro e que fornecem extratos indicando o valor e a titularidade do investimento. Nesse caso, as informações necessárias à averiguação da origem dos recursos estão plenamente disponíveis. Por esse motivo, entendemos que tal tipo de investimento estaria dentro do âmbito do programa.

Outro ponto que não chegou a ser esclarecido pela regulamentação é a possibilidade de regularização de dinheiro em espécie, eventualmente mantido em cofres no exterior. Resta, portanto, mais uma incerteza quanto ao rol de bens cobertos pelo RERCT.

Todos os bens a serem regularizados devem ser declarados pelo seu valor de mercado em 31/12/14. A IN 1.627/16 não esclareceu, porém, como devem ser avaliados os imóveis e bens intangíveis no exterior. Quem seriam as pessoas legitimadas a periciar e avaliar tais bens para fins de definição do valor a ser inserido na DERCAT? A IN 1627/16 limita-se a dizer que devem ser consultados especialistas, sem dar qualquer orientação quanto à sua qualificação e quanto aos procedimentos formais a serem seguidos nessa tarefa. O procedimento mais sensato seria recorrer à normativa do país onde estão os bens imóveis ou onde estão registrados os intangíveis a fim de identificar quem são as pessoas habilitadas a realizar uma avaliação desses bens de acordo com a legislação local.

Outra dúvida interpretativa se refere aos sujeitos que não podem aderir ao programa de declaração voluntária de recursos não declarados. Ao definir o termo “declaração voluntária” como um ato que deve informar sobre fatos novos, ainda não conhecidos do fisco, a IN 1627/16 acabou por limitar a participação de todos aqueles sujeitos que já sofreram autuação em relação a esses bens não declarados, mas que ainda não foram condenados em ação penal. O dispositivo trazido pela IN 1627/16 está em claro contraste com as disposições da Lei 13.254/16, que somente exclui do programa os contribuintes já condenados por um dos crimes cobertos pelo RERCT.

Muito embora o dispositivo inserido na IN 1627/16 esteja alinhado com as disposições constantes de outros programas internacionais para a regularização de recursos não declarados (como por exemplo o programa italiano), deve ser considerado ilegal, pois contraria frontalmente as disposições da Lei 13.254/16 e amplia indevidamente a faixa de contribuintes excluídos do programa, abrindo espaço para futuro contencioso sobre o programa.

A IN 1627/16 confirmou a impossibilidade de adesão ao programa por parte de contribuintes que, em 13.1.2016, exerciam cargos públicos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, bem como de seus cônjuges, parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção.

Muito embora o objetivo desta restrição seja nobre, ela é, na verdade, desnecessária, além de afrontar o princípio da igualdade, consagrado na Constituição Federal de 1988. Cabe lembrar que a lei 13.254/16 já havia limitado a possibilidade de regularização aos recursos de origem lícita. Recursos advindos de corrupção são claramente ilícitos e, portanto, estão automaticamente excluídos do RERCT. Não era necessário impor uma restrição específica direcionada aos detentores de cargos públicos e seus parentes, mesmo porque estes podem ser detentores de recursos não declarados que não tem nenhuma relação com as funções por eles exercidas. Esse pode ser o caso, por exemplo, de recursos advindos de herança no exterior. Por que os detentores de cargos públicos, seus cônjuges e parentes não poderiam regularizar tais recursos de origem lícita se todos os outros contribuintes podem?

Tal restrição mostra-se discriminatória, pois atinge exclusivamente uma classe de pessoas. Nesse sentido, detentores de cargos públicos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, bem como de seus cônjuges, parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção poderiam questionar a constitucionalidade do dispositivo, clamando o direito de beneficiar-se da regularização em relação a todos os recursos não declarados que advenham de origem lícita ou de um dos crimes cobertos pela anistia (desde que não derivem de crimes exercidos em decorrência de seu cargo, emprego ou função, como corrupção ou peculato, por exemplo).

Do ponto de vista operacional, será possível realizar a adesão ao programa até 31/10/16 (prazo que supera ligeiramente os 210 dias mencionados na lei 13.254/16). O programa para efetuar a declaração de regularização (conhecida como "DERCAT") estará disponível no site da Receita Federal do Brasil a partir de 4 de abril de 2016, e será necessário um certificado digital para que a declaração seja realizada. Note-se, porém, que a regularização só se aperfeiçoará após o pagamento integral do imposto e da multa de regularização, no total de 30% do valor do patrimônio em 31/12/14.

Restam, porém, fortes dúvidas sobre a possibilidade de realizar o pagamento do imposto e da multa de regularização com recursos existentes no exterior. É fato que muitos contribuintes não tem liquidez no Brasil para realizar o pagamento desses valores. Tendo em vista o procedimento estabelecido para regularização (de acordo com o qual o recurso só se torna regular após a entrega da declaração e pagamento do imposto), muitas instituições financeiras brasileiras têm se mostrado avessas à possibilidade de repatriar recursos ainda não regularizados, ainda que a finalidade última da operação de câmbio seja repatriar recursos para participar do RERCT. Ao que parece, os contribuintes vão ter que buscar caminhos alternativos (por exemplo, a obtenção de um empréstimo) para que possam aderir ao RERCT e quitar os valores devidos.

A IN 1627/16 deixou claro que apenas os valores que serviram de base de cálculo para a regularização e pagamento do imposto estão cobertos pelo programa. Como visto, os valores a serem regularizados para fins do programa, quando expressos em moeda estrangeira, serão convertidos em dólares dos Estados Unidos da América, e depois para reais usando a quotação de venda publicada pelo Banco Central do Brasil para 31/12/14, que é igual a R$ 2,66. Portanto, eventual ganho cambial ou ganho de capital auferido posteriormente a 31/12/14 será calculado tomando-se como base o valor declarado no RERCT, que leva em consideração uma cotação de R$ 2,66. Portanto, pode haver tributação adicional quando da repatriação dos recursos declarados, caso se verifique um ganho cambial. Nesse caso, a tributação seria de 15%.

Um ponto que restou sem solução na IN 1.627/16 se refere à necessidade de declaração de bens não mais presentes na esfera patrimonial do contribuinte em 31/12/14, seja porque transferidos a outrem (por exemplo, trustees ou fundações), seja porque efetivamente não existem mais.

Em tais casos, o contribuinte pode realizar a regularização através do RERCT, não estando claro, todavia, qual valor deveria servir de base de cálculo para o pagamento do imposto e da multa, e declarado na DERCAT. A IN 1627/16 fala que deveria ser mencionado o valor presumido de tais bens em 31/12/14, sem definir, no entanto, o que seria o valor presumido de tais bens. Tal lacuna, sem dúvida, dará margem a dúvidas e futuro contencioso.

No caso de imóveis detidos previamente pelo contribuinte e não mais existentes em 31/12/14, o mais razoável seria declarar e tributar seu valor de cessão. No caso de depósitos bancários, resta a dúvida se o saldo a ser declarado seria o último saldo disponível, o valor mais alto detido dentro de determinado espaço de tempo, bem como o números de anos a serem considerados em eventual análise retroativa do patrimônio.

Não obstante existam agora muitas dúvidas, a IN 1.627/16 trouxe alguns esclarecimentos a respeito da regularização de trusts e fundações. De acordo com a IN 1.627/16, a regularização deverá ser realizada pelo beneficiário do trust ou fundação. O valor a ser declarado será o valor dos ativos em 31/12/14. Quando o instituidor do trust ou fundação não for beneficiário do trust ou da fundação, ele poderá apresentar a DERCAT na modalidade de declarante de vens não mais existentes, relacionando o valor dos ativos originariamente transferidos ao trustee ou fundação.

A solução encontrada pelo Fisco traz, porém, alguns inconvenientes. Primeiro, nem sempre o beneficiário de um trust ou fundação está ciente de sua condição. O beneficiário vem denominado pelo instituidor do trust ou da fundação no momento da criação dessas estruturas e, normalmente, só adquire disponibilidade dos ativos ou recursos se realizada uma condição. Além disso, os documentos onde constam essa nomeação são documentos reservados, que permanecem com os trustees ou gestores da fundação, podendo, portanto, não ser de conhecimento dos beneficiários.

Segundo, ao estabelecer que o instituidor também pode apresentar a DERCAT, cria-se um risco de dupla tributação, pois o valor a ser declarado pelo instituidor, seguramente, já terá sido declarado pelo beneficiário. Nesse caso, teríamos a figura da dupla tributação econômica, em que os mesmos recursos seriam tributados inicialmente nas mãos de um contribuinte, e depois de outro.

É importante notar que todas as informações prestadas no âmbito do RERCT deverão ser comprovadas por documentação hábil e idônea, caso haja solicitação por parte do Fisco. Note-se que a adesão ao RERCT é espontânea. A nosso ver, a boa-fé do contribuinte em auto denunciar-se e regularizar sua situação deve ser levada em consideração pelas autoridades fiscais quando da análise da DERCAT e eventual solicitação da documentação de suporte.

Ante o exposto acima, parece claro que a participação do RERCT continua cercada de uma dose de insegurança jurídica, o que poderá restringir o universo de interessados no programa. Infelizmente, as incertezas do programa fornecem subsídio aos contribuintes que nutrem uma profunda desconfiança em relação às autoridades brasileiras para que mantenham recursos não declarados no exterior e busquem alternativas pouco ortodoxas (ou eficazes) para a ocultação deste patrimônio.

Não obstante as lacunas da regulamentação, deve-se ressaltar que esta iniciativa do governo representa uma oportunidade única para a regularização de capitais não declarados beneficiando-se de uma anistia penal. Trata-se de uma segunda chance para os contribuintes que queiram dispor do seu próprio patrimônio legalmente, de maneira direta, passando a administrá-lo com base em suas próprias exigências econômicas e não com o objetivo de ocultar sua situação do Fisco brasileiro.

Nesse contexto de incertezas, é importante que os contribuintes recorram a especialistas para entender claramente as implicações de sua participação no RERCT, bem como a avaliação prévia dos riscos, argumentos de defesa e documentação de suportem caso as autoridades fiscais venham a decidir pela exclusão do contribuinte do programa, dando início a um contencioso sobre o assunto.

Os contribuintes interessados na adesão devem efetuar uma análise detalhada de seu caso concreto, avaliando as dificuldades de se obter documentação sobre a origem e valor dos recursos, bem como a necessidade de se obter avaliações de imóveis ou intangíveis de especialistas no exterior.

O ideal é que o contribuinte obtenha todas as informações e documentos relativos aos bens a serem declarados antes mesmo de preencher a DERCAT, para que as informações prestadas ao Fisco correspondam exatamente aos dados constantes dos documentos comprobatórios.

Apesar da aparente simplicidade do procedimento de regularização, será necessário examinar preventivamente a documentação a fim de preparar-se para eventual questionamento das autoridades fiscais, que terão cinco anos para examinar e avaliar as informações prestadas pelo contribuinte, convalidando a anistia.

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*Carlo Lorusso é advogado do escritório Tess Advogados. Consultor para questões de impostos e tributos internacionais.

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